terça-feira, 18 de novembro de 2008

Rumo a Sumé - Convite para Lançamento de Livros


Aí Sonielson fez o convite que eu queria fazer: lançarmos juntos, em Sumé, os nossos livros. Aproveitar o ensejo do dia 8 de dezembro, festa de padroeira... Aproveitar a desculpa dos livros para visitar Sumé, ponto de partida e laboratório poético... Aproveitar e reencontrar velhos amigos... Então, sim, Sumé, próximo destino. Você está convidado para chegar lá. Dia 6 de dezembro, às 16 horas, no São Tomé Esporte Clube. Os livros a se lançar são os que aparecem acima, no convite.

Eu e Sonielson nos apresentaremos um ao outro... Brevemente, claro, porque o que importa mais é o bate-papo informal com os amigos e velhos conhecidos que esperamos encontrar por lá.

Obrigadíssima, Sonielson, por esse empurrãozinho...

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Triste Fortaleza, ó quão dessemelhante...

O verso do título é de Gregório de Mattos, meados do século XVII e, em vez de Fortaleza, lia-se “Triste Bahia”. Mas é Fortaleza e as suas dessemelhanças (e inospitalidade) que me motivam agora, tempo de campanha para prefeito, a escrever um pouco.

Vejo, sinto e me angustio todos os dias com as dessemelhanças em Fortaleza. Elas se expressam dos mais diversos modos e circunstâncias, mas é ao tráfego que me dedicarei aqui. Todos os dias me coloco no lugar dos pedestres que têm de atravessar a BR-116 à altura da Aerolândia. São milhares de trabalhadores que cotidianamente, no início da manhã, se arriscam entre os carros em alta velocidade para não chegarem atrasados nos seus empregos.

Não tenho a estatística dos mortos, mas certamente aquele é um dos nossos mais importantes “pontos de óbito”. Do trecho que me concerne, viaduto da Oliveira Paiva, até a rotatória da Aguanambi, há apenas uma passarela. Isto já seria, em si, uma agressão àqueles trabalhadores. Mas a dessemelhança, o paradoxo, a loucura mesmo, tornam-se ainda mais visíveis quando observamos o espetáculo seguinte: no centro da rotatória da Aguanambi há uma praça que eu não creio que seja utilizada por mais de 10 pessoas por dia. Para falar a verdade, passo ali em diferentes horários do dia e jamais vi uma única pessoa!

Curiosamente há ali uma passarela. Uma passarela enorme, esquisita, provavelmente cara, ligando nada a lugar nenhum e, logo ali do lado, quilômetros de BR-116, com pesado tráfego de pedestres, sem passarela nenhuma. Acho particularmente curioso o fato de que a tal passarela para a praça da rotatória tenha sido construída no governo de Luizianne Lins. Não é interessante que com uma política supostamente voltada para os pobres, questões graves como essa não sejam resolvidas? Será a passarela para a praça fantasma da rotatória um dos monumentos da lista dos necessários à construção da Fortaleza “bela”? Não seria de outros slogans e ações que precisamos?

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Sobre a paixão

(in Solidão Equilibrista, Edições UFC, 2008)


De que serve a paixão
senão para transmutar o dia em borboletas,
ruídos em vagalumes,
e nuvens em deuses, cometas, zumbis?

de que serve a paixão
senão para me envolver nessa nuvem de desejo
e me transformar numa mulher esguia, leve,
com idéias e desejos se desprendendo de minha alma
como bolhas de sabão?

de que serve a paixão
senão para nos transformar um pouco?
nos carregar com as suas vagas para o meio do mar,
e nos abandonar lá, no escuro,
sem vento e sem prancha?

de que serve a paixão
senão para ver a dor tomando todos os cômodos da casa?
todos os poros das paredes, móveis, lençóis?
escorrendo devagar por todas as frestas e ralos?

de que serve a paixão
senão para deixar este deserto maior do que o Saara dentro de mim?

É assim: quando se vai a paixão
resta um oceano inteiro a se navegar...
O mundo se apresenta em vestes menos espalhafatosas;
meio cinzento,
meio rosa-clarinho,
às vezes amarelo-pálido...
breves visões de oásis...

Eu, me olhando no espelho...
e me enxergando
outra vez...

Brasileiras e samba em Chicago: modelando-se à luz do desejo do outro

(Este trabalho foi apresentado no Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de Agosto de 2008. Disponível também no http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST65/Bernadete_Beserra_65.pdf)


Taís descobriu-se sambista por acaso. Convidada por um irmão recém-chegado de Londres, aventurou-se a sair de Mount Prospect à noite para uma visita ao Mad Bar, onde o Chicago Samba se apresentava às quintas-feiras. Acostumada à sua vida mais tranquila e confortável no subúrbio, Chicago era, até então, algo distante, que não fazia muito parte da sua vida, a não ser durante o período de fim de ano, quando vinha com amigas olhar as luzes e a decoração natalinas.

Da primeira dessas visitas, um trauma. Estacionou o carro numa das ruas que desembocam no Lago Michigan e quando voltou para pegá-lo, ele havia sumido. Foi assim aprendendo as regras daquela cidade bonita, mas intrigante. Inóspita? Não, hoje ela aprendeu que não e não consegue acreditar que não viu aquela placa de estacionamento proibido ali, no Jackson Boulevard, a um quarteirão do lago.

Feliz de reencontrar naquele bar e no Chicago Samba um pouco de Brasil, começou a dançar. Mas era esquisito estar dançando samba. Embora carioca, nunca gostara de samba. Gostava de rock. E de frevo e forró, quando visitava a família da sua mãe no nordeste. Surpreendeu-se quando Mara, mulher de um dos componentes da banda, aproximou-se elogiando sua performance: você dança muito bem! Antes de compreender a extensão do significado do elogio, foi surpreendida com o convite:

– Você não quer fazer um show com a gente?

– Eu? Dançar pelada? Não! E de biquini também não!!

Mas Mara logo explicou que era um show de carnaval, com fantasias. E Taís foi. Ganhou 150 dólares para dançar menos de duas horas. Como não havia se dado conta dessa possibilidade antes? Shows privados, como aquele, eram esporádicos, mas havia o Chicago Samba ali, no Mad Bar semanalmente. Começou a dançar para o grupo em 1996, quando sua única filha não tinha completado ainda o seu primeiro ano de vida. Logo começou a receber convites para outros shows e a também confeccionar as suas próprias fantasias. Afirma, orgulhosa, que pouquíssimas vezes precisou usar biquini: “usava sainhas, maiôs com lantejoulas...” O negócio foi crescendo na mesma medida em que seu casamento foi desmoronando. Começou a viajar para o Brasil para comprar mais fantasias. Mas aí o Chicago Samba decidiu dispensá-la. Alegaram que ela estava aparecendo mais do que eles e que não apreciavam a idéia de que uma banda de músicos se tranformasse numa banda de “tchan”. Ficou arrasada, sem saber o que fazer com tanta fantasia! Mas ficou especialmente triste porque aquele show estava se transformando na sua razão de viver. Seu casamento estava uma monotonia insuportável. Não aguentava mais o seu marido americano, preguiçoso, conservador, sem planos para o futuro e concentrado apenas na televisão e na cerveja. Continuou indo para a apresentação semanal do Chicago Samba, mas não mais vestida em fantasias carnavalescas. Apesar disso, continuou a receber convites para dançar em festas privadas.

Assim inicia a história de dançarina de Taís, semelhante à de várias outras brasileiras que se envolveram com o mundo do samba em Chicago. A diferença é que Taís dança e promove a cultura brasileira em Chicago há mais de uma década e isto é extraordinário num negócio em que a rotatividade é tão grande. O samba surge como um interesse de passagem na vida de muitas brasileiras ou não-brasileiras que com ele se envolvem. Talvez porque não reivindica dessas dançarinas mais do que algumas horas de dedicação semanais, o samba é muito diferente da bossa-nova e da capoeira que, mais exigentes, requerem quase uma conversão. Mas um dos problemas da continuidade das mulheres no negócio do samba são os maridos. Eles não querem suas mulheres se expondo publicamente, jogando charme para um público indistinto. O comum, portanto, é que as mulheres fiquem com o samba até encontrarem marido. Raros os casos dos que não se incomodam, que vêem a dança como um trabalho, uma arte.

Após o divórcio, Taís veio morar no que ela afirma que é o quadrilátero de Chicago que mais concentra brasileiros. Da Grand Ave à Irving Park e da Lake Shore Drive à Cícero. Taís é empresária de um negócio “étnico” numa cidade em que praticamente não há demanda étnica porque a população brasileira é muito pequena. O censo americano calcula que há em torno de cinco mil brasileiros entre Chicago e arredores, mas o Ministério das Relações Exteriores apresenta um número maior, quase o dobro. Ela garante que a realidade está mais próxima da estimativa americana. Além de artista e de empresária do samba, trabalha com a promoção de shows e garante que tem uma idéia bastante razoável da população brasileira na cidade: quatro mil permanentes e dois mil flutuantes.

Tendo sido casada com um americano branco por quase uma década e morando no midwest por mais de duas, Taís garante que conhece a cultura americana; que sabe como promover a cultura brasileira num ambiente conservador como aquele. Não é simples, não é fácil. Lembra de episódios dramáticos que estão na base do seu aprendizado: num dos primeiros shows que dançou de biquini assistiu assustada uma platéia de quatrocentas pessoas ir embora. Somente restaram a banda e as dançarinas desapontadas.

- Eu havia sido contratada pela Leda. Não era um show que eu estava agenciando. Mas eu jurei pra mim que nunca mais faria aquilo: eu vou apagar essa imagem! E o problema desses grupos de samba que há por aí apresentando mulher pelada é que isto assusta as pessoas, ninguém contrata mais. E o meu show não. Eles gostam: querem mais. E por que escolhi este lado? Porque a mulher brasileira é muito mal vista: toda vez que se fala em mulher brasileira a imagem que vem é mulher pelada na avenida. Então, o meu trabalho tenta fugir um pouco dessa imagem, desse trivial de mulher pelada com uma pena na cabeça. Inclusive ratificar essa idéia é muito mais simples, muito mais barato: um monte de biquininhos e mulheres rebolando com penas na cabeça. Só que aqui na região não ia vender nada, que aqui não vende isso! A gente tem que entender muito da cultura deles para trabalhar aqui. Eles são super exigentes, super pontuais, muito conservadores, rigorosos demais com o nosso comportamento durante o show. Se você não sabe se comportar, você não tem business aqui.

Há doze anos trabalhando na expansão do mercado cultural brasileiro em Chicago, Taís compreende bem sua economia política e geografia. O samba, a dança, acompanha o samba, a música. Podem, porém, existir independentes um do outro. Há várias possibilidades de trabalho no mercado: shows em bailes de Gala, shows acompanhando grupos musicais, shows privados e as aulas de samba. Os shows em bailes de Gala apresentam características semelhantes às dos desfiles carnavalescos no Brasil: o foco é a fantasia e as suas cores, brilhos e ilusões. Em geral apresentam-se várias dançarinas. Os shows acompanhando grupos musicais são menores, duas ou três dançarinas resolvem. Aqui, a sedução e o carisma são as moedas mais comuns. Os shows privados têm formatos variados em função do tamanho e das características da festa. Tanto podem ser oferecidos a quatrocentos pessoas, num clube, como a vinte, num apartamento. O contratante é quem determina o que quer: se mais desfile de fantasia ou se mais requebros, biquinis e olhares, o que relativiza a afirmação de Taís de que a dupla biquini-requebro assusta o midwest. De fato, observando a variedade de possibilidades que ela própria apresenta, vê-se que há público para tudo. O que é necessário, e isto ela parece compreender bem, é perceber o que é adequado para cada ocasião. Já as aulas variam bastante em função do professor: do seu sexo, do seu público e da sua concepção de samba e de mercado.

Pela sistematicidade do encontro e pela proximidade que se estabelece entre professor e aluno e entre alunos, a aula de samba é o espaço em que as relações mais profundas e permanentes se desenvolvem no mundo contagiante, etéreo e ilusório do samba nesse mercado étnico. É nas aulas que as idéias de Brasil e brasilidade superficialmente apresentadas nos shows são demonstradas na prática. É nelas que a alegria que os brasileiros garantem que possuem é posta à prova das intempéries.

Aos poucos Taís foi tornando-se conhecida em Chicago e ocupando espaços mais visíveis. De dançarina do Chicago Samba e de festas privadas, foi convidada a oferecer a aula de dança brasileira no Chicago SummerDance, festival de dança que geralmente inicia na segunda semana de junho e vai até a última semana de agosto e apresenta aulas de dança e música ao vivo do mais tradicional swing até os mais exóticos forró e zydeco, passando pela salsa, bachata e merengue, mais populares em função da significativa população latina na cidade. Foi trabalhando para o departamento de assuntos culturais da prefeitura de Chicago, que Taís foi convidada a dar aula de dança brasileira no Old Town School of Folk Music, tradicional escola de música e dança fundada em 1957 e famosa por ter promovido a carreira de muitos artistas folk notáveis.

- Eu estava dirigindo um workshop oferecido pela prefeitura nas promoções culturais da virada do milênio. A mulher do Old Town School foi atrás de mim porque o meu workshop estava atraindo a atenção de pessoas que estavam noutros workshops... Eles saíam e iam pro meu... E não parava de entrar gente! Aí a mulher foi olhar e ficou no fundo da sala olhando e viu todo mundo dançando, todo mundo rindo, brincando... Aí quando terminou a aula ela foi falar comigo e me propôs dar aula.

Taís deu aulas no Old Town School of Folk Music durante quatro anos e de lá guarda memórias e amigos:

- Era um sucesso! Eu passava e as pessoas perguntavam: ah, é você a brasileira que está dando aula aqui? E eu, “sou eu mesma”. E eles me reconheciam também porque eu estava sempre vestida de Brasil, com um shortinho de lycra. Aí vinham umas querendo dançar com aquelas saias longas e eu dizia, ah não. Você não pode tomar aula de dança comigo com essa saia porque eu preciso ver suas pernas! Tem que por um short! Elas resistiam dizendo que estavam gordas e eu dizia: ah, aqui não tem esse negócio de gordo não, a gente é brasileiro, ninguém tá prestando atenção a isso não. (grifo meu). Aí iam botando uma bermuda mais curta... e no final estavam usando shortinho de lycra igual ao meu... Eu dei aula uns quatro anos... Houve alunos que nunca deixaram de fazer as minhas aulas! Saíam do trabalho cansadésimos, mas para eles ir para a minha aula era como tomar uma dose de vida! Agora mesmo eu tava falando com uma amiga de Trinidad &Tobago, que era minha aluna e que quando chegou na minha aula não conhecia ninguém, vivia depressiva e levava o filho lá para umas aulas não sei de quê e um dia viu: Brazilian Dance. E se matriculou. E lá fez um novo ciclo de amizade, a vida dela mudou da água pro vinho e ela começou a ter prazer em viver em Chicago, que ela veio do Canadá e não conhecia ninguém aqui. Então era um meio de promover conexão entre pessoas sozinhas, inclusive eu, que era sozinha também!

As aulas e os shows públicos ou privados foram a experiência que permitiu a Taís o desenvolvimento da consciência que hoje tem sobre feminilidade, beleza, sedução, brasilidade e americanidade.

- O Brasil ensina duas coisas: a alegria de viver. O brasileiro é um povo feliz, é um país do terceiro mundo, com mil problemas, mas é um povo feliz e contagiante. A outra coisa é a liberdade de se sentir à vontade com seu corpo... A liberdade de se sentir mulher, bonita! De que é normal usar uma jóia, uma bijouteria, usar sapato alto, usar decote, mini-saia. Pode usar! É bonito, te faz bem! Não é promíscuo, é natural. “Ah, eu tô gordinha...” Não tem problema! Você tampa aqui e mostra ali. Tampa o que não quer mostrar. Ensinar samba a essas mulheres é reensinar o feminino, é mostrar que existe uma mulher dentro delas, que são mulheres oprimidas, que nunca viram, nunca usaram, nunca foram ensinadas essa feminilidade. E vendo a gente tão à vontade, elas aprendem, mudam!

Taís, Denise, Lauren, Jeannie, brasileiras e não-brasileiras igualmente concordam em relação à metamorfose que o samba promove em suas vidas. Descobrem-se fortes, bonitas, sedutoras. O samba é um espelho e um escudo: é uma passagem para territórios desconhecidos e sedutores e oferece a proteção “étnica”. É sempre possível relativizar ou oferecer outras interpretações sobre o que foi apresentado em público, afinal o mundo do samba não começa e termina no Rio de Janeiro. “Tem samba de todo jeito e em todo canto do Brasil”, diz Taís.

Todo mestre tem consciência da possibilidade de ser superado pelo discípulo e no mercado do exotismo cultural isto não deveria ser uma exceção. De fato não é, mas a preferência de Taís é pelas brasileiras. Embore ensine samba quase que exclusivamente a não-brasileiros, nos seus shows as brasileiras têm primazia:

- Escolho brasileiras porque o pessoal tá comprando um produto brasileiro e eles querem ver a brasileira! Eles sabem que é diferente! A Sarah passa por brasileira, mas Robin não. A Sarah já estava dançando antes do Jorge chegar! Já é quase brasileira, só falta visitar o Brasil. Mas, veja, o que é que eu tô procurando numa dançarina? Primeiro se sabe dançar! E em segundo lugar, procuro pessoas que tenham algum tipo de pigmentação na pele para se misturar mais fácil com a gente... Quem contrata a gente tem um bom conhecimento do que é a mulher brasileira. E eles exigem: eu só quero mulher brasileira. Aí eu pego Ana, Dedé, às vezes a Sarah vai... O problema é que não tem muita dançarina brasileira aqui... elas vêm só de passagem, vão embora logo... Ou casam. Mas eu procuro sempre primeiro a brasileira. O cara tá comprando um produto do Brasil! Às vezes tenho que levar não-brasileiras e eles reclamam: eu não disse que era só pra trazer brasileira? Eu tinha uma aluna, a Ingrid, da Guatemala, dançava muito bem. Era supermagra e não tinha o corpo de brasileira, mas tinha a pele morena e dava pra passar por uma brasileira magra. Dançava superbem, como qualquer brasileira, mas não tinha o carisma! Não tinha a brincadeira, não tinha aquela coisa de olhar para a platéia e fazer a brincadeira, porque tem que ter isso no samba! E essa coisa de contagiar o público é só a gente que sabe, porque as americanas, e mesmo as outras latinas, não entendem disso! A Sarah sabe porque aprendeu com a gente... A americana não tá acostumada a olhar no olho... Existe um bloqueio... A Robin foi ao Brasil, já voltou mais abrasileirada, já deu uma quebradinha naquela parede que era ela... É um amor de pessoa, mas ainda tá faltando bastante coisa pra ela entrar no nosso pique!

O grupo de sambistas mais permanente em Chicago é, portanto, aquele que se organiza em torno de Taís. Até a sua entrada no mercado, o samba em Chicago se resumia aos bailes carnavalescos anuais no Hilton, organizado pela Gladys, Jimmy e Assir. Eram bailes elegantes, onde todos iam de fantasia e a orquestra tocava de terno e gravata. A entrada, com jantar incluído, custava entre 60 e 70 dólares, o que era um preço consideravelmente alto para a época, década de 1980. Não era um carnaval para brasileiros porque não havia brasileiros em número suficiente para tal empreendimento: era para americanos de classe média-alta e ricos. Nesse período também surgiam aqui e ali, convites para a apresentação de dançarinas em festas privadas. Mas Taís garante que foi a partir da última década que o mercado do samba evoluiu para o que é hoje e insiste que tal evolução está diretamente relacionada ao seu trabalho.

Trabalhando com um “produto” altamente instável, Taís tem sempre o cuidado de atrair para o seu grupo aqueles dançarinos e dançarinas em quem enxerga potencial artístico e também, claro, potencial concorrência. Reconhece que embora ainda pequeno, o mercado do samba em Chicago se expandiu muito desde que nele entrou e continua se expandindo, embora tal expansão esteja meio incerta agora com a crise econômica consequente da guerra do Iraque. Mas sendo um mercado limitado precisa de cooperação entre todos que dele participam.

É razoável se esperar que algumas dançarinas, brasileiras e não-brasileiras, contrariadas com o monopólio existente, de vez em quando se lancem na conquista do próprio mercado. Taís insiste que é um empreendimento complicado, que elas não fazem idéia: é preciso entender de samba; das regras do mercado cultural em Chicago; da compra, fabricação e manutenção de fantasias, mas, além de tudo, é preciso também ter os contatos que ela conquistou ao longo de mais de uma década de trabalho e dedicação. Ela provavelmente está certa, mas nem todas as dançarinas aceitam as suas regras e o seu monopólio e se lançam no desbravamento do mercado. Pelo que se observa e se narra, poucas persistem. Um dos seus trunfos mais fortes é a autenticidade: ela é brasileira e suas dançarinas também. Não parece ser apenas uma justificativa étnica, política, afinal ela reconhece que Sarah, americana branca, está aprendendo o jeito, a ginga, o carisma. Mas leva tempo e é preciso ter humildade para se submeter ao aprendizado. E isto nem todas aceitam. Mas é interessante observar que há grande camaradagem entre ela e as outras duas dançarinas brasileiras que também dão aula em vários locais da cidade e, como ela fazia antes, também oferecem workshops. Elas todas se apóiam.

Observo, porém, que nas apresentações do Chicago Samba há sempre mais dançarinas não-brasileiras, americanas. Taís explica que o cachê é muito baixo; que não compensa sair de casa pelo preço que se oferece. As americanas vão porque estão ainda conquistando o mercado, não precisam do cachê e vão acima de tudo para se divertir, sair de casa, paquerar. Ela tem mais o que fazer: está interessada também na produção de shows de artistas brasileiros em Chicago. Acredita que é um grande mercado inexplorado. Estabeleceu boas relações com os coordenadores dos grandes eventos étnicos que têm a ver com o Brasil em Chicago: o African Festival of Arts e o World Music Festival. Também conseguiu estabelecer uma relação de trabalho e cooperação com o International Latino Cultural Center of Chicago, que é uma entidade que promove a arte latina na cidade. Queixa-se da falta de apoio do governo brasileiro e também de entidades que se utilizam da marca Brazil para conseguir verba para a promoção da comunidade, mas efetivamente promovem apenas os seus dirigentes.

A breve história apresentada aqui permite ao leitor enxergar as tantas metamorfoses vividas por Taís no seu trabalho com o samba em Chicago. Observa-se claramente o modo diverso como lida com os seus alunos e os contratantes dos seus shows, ou mesmo o que há por trás do seu conceito de samba e mulher quando defende que as brasileiras são as únicas que sabem contagiar o público. Com as alunas sente-se mais à vontade para universalizar a sua concepção do que é ser feminina que, inclusive, vende como brasileira. Embora em qualquer espaço pairem sempre os limites da cultura protestante dominante, ali, na sala de aula, o seu poder é maior.

Durante nossa conversa não percebi essas contradições que aparecem tão claramente agora. Afinal, o que ensina sobre beleza feminina e feminilidade às suas alunas não parece ter muito a ver com o que aprendeu nos shows para os “americanos conservadores do midwest”. Ali, naqueles shows, aprendeu a contenção, o limite. Nada de exaltar tão obviamente a sensualidade: ali é mais espaço para a alegria, cores e sonhos das fantasias carnavalescas. Na hora de defender a necessidade de contratar somente dançarinas brasileiras para os seus shows, outra vez o seu aprendizado sobre o midwest americano é posto de lado e emerge outra compreensão de feminilidade agora completamente imbricada com a sua experiência de gênero e de Brasil, mas também com o que imagina que é o desejo do homem solteiro, consumidor do samba em Chicago. Deixo que ela própria conclua:

- Dançar, todo mundo dança, agora contagiar, tem que ser brasileira! Tem que ter contato visual com eles, olhar nos olhos deles... Eles têm que sentir que você sabe que eles estão lá. Tem que olhar para cada um deles e cada um tem que ver e sentir que você está olhando... Eles dizem: “ela está prestando atenção em mim... Está olhando pra mim...” E eles ficam pirados com isto!

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Viagem Chile-Peru: de Santiago a San Pedro de Atacama

(Ainda para Circe, que gosta de viagens, de poesia e sempre me comove como o diabo!)


Santiago, Aeroporto Merino Benitez. 5 de fev 2008. 7:30am

Estou escutando Sampa (C Veloso) e, depois de dois dias intensos, finalmente parando por uns minutos enquanto espero o voo para Calama. De lá, pegaremos um táxi (?) para San Pedro de Atacama. Deborah sabe quase tudo que a espera, mas eu nao sei de nada, nao planejei nadas, mas tenho certeza de que saberei distinguir o que faz do que nao faz sentido fazer. Ontem à tarde, encontramos, nas Bellas Artes, um bairro daqui perto do centro, uns amigos seus que estavam vindo dessa aventura e, pelo que contaram, lembrei de Jericoacoara e todos aqueles passeios para turistas... alguns dos quais muito interessantes. Lembro-me particularmente de uma lagoa azulzissima onde eu e Marcus comemos o "melhor" peixe frito das nossas vidas.

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Quando estávamos vindo pro aeroporto no taxi dirigido por Abner, conhecido da Deb, eu pensava sobre a integraçao sulamericana e me convencia de que, para além dos laços estabelecidos através das metrópoles coloniais, o que mais nos juntou foram mesmo as ditaduras militares. Antes, apenas a burguesia mais curiosa e aventureira de um ou outro pais se arriscava pelo "atraso" ou "subdesenvolvimento" do outro. Ratier e Rodrigo, por exemplo, jamais teriam aterrisado em Campina Grande se nao fossem os golpes na Argentina e Chile. Foi pelas maos (e ironia!) de Ratier que fui levada pelos caminhos da antropologia e achei que era um mundo que valia a pena explorar por um tempo... "Apenas por um tempo", repito agora, ja me sentindo meio acomodada com tal escolha e achando que tá na hora de inventar outras coisa para fazer. Claro, quem me inspira aqui é WW, meu guru: "nao aceite nenhuma hospitalidade mais do que apenas por um curto tempo". A ideia é que, lá fora, o mundo (The Open Road) nos espera. Tenho me lembrado muito de Lucas todos esses dias, do quixote sem rumo, vendo os mochileiros aqui e acolá. Ontem, inclusive, na volta do passeio à casa de Neruda, paramos numa ferinha de artesanato no Pio Nono e lhe comprei uma escultura de D. Quixote. A imagem de D. Quixote é outra que inspira tanto todo mundo, ou pelo menos, todos os sonhadores e aventureiros. Mas eu nao quero me meter agora pelos caminhos da sua simbologia, principalmente porque agora talvez me enveredasse mais pelos arcanos do tarot (o eremita) do que propriamente pela literatura... abrigo onde quero ficar por esses dias.

Do dia de ontem, segunda-feira de carnaval.
Aqui, como em LA e Chicago, a última coisa de que se lembrará é que é carnaval. Hoje, por exemplo, é terça-feira de carnaval e nada, absolutamente nada, sugere isto.

Esses dois dias fiquei hospedada na casa de Soledade e Marcelo, amigos de Deborah. Ele é vitralista e ela engenheira quimica. Antes de falar desses dias, preciso apresentar a Deborah Krainin. Nos conhecemos em LA, em março de 2005, quando eu estava de passagem para San Francisco, para umas palestras e leituras de poesia. Eu estava hospedada na casa de Ivenia - brasileira que conheci desde os tempos da minha pesquisa com os brasileiros em LA - em Hollywood Hills, e ela era uma das inquilinas de um dos dois studios que George (marido de Ivenia) aluga. Eu e Ivenia estavamos voltando de um passeio à Bodhi Tree (livraria esotérica em Beverly Hills). Deb estava no portao, inicio de vários longos lances de escada ate chegar à porta. Ivenia nos apresentou e começamos uma conversa que dura até hoje, com intervalos curtos ou longos. Ela é formada em Literatura Espanhola e é tb poeta. No dia em que nos conhecemos ela havia sido demitida de um emprego numa ong e estava querendo se convencer de que aquilo era mais uma dadiva do que uma puniçao. Fizemos um monte de coisas juntas em Beverly Hills: livrarias, cafés, recitais de poesia. Conversávamos sobretudo sobre poesia e sobre as nossas historias de amor.
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Vejo, no relogio do meu vizinho, que sao 9.15am. Desde que saimos de Santiago que temos ao nosso lado esquerdo a visao da cordilheira dos Andes. Quer dizer, agora já nao mais porque esta entrando muito sol e o vizinho fechou a janela. Escolhi assentos separados nesta viagem pq queria ficar um pouco sozinha. Ja fiz varias coisas desde que sentei aqui. Dei uma lida rapida nas info do Lonely Planet sobre San Pedro de Atacama e acho que até ja escolhi alguns passeios e também ja sei o nome da lan house onde checarei meu email: Café Etnico. Nao é uma escolha antropologica, mas economica. É o mais barato da lista.

Acho bom estar viajando acompanhada, mas sei que isto se faz às custas do meu aprendizado do espanhol, de um lado e, de outro, da disposiçao de negociar o meu cotidiano com alguem que nao conheço bem. Um grande desafio, depois de todos os que me apresentou o ano da graça de 2007! Tantos que eu acho que precisava mesmo era de umas ferias da minha identidade e nao apenas de Fortaleza.

Mas como dizia antes, a proposito, das ditaduras sulamericanas, nao há mal que nao traga um bem. De fato, na minha experiencia o que observo é que quanto maior o mal, maior o bem. O outro desafio é continuar crista nessas horas e fazer o que propunha Cristo. perdoar e rezar pelos que nos fazem o mal. Desafio extraordinário. E certa superioridade, sem dúvida... Nas palavras de Mateus (5.43-48):" Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem (...) Porque, se amardes os que vos amam, que recompensas tendes? Ñ fazem os pecadores também o mesmo?"
Eu juro que ñ acredito que trouxe a minha bíblia, que pesa quase um quilo, pra essa viagem! Achei que teria de disposiçao de le-la inteira... Seria duas viagens: a do Chile e a da bíblia... Mas estou achando que ñ é ainda desta vez...

Aí Lucinha, a minha rezadeira, veio me perguntar exatamente isto: " Voce acha que ja tem condiçoes de pedir a Deus pelos que lhe provocaram essa dor?" " Ñ, Lucinha, ainda nao... quem sabe daqui a um tempinho mais? A verdade é que tudo parece tao remoto agora... E o que está proximo é a cordilheira dos Andes: silenciosa e infinita.
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Perguntei ao meu vizinho que água é esta que estamos enxergando daqui: "El oceano, el Pacifico!" Conversamos um pouco e ele insistiu para que eu fosse ver os geysers. É um passeio especial pq a saída é às 4 da manha. El Valle da la Luna é o outro passeio que me interessou. Voltando aos meus anfitriaos em Santiago. Soledade lembra-me Cenira, uma quase indiazinha, que trabalhou lá em casa quando Caio nasceu: baixinha, morena clara, olhos e cabelos muito pretos. Eu já chegava com um problema: ñ tinha conseguido sacar pesos com o meu cartao e ñ tinha dinheiro para pagar o taxi. Mas o taxista estava tranquilo: disse-me que se minha amiga ñ tivesse os 15 mil pesos devidos, ele voltaria outra dia, para pegar o dinheiro. Deborah estava fora, fazendo compras para o almoço, mas Soledade estava lá, me esperando. Ela me recebeu como se fosse uma amiga de infância, inclusive com mais entusiasmo do que a propria Deborah. Foi mostrando a casa e o lugar onde eu ficaria. Depois chegaram Deb e Marcelo, seu marido, e fomos todos cozinhar. Quando terminamos o almoço jantar era 6 horas e o sol continuava brilhando como se fosse 3 ou 4 da tarde.

Miguel Angel, o taxista que foi me pegar no aeroporto, foi me contando sobre Santiago. Aquele túnel sob o rio Mapocho, ligando o aeroporto a Las Condes, era recente. Antes sse levava quase duas horas do aeropoto àquela regiao. Ele me disse o valor da obra, um preço absurdo, mas justificavel em funçao do poder aquisitvo da populacao beneficiada. Passamos por baixo do centro da cidade e de toda a regiao mais pobre. Mas ele insistia que nao há pobreza no Chile. Nada parecido com o que havia há quinze/vinte anos quando a cidade era cheia de pobres e eels acampavam ao longo das rodovias...

A minha memória do Chile era limitada à cortesia de Rodrigo... Um ou outro verso do Neruda... Violeta Parra e Victor Jara... Allende... Pinochet. Alicia del Campo, amiga da Latin American Perspectives... Ontem, enquanto caminhava pelas ruas com Deb, pensava em como é confortável a ignorância. Eu sentia uma coisa meio esquisita em se tratando de mim que estou sempre interessada no conhecimento: eu ñ queria saber de mais nada que eu já ñ soubesse... tudo que queria era olhar as pessoas nos ônibus, nas ruas, nos bares e restaurantes. Tinhamos a missao de resolver o meu problema de dinheiro e passar na LAN, essa cia aerea na qual estamos viajando. Isto é interessante e diferente do que estou acostumada: os assentos das passagens promocionais ñ sao marcados automaticamente na hora da compra. Os passageiros é que providenciam isto - via internet - dois dias antes do voo. Deb queria pegar um taxi até o BB. Eu insisti para que fossemos de onibus.

Deb está em crise com o Chile: reclama de tudo; tudo é sujo, todo mundo é mal-educado; os homens sao estupidos... Todas as cadeiras do onibus estavam tomadas e ficamos em pé. Ela queria continuar falando em ingles e eu doida para por o meu espanhol à prova. Havia um show no onibus: um homem alto, barbudo, 50 anos, tocava guitarra e gaita à Bob Dylan. Sempre se demorava explicando alguma coisa sobre a música que cantaria a seguir. Cantou Gracias a la vida e outras que ñ reconheci. Depois recolheu uns trocados entre os passageiros mais generosos e saiu. O funcionario do BB era uma homem de uns 40 anos, bonito, simpatico e paciente. Fiz umas dez perguntas antes de finalmente me decidir sobre o que fazer e ele se manteve até o fim bonito, simpatico e paciente.

Andando de um banco pra outro, Deb descobriu que eu ando de lado, ao invés de pra frente. Acho que Laís e Emma já haviam me dito isto antes. Pouco depois descobrimos que o meu "andar de lado" tendia para a esquerda. Assim, se ela se mantivesse sempre à direita ñ correria o risco de ser atropelada. Que praticidade...

Adoro férias porque posso andar nas ruas meio de bobeira... A Deb tinha objetivos mais claro... Eu acompanhava apenas. Ela tinha obrigaçoes, mas eu me sentia uma criatura livre, na verdade, "sem compromisso nem com a saudade", como dizia o filósofo Lavô. Mas uma coisa me incomodava: a minha saia estava meio caindo e eu usava uma camiseta que deixava aparecer um pouco da barriga. Deb observou meu "sex appeal": eu acho que todos os homens estao te olhando... (Tá vendo, Brian, que ñ sao apenas os americanos?). Pois é, mas eu nao tava nem notando, estava olhando pras pessoas sem segundas intencoes; apenas olhando zen-budisticamente... E deixando-as ir... Como é bom saber que as chances de encontrar algum conhecido sao remotas...

Depois que resolvemos o que era necessario, Deb me perguntou o que eu queria fazer: "qualquer coisa, a única restriçao que tenho é a museus...". Estávamos com fome e resolvemos pegar um taxi para o Patio Bella Vista, uma especie de shopping de artesanato e alimentaçao aberto, proximo da casa de Neruda. Almoçamos no Galindo, um restaurante na rua de trás, Dardignac 98. Eu queria vino. O vinho daqui é o Carmenere. Escolhi fácil o da casa. Lembrei de Lisboa: ñ havia chances de erro escolhendo o vinho da casa. Mas foi ainda mais fácil: um dos vinhos da casa se chamava Sta Ema... Pedi para Deb pedir algum prato do lugar: pediu Pastel de Choclo e uma salada mixta e tudo estava muito gostoso... Acho que aquela foi a melhor parte do passeio. Estavamos tranquilas, sem planos e nos entregamos às nossas conversas de sempre e Deborah recitou, muito lindo, o poema abaixo:

The Great Fires

by Jack Gilbert

Love is apart from all things.
Desire and excitement are nothing beside it.
It is not the body that finds love.
What leads us there is the body.
What is not love provokes it.
What is not love quenches it.
Love lays hold of everything we know.
The passions which are called love
also change everything to a newness
at first. Passion is clearly the path
but does not bring us to love.
It opens the castle of our spirit
so that we might find the love which is
a mystery hidden there.
Love is one of many great fires.
Passion is a fire made of many woods,
each of which gives off its special odor
so we can know the many kinds
that are not love. Passion is the paper
and twigs that kindle the flames
but cannot sustain them. Desire perishes
because it tries to be love.
Love is eaten away by appetite.
Love does not last, but it is different
from the passions that do not last.
Love lasts by not lasting.
Isaiah said each man walks in his own fire
for his sins. Love allows us to walk
in the sweet music of our particular heart.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

De quantos 11 de Setembro precisamos?

(o artigo abaixo foi publicado no jornal O Povo, alguns dias após 11 de Setembro de 2001. Resolvi postá-lo agora, sete anos depois, porque ainda o considero atual e também como testemunho de que permaneço ancorada no tempo presente)



Foram confusos os meus sentimentos quando o meu filho me chamou para ver na televisão as primeiras notícias sobre o ataque ao WTC. Fazia pouco mais de um ano que havíamos voltado de uma temporada de 5 anos em Los Angeles e estávamos nos sentindo ainda muito ligados à vida e aos amigos americanos. Confesso que senti-me aliviada pelo fato de que o ataque era contra New York, não contra Los Angeles. As chances de que alguém conhecido estivesse àquela hora no WTC eram desprezíveis. Pelo menos eu não teria que chorar por ninguém em particular e anuviar, com isto, a minha primeira reação que foi, para susto e protesto dos meus filhos, a de satisfação.

Não satisfação com a dor e a miséria de tantas pessoas. Satisfação porque alguém tivera a coragem de protestar, no próprio território americano, contra as políticas abusivas dos Estados Unidos no mundo. Achei que com a evidência da sua vulnerabilidade, os americanos pudessem se tornar menos arrogantes e mais humildes. Quem sabe, vulneráveis, os americanos não prestariam alguma atenção à vulnerabilidade alheia? É claro que nos meus cinco anos de Los Angeles percebi que nem todos os americanos são arrogantes como é arrogante a política externa do seu país. E também percebi que a democracia americana, como a república ateniense, não cabe todos os que vivem em território americano.

Não custou para eu perceber que era vã a esperança que alimentara de que aquela tragédia servisse para os Estados Unidos repensarem a sua política externa. Percebi, logo nas primeiras reações dos políticos americanos, que o culto da humildade - parte do legado cristão - há muito deixou de fazer parte do protestantismo americano e, se eu cheguei a pensar que aquela lição poderia ter a força e o significado que os protestos pacíficos anti-globalização não estavam tendo, cuidei logo de tirar o meu cavalo da chuva.

Movidos pela dor, mas principalmente pela arrogância e vaidade, os políticos americanos queriam vingar os seus mortos. Diferentemente do que o meu espírito cristão sonhou, eles não conseguiam ver aqueles mortos como consequência das tantas tragédias que os Estados Unidos vêm produzindo mundo afora no esforço de manter a hegemonia conquistada desde a II Guerra Mundial. Ao invés de aproveitarem a oportunidade para rever a insustentabilidade da sua política global, encontraram o motivo de que precisavam para recrudescer tal política.

Não sei se pelo meu ofício de antropóloga ou pela minha alma cristã, não consigo achar que os civilizados valem mais dos que os não-civilizados; não consigo achar menos terrorista o terrorismo americano porque é pretensamente civilizado. Assim como não consigo achar que os paulistas são melhores do que os fortalezenses ou estes melhores do que os cratenses e assim por diante.

A tragédia de 11 de Setembro não serviu para ensinar este princípio fundamental, nem para os Estados Unidos e nem para os que apóiam as suas políticas insustentáveis. De quantas tragédias os americanos, e aqueles que neles se espelham, precisam para entender que somos todos humanos, não divinos?

Muad’Dib, o anjo Francisco Gabriel e outros mistérios deste mundo de meu Deus...

Verdade: após ler os primeiros dois ou três comentários de Muad’Dib, desconfiei que ele fosse uma manifestação do meu anjo da guarda, Francisco Gabriel. Somente ele, tão próximo de mim, saberia como me atingir tão certeiramente. Então, estava eu me apaixonando pelo meu próprio anjo da guarda!? Por que havia ele escolhido o mundo virtual para se manifestar? Parece iconoclastia, blasfêmia, mas nenhuma novidade há nisso, inclusive dentro da própria igreja católica. Lembro-me particularmente do erotismo presente nos poemas de Santa Teresa de Ávila a Jesus Cristo. E Jesus Cristo, do jeito que é apresentado pela igreja católica, parece mais irmão do que pai... E é a idéia por trás do Deus-filho. Não somos deus, mas também somos filhos... Do mesmo jeito fui levada a pensar sobre os anjos: no mesmo nível dos irmãos e primos: uma proximidade e uma camaradagem difícil de encontrar nas relações entre diferentes. Um incesto menos grave, digamos assim.

Logo depois dos primeiros comentários quis saber mais sobre o autor e cliquei no seu nome para ver o seu perfil. Nada. Nenhum email. Queria saber quem era pessoa tão especial. Imaginei que fosse algum dos brasileiros de quem me aproximei na pesquisa em Chicago querendo brincar comigo. Também pensei que fosse algum amigo americano porque Muad’Dib comete alguns erros de português incomuns entre os nativos com a mesma formação que ele. Pensei que fosse o Darien ou o Brian. Mas eles não olhariam para a cultura americana como estrangeiros. Enfim, seja lá quem fosse era uma brincadeira, um enigma, mas também um presente. Era extraordinário descobrir que alguém poderia prestar tanta atenção ao que digo, ao que sou e fiquei encantada. Por que o pseudônimo árabe? Depois descobri que era um personagem daquele romance Duna, acho que foi Emma quem me ajudou com isso, ou ele próprio comentou alguma coisa... A partir de certo momento, Emma achou que ele fosse criação minha; que eu estava inventando a história toda, como já fizera no passado. Ela só acreditou que ele tinha vida própria porque certo dia, enquanto conversávamos no skype, ele postou um novo comentário. Um comentário a outro comentário dela, recém-postado. Ou seja, eu não teria condições de escrever e conversar tão concentradamente, tudo ao mesmo tempo! Mas ela disse que não importava, ficção ou realidade, era divertido e produtivo o encontro no blog.

Mas eu queria saber quem era Muad’Dib porque estava apaixonada e queria me aproximar mais, experimentar com ele outros aspectos da existência... Ainda em Riverside, numa tarde de vinhos e desejos, escrevi a crônica “Um outro eu... mas qual?” (http://bernadetebeserra.blogspot.com/2008/08/um-outro-eu-mas-qual.html) Era praticamente um apelo para ele se revelar. Sugeria que ele enviasse uma resposta privada. Mas, ao contrário, ele sumiu do blog por vários dias. Para mim, “muitos dias” uma vez que estava acostumada à nossa comunicação quase cotidiana. Depois reapareceu praticamente pedindo para continuar anônimo e explicando a sua ausência... O seu criador tinha uma vida real da qual precisava também cuidar... Além disso, sentiu-se intimidado e pressionado pela intensidade da minha crônica, dos meus sentimentos.

Passei a viagem Los Angeles-Fortaleza inteira tentando juntar as pistas oferecidas nos seus comentários, mas elas não me levavam a ninguém. Aproximavam-se bastante de alguns “suspeitos” apenas para depois desembocarem no nada. Circe me pergunta se não estou apaixonada por ele. Sim, claro, desde o princípio. Mas agora várias outras mulheres deste blog também sonham com Muad’Dib. Se ele aparecer teríamos talvez que pensar na constituição de um harém...

“Ousado” ele se imagina, como diz no mesmo comentário que postou o seu poema erótico. Ousado mesmo seria tirar a máscara, se revelar. Mas eu já não espero mais por isto. Deixo-o permanecer assim, enigma... Os nossos desejos e fantasias encontrando-se em todos os lugares inexistentes, como disse a Francinete. Tornando mais picantes e fantásticos os nossos cotidianos...

domingo, 7 de setembro de 2008

Viagem Chile-Peru: rumo à Santiago

a Circe Vidigal e Mari Chiba, que gostam de diários e viagens,

(estou postando esses relatos porque alguns amigos pediram... Eles se referem à viagem que fiz ao Chile/Peru em fevereiro deste ano da graça de 2008... Os computadores que "frequentei" tinham teclados diferentes dos nossos e nem sempre pude ser fiel ao meu amado idioma)

Santiago, 4 de fevereiro de 2008 Sao quase 8 horas e parece ainda de madrugada. Ficamos de sair de casa para um tour por Santiago la pelas 11... Tempo de sobra para digitar as anotacoes feitas ate agora.

Aeroporto Guarulhos, 3 de fevereiro, 9:30am
Quero voltar agora aa tempestade mental que me envolvia enquanto eu esperava na fila do check-in da Varig. Pensava no quanto as viagens me excitam; me carregam pra outros mundos e me poem em contato com os meus sentimentos mais profundos. Me poem em contato com o ser livre que ainda sou e que em tantas circunstancias imagino morto. Percebi, desde que cheguei ao hotel, que trouxe mais roupas do que o necessario. Na verdade, bastava 5 camisetas... e eu trouxe o dobro... Poderia ter-me consultado com o Lucas. Como me dizia o Paul, quanto menos, mais! Ele se referia aas palavras. Menos palavras, mais sentido, mais poesia, mais desafio. E, do ponto de vista da logica do vestibular da UFC, acrescentara Caio: menos erros. A bagagem alem do necessario eh uma metafora apenas. Preciso lidar com as consequencias das minhas escolhas... E fazer novas escolhas quando as anteriores nao me levam pra onde quero... Pelo sim, pelo nao, poderia encher a minha casa e a minha alma de avisos; viaje leve! quanto menos, mais!

O vocabulo " alma" me remete aa minha excitacao quando vinha do hotel. Palavras, ideias, sentencas rodopiavam aa minha volta como flocos de neve numa tempestade. Veio aa minha memoria o maior legado de O Denario do Sonho (Marguerite Yourcenar): " quando a alma eh surda, de nada servem as palavras."

Voo SP-Santiago
Estou escutando Kid Rock e me lembrando do Caio, que me ajudou a gravar as musicas que estou agora ouvindo... Estou me lembrando dele e de tantos outros anjos da guarda na minha vida... Quem me apresentou ao Kid Rock foi o Bill Schulte, um amigo querido de Riverside, que tinha/tem "pedigree" para ser qualquer coisa na vida e acabou se tornando jardineiro e produzindo as rosas mais cheirosas do mundo... E com isto criando problemas para si proprio e para varios maridos cujas esposas presenteou com essas rosas. Eu fui uma delas, embora nao me lembre de isto ter causado nenhum ruido particular na minha relacao com Sergio por isto. De fato, apesar de usar as suas rosas como instrumento de seducao, Bill nem estava tao disponivel assim. Era tao casado quanto eu e foi atraves do futebol da Raquel e da Bettina, sua filha, duas grandes jogadoras, que nos conhecemos e nos tornamos amigos. Depois que Sergio voltou com o Lucas para o Brasil, em meados de 1999, o Bill me confessou que se apaixonara por mim desde o primeiro dia que me vira. Era interessante conviver com a sua paixao que se transformava em rosas, poemas, longos papos regados a cafe, caminhadas pela Box Springs Mountains e viagens (com a familia!) aas praias proximas! Raquel e Caio achavam o Bill super "cool" e quando eu me apaixonei platonicamente pelo Armando eles acharam um tremendo mau-gosto. E estavam certos, como sempre. Porque platonica, a minha enfatuacao pelo Armando nao atrapalhava em nada a minha amizade com o Bill, ao contrario.

Diferentemente de todos os meus amigos, Bill era um nativo de Riverside e foi ele quem me ensinou sobre a cidade e a sua historia tudo que sei. Sobre a cultura das classes altas; a transformacao da paisagem com o crescimento de Los Angeles; como Riverside, com a producao de laranja, conseguiu, na primeira decada do seculo XX, ter a maior renda per capita do pais e se tornar famosa muito antes de LA. Tudo invertido agora. Um seculo depois do breve apogeu e do posterior e estonteante sucesso de LA, eh possivel que apenas um ou outro sobrevivente das classes dominantes de Riverside conte essa historia. Mas Bill tambem me apresentou a outros mundos: o do surf, por exemplo. E outros. Observo, atraves dele, a dinamica das amizades. Todas pressupoem tempo para gastar com o outro. (Depois de uns dez anos na pele de mulher, Deirdre me falava sobre esse tempo e esse investimento que desconhecia quando era homem, mas eu, ao contrário dela, conheci muitos homens que investiram na amizade). O Bill me comovia muitas vezes. Ele gostava das minhas mini-saias e um dia, saindo do Trader Joe's, me disse, apontando um casal de velhinhos "saudaveis": "ei Berna, eu te imagino daqui a algumas decadas como essa senhora aí e ainda usando essas mini-saias... e eu ainda te achando a mulher mais linda e mais sexy do mundo." Todo mundo que ama enxerga isto e enxerga seculos e seculos na frente, mesmo que a vida inteira nao dure mais meia hora. Um dia Bill me ligou aflito. Precisava conversar comigo urgentemente. Fomos para o parquinho do Family Housing. E ele me contou de Ted, grande amigo da adolescencia e dos primeiros anos de adulto. Ted era o cara mais bonito e mais cobicado do grupo. Nao havia mulher bonita que nao estivesse interessada nele. Depois se mudou pro Novo Mexico e foi um alivio para o Bill e seus amigos. Quem sabe as mulheres agora nao comecariam a prestar atencao neles? Bill me contou que no dia anterior recebera um telefonema dele. Estava passando por Riverside e queria encontra-lo. Bill foi ao seu encontro e quase morreu: Ted nao era mais aquele seu amigo, havia mudado de sexo; continuava muito bonito, mas agora sob o sexo feminino. Estava com a sua namorada/mulher... Ou seja, nao havia mudado de sexo porque nutria pelos homens qualquer desejo... Ao contrario. Bill ficou muito assustado com o encontro e queria conversar. Estava em crise. Nao de genero ou de sexo, estava em crise de tudo... Volto ao presente: O aviao acabou de decolar. Enquanto subia se descortinava aa minha esquerda a imensidao em que se trasnformou Sao Paulo...

(...)
A vantagem de voar Varig eh que ha vinho e nao custa 5 dolares como nos voos das companhias americanas. Enquanto almocava, conversava com Rosalba, uma venezuelana, mais ou menos 22 anos, companhia ate Santiago. Ela eh estudante de Relacoes Internacionais na Universidad Central de Caracas. Conversamos sobre varios temas: governo Chavez, linguas, hegemonia politico-economica. Ela tem uma visao mais imparcial do Gov Chavez, menos preconceituosa: acha que esta fazendo muitas coisas boas, mas lhe faltam delicadeza e diplomacia. Falamos em espanhol e ingles. Ela se entusiasma quando sabe que sou antropologa. E conversamos um pouco tambem sobre mim e o meu trabalho. As minhas descobertas sobre mim mesma e o mundo estudando brasileiros nos Estados Unidos. Pronto. Como vejo tudo em permanente transformacao, busco, agora, a Bernadete de Sumeh e dela so encontro a capacidade de sonhar... Tudo o mais se transformou, inclusive a forma como a enxergo e como enxergo Sumeh, seu eterno laboratorio existencial/poetico. Sumeh, como o sertao, tambem eh maior do que o mundo inteiro. Nao ha medo, surpresa ou traicao de que Sumeh nao tenha sido palco. Ainda ha pouco, quando caminhava do Terminal 1 para o 2 (aeroporto Guarulhos), eu me indagava sobre mim mesma. Meus sentimentos e desejos. E me sentia como imagino que se sente um monge budista: satisfeito. E essa satisfacao tinha a ver com a minha mais absoluta gratidao aa minha historia. Concentrava-me particularmente na gratidao aos meus pais. E por favor nao se suponha que ha aqui qualquer elogio ao que eles eram. Meio argentinianamente, eu diria que, se ha elogios a fazer nao tenho a menor duvida de que devem ser feitos a mim mesma... Pela capacidade de desde cedo transformar miseria em poesia... Falo do meu pai primeiro: eh possivel que ninguem no mundo tenha me ensinado mais sobre a solidao do que ele. Ao contrario de outros solitarios que conheci depois, ele nao temia a solidao. Entregava-se a ela de corpo e alma. Foi atraves da observacao da forma como ele lidava com a solidao que descobri o prazer do cigarro e da, entao, musica popular brasileira. Nelson Goncalves, Angela Maria, Cauby Peixoto... uns xotes de Luiz Gonzaga. E Amalia Rodriguez e Carlos Gardel. Eu queria fazer parte daquela solidao e ai inventei Heloisa, uma personagem de um dos meus romances que, ao contrario de mim, tem lugar na solidao do seu pai. Aprendi com Sebastiao Beserra de Souza que a solidao eh um excelente lugar e talvez por isto nunca me impressionei com a solidao dos Buendia. E sempre conversei sobre isto com os meus irmaos mais proximos e mais dados aas filosofacoes: Fabio, Lais, Katia, Klenia e Wallas. Mas eu sei que eh dificil ficar sozinha... Uma missao quase impossivel. Quando escolhi ir para um hotel ao inves de ficar na casa de alguem conhecido em SP, o que eu queria era ficar sozinha. Mas sao muitos os apelos de companhia: televisao, livros, telefone, internet. Entreguei-me aa companhia de Robert Pirsig (O Zen e a Arte de Manutencao das Motocicletas). Li-o pela primeira vez ha exatos 21 anos, em 1987, quando Kel nasceu. Li e me impressionei. Convenci varios dos meus amigos a tambem empreender a aventura de viajar com ele. Tornou-se uma das minhas mais importantes referencias... Eu nao aprendi nada sobre o zen, mas entendi um monte sobre a minha propria loucura e passei a relativiza-la e respeita-la ainda mais. Como eu, tanto o Robert Pirsig, quanto a sua personagem, Phaedro, haviam se aventurado pelas freeways e atalhos da loucura. Mas a sua loucura, diferentemente da minha, tinha origem noutros desafios. Sem me aprofundar numa busca de causas e efeitos, comparo os caminhos e descaminhos da loucura apenas aaqueles que me oferece o amor. A poeisa tambem, claro, oferece muitos insights. Mas de tudo que ja li somente dois poemas me levam dos pincaros do ceu aas profundezas do inferno: Song of the Open Road, de Whitmann, e Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke. Tabacaria, de Pessoa, também... As vezes leio apenas alguns versos desses poemas para me lancar numa busca de fazer inveja a Zenon (A Obra em Negro).

Uma conclusao provisoria, para quem precisa de conclusoes: a vida me assusta menos agora porque tambem me assusto menos comigo. Claro que ainda temo muitas experiencias, entre elas, a das drogas, da religiao e da criacao literaria. O amor que, de acordo com a Maria Rita Kehl, eh a droga mais pesada, ja nao me assusta mais. (Acho que "drogas" eh a categoria mais generica das citadas acima porque nela cabem o amor, a criacao literaria e a propria religiao...)

Sao quase duas da tarde e fomos avisados de que estamos nos aproximando de Santiago. O espetaculo da cordilheira dos Andres com os seus picos nevados confundindo-se com as nuvens eh mais apocaliptico do que o do Bryce Canyon. Tao extraordinario que me contenho para nao aplaudir. Rosalba ainda faz o gesto de aplauso e rimos cumplices. Estamos quase chegando. (....) Enquanto esperava na fila do banheiro, observava o tapete denso de nuvens e me imaginava caindo sobre elas como se sobre um colchao de penas... macio como meus seios... e seguro como o colo da mae...

Reencontro II

a Lúcia Couto

Voltava de uma farra, ante-ontem, quase madrugada, quando encontrei o seu recado no orkut. Difícil me entregar a Morfeu quando Lúcia Couto "esfuziantemente" me convida à vigília e à memória:

“Linda... louca... poetaaaaaaaaa!!!! Depois de muito clicar para cima e para baixo da maneira como minha cegueira cibernautica me permite, buscando fazer comentários no seu blog, cujo endereço consegui a partir de um encontro-fortuito-e-civilizado (num supermercado de shopping) com a Cláudia, caí na tua página do orkut...Uffffa é cansativo até pra narrar o fato. Enfimmmm...quero dizer que estou radiantemente esfuziante por te encontrar nas crônicas que li. O amor intelectual aflorou com força sumehriana!!!!! Beijos!”

Ri, feliz: a Lúcia de sempre, a Lúcia apaixonada, querida, que conheci e convivi por vários anos desde 1983, quando nos encontramos naquela turma de mestrado de sociologia rural, no campus II (Campina Grande) da Universidade Federal da Paraíba. Era uma turma pequena, 5 alunos, e até hoje me lembro de todos: Lúcia, Miguel, Ildes, Fernando Barroso e eu. Antes de encontrá-la pessoalmente soube que a sua prova havia sido a melhor do concurso. Segundo a mesma fonte, estávamos mais ou menos empatadas no nosso desempenho: meu projeto de pesquisa também havia sido o melhor. Mas isto não me dava conforto. Difícil aceitar que alguém vindo da Medicina tivesse tido o melhor desempenho num concurso para o qual, pelo menos eu e o Miguel havíamos sido (mal?) preparados durante os quatro anos de Bacharelado em Ciências Sociais! Insisti com a “fonte”: certeza mesmo que essa tal de Lúcia Couto fez a melhor prova? Despeitada, não gostei de Lúcia “à primeira vista”. Foi ela quem pacientemente foi destruindo as minhas resistências e me seduzindo. Acho que já a partir das primeiras semanas nos tornamos “best friends”... Ou meu despeito era frágil ou sua capacidade de sedução infinita... Parceiras de longas horas de estudo e co-autoras em vários papers das disciplinas: passávamos horas "viajando" nos títulos dos trabalhos: tinha que ser bonito, tinha que ser poético... Do que me lembro neste exato instante: o quarto de estudo, no quintal da sua casa, e nós duas devorando teorias da modernização da agricultura, campesinato e capitalismo e, inocentemente, destruindo os nossos pulmões com maços e maços de cigarro Hollywood. De repente, ela se levantava, pegava o violão e dizia: vou tocar uma música pra tu. Tocava e cantava sempre composições de sua própria autoria.

Quando a conheci, Lúcia já era “famosa”: ela e a sua banda haviam sido os vencedores no festival anual de música da cidade alguns anos antes. No ambiente acadêmico também era conhecida: mulher do professor Paulo Nakatani.

Mas Lúcia sempre foi muito mais do que tudo isso. Nunca encontrei tanta paixão e capacidade de trabalho e amor em alguém! Linda, alta, magrela, cabelos longuíssimos, felicíssimo produto dessa nossa mestiçagem desregrada, ela queria, provavelmente ainda quer, cuidar de todo mundo. Me contou histórias de Paris, de viagens de motocicleta, de festivais de música, do seu descontentamento com a medicina... abandonou a medicina, depois de uma especialização em microcirurgia, aparentemente sem remorso... Ensinou-me tanta coisa sobre culinária, arte de receber amigos, sexualidade, (idioma) francês...

Enquanto eu ainda me perdia no meu medo de tudo, Lúcia parecia já uma mulher livre, “com licença eu vou à luta”. Não parecia ter dificuldades para decidir a vida de todos à sua volta... Era firme, até meio autoritária às vezes, mas sempre muito querida e agradável. Inquieta, mas paciente. Em troca pelo que eu lhe oferecia de sociologia, antropologia, literatura e cariris paraibanos, ela me levava para passeios por muitos planetas...

Ontem, quando vi os recados que ela deixara no orkut, corri para as pastas de cartas que “coleciono” e, copio abaixo, os primeiros trechos da primeira carta sua que encontrei:

“Berlin, 9.10.92. Não direi hoje “querida Berna” pois seria pouco diante do que de emoção a leitura da tua carta evocou. A saudade infinita, ao desejo grande do reencontro impossivelmente imediato na varanda ou no boteco, soma-se aquela carência intelectual desgraçadamente enorme de quem até hoje só se encheu de perguntas?????????????????????? sem respostas plausíveis. Com todas essas considerações, iniciarei assim: Amada Berna! Esperei muito pela tua carta para te sentir mais perto. Afinal, durante a leitura se consegue ouvir a voz e perceber imaginariamente os gestos de quem escreve... Sinto muitas saudades!”

A carta prossegue por muitos longos parágrafos cheios de emoção e de descrições e reflexões sobre o que andava vivendo em Berlin naquele outono... Eu lhe consultava sobre a vida familiar em terras estrangeiras e ela me motivava a empreender tal aventura o mais rápido possível. Somente três anos depois, eu, Sérgio, Lucas, Raquel e Caio finalmente aterrissamos em Los Angeles e, meio maravilhados, meio assustados, navegamos pelas freeways que ligam Los Angeles à Riverside e lá ficamos por cinco anos.

O que aconteceu conosco? Com a nossa amizade? Por que ela intitulou “Reencontro” ao poema que ontem me dedicou? Não sei se reencontro é a melhor palavra porque, verdade verdadeira, nunca nos separamos ou nos perdemos uma da outra completamente. Os nossos corpos sairam perambulando por aí, em busca das experiências de que precisavam, mas as nossas almas, do jeito delas, permaneceram grudadas.

Mas é verdade, os movimentos da vida de cada uma criaram essa longa pausa na nossa comunicação mais profunda, como se propõe outra vez agora... Mas foi uma pausa entrecortada por encontros breves, aqui e ali, quando ela veio nos visitar uma vez ou quando eu ia para Campina Grande no São João... Também nos encontramos há uns três anos na sua casa cornucópia em Pipa. Mas é possível sim, que a partir de certo momento, eu tenha achado que Lúcia era "demais" pra mim. “Demais” no sentido de Fernando Pessoa, em Tabacaria. Era coisa demais que a sua companhia mexia, acordava, indagava. E eu, nessa minha limitação canceriana, precisava me manter concentrada na minha caminhada meio trôpega, meio inviezada, quilômetros atrás dela... Mil coisas novas ao meu redor e eu tentando viver e compreender: filhos, marido, trabalho... Meu Deus, meu Deus... tanta coisa!

Lúcia, querida, que alegria que estas Sumehrianas me trouxeram você! É bom saber que depois de todos esses afagos virtuais, brevemente nos abraçaremos ao vivo e a cores... É claro que eu te amo. Tim-tim!

sábado, 6 de setembro de 2008

Reencontro

(Tantos encontros e reencontros que estas Sumehrianas estão rendendo... Amanhã falo mais sobre isto. Mas ofereço agora ao leitor este poema lindo que recebi de Lúcia Couto, uma mulher linda que tive o privilégio de encontrar no primeiro dia de aula do mestrado em sociologia rural, em Campina Grande, há quase mil anos... ou quando mesmo, meu Deus?)

Para Berna


Agora que as crianças dormiram
Aquele sono de infância que
nossas memórias guardam
podemos, desde nosso silêncio
ocidentalmente ocupadas
recuperar liames
enquanto pessoas amadas.
Amor jamais corrompido
Pelo tempo passado
Entre um encontro e outro...
Jamais consumido
No cotidiano desencontrado
De pessoas alheias
Ou definhantes sentimentos
Na hipocrisia pautados...

Não...não fomos nós!

Agora que as crianças dormiram
Permitindo aos adultos a deixa
De buscar seus próprios cerrados,
Vamos nós por em dia
Da nossa vida o regaço.
Vamos nós de alegrias
Preencher o terraço
Da casa que não conhecemos
Que não construímos
E que talvez... tanto quisemos.
Projeto presente em cada sono
Cada sonho comunitário
Que para além
De qualquer chavão revolucionário
Era parte de quem re-parte
Por um devir visionário.

Sim...fomos nós!

Agora que as crianças dormiram
Que se nos cheguem
Todos os tempos e palavras não ditas
Que se preencham todos os espaços
Dos quais a vida
Com seu bom(?) senso nos privou.
Que se nos cheguem
Todos os viajantes que nem cumprimentamos
E que menos ainda amamos.
Que se nos cheguem
os tempos de hoje... surrealista pintura
como os ventos que levam os invernos
como os amores que aliviam os infernos
como as dores que obrigam à cura!

Sim...somos nós!

Agora que as crianças dormiram
Que os homens se foram
Em sua busca insana
À procura do nada
É nossa vez de,
Assim como é sangrar
Uma vez por mês,
Permitir à palavra a fluidez
E ordenar a emoção do pensamento
De maneira que de agora em diante
E até o fim dos nossos tempos
Nenhuma lacuna
Ou estanque momento
Venha nos fazer lamentar
Quando uma ou outra
Parar de respirar
Em rendição à vitória do tempo.

Lúcia Couto

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

“Solidão Equilibrista” no mundo, finalmente!


Comecei a sonhar e viver o mundo dos livros antes de desenvolver qualquer consciência sobre o mundo mais concreto ao meu redor. Lembro-me, a partir dos dez anos, a felicidade que sentia quando ia aos Correios receber os livros que havia pedido às Edições de Ouro. Meu coração batia forte enquanto eu subia a ladeira da Sizenando Rafael correndo para chegar em casa e abrir logo o pacote. Até hoje guardo comigo o cheiro daqueles livros recém-chegados da longa viagem do Rio de Janeiro a Sumé... Entrei nesse mundo pelas mãos e histórias de Kátia, minha irmã mais velha, outra devoradora de livros. Na loja de papai, onde trabalhávamos todos, eu a ouvia, nos dias mais vagos da semana, conversando com seu Inojosa ou Seu Miguel Guilherme sobre os livros que estava lendo. Sempre achava fascinante aqueles mundos dos quais falava e o que mais queria era poder habitá-los.

Não sei exatamente quando comecei a querer escrever livros... acho que foi desde que comecei a lê-los. Queria recontar as estórias lidas porque nunca me conformava com os seus finais... ou alguns dos seus desenvolvimentos. Por que elas tinham que ser contadas sempre do mesmo jeito?

Já a poesia, do jeito que compreendo hoje, me foi apresentada mais tarde, por Álvaro Luís Guedes Pinheiro quando nos encontramos no segundo ano científico, no Pio XI, em Campina Grande, 1977. Por isto e pelo amor que sentimos um pelo outro, dediquei Solidão Equilibrista a ele. É quase um filho nosso... Na verdade é um filho de muitos pais e mães... Mas a presença de Álvaro na minha vida foi crucial para que esse livro de poemas viesse um dia a existir. Meus filhos, Lucas, Raquel e Caio também. Por isso que dedico também a eles; "aos bem-te-vis do meu quintal... e a todos os seres e dúvidas que não me deixam dormir mais do que o necessário..."

Escrever poemas eu escrevo de vez em quando... Aqui e ali. Esporadicamente. Não sou uma poeta como é a Olga, o Zé Netto, ou era o Álvaro... É quase um milagre que tenha conseguido reunir o suficiente para um livro. Mas eu sempre quis contar e publicar estórias... Não que as escrevesse; de fato, escrevia apenas cartas e diários. As histórias eu apenas imaginava... Tinha medo da escrita, achava quase um sacrilégio escrever... Fui, através da antropologia, perdendo esse medo e, de vez em quando, escrevendo um conto ou rascunhando o início de um romance. Tenho arquivos e arquivos com contos e romances inacabados... Esperando às vezes, para serem concluídos, apenas algumas horas da minha dedicação...

Solidão Equilibrista é também filho de uma parte minha que não quer mais negociar com aquela que está sempre em fuga da literatura e se abriga, medrosa, nos relatos antropológicos e noutras formas de escrita que não têm tanto compromisso com a revelação da alma. Decidi publicá-lo desde que o meu livro, Brasileiros nos Estados Unidos, saiu, New York. O meu lado mais literário sentia-se meio traído... Como assim, primeiro a antropóloga e depois a escritora?

Juntei uns 30 ou 40 poemas e pedi ao Seu Carvalho para dar uma olhada e ver se se inspirava por aqueles versos o bastante para escrever um prefácio. Depois de poucos dias, recebi seu telefonema dizendo que já escrevera o prefácio; que gostara muito dos versos que eu lhe apresentara.

Poucos vezes na minha vida senti-me tão feliz quanto naquela tarde em que li, pela primeira vez, os seus comentários sobre o meu livro. Li e reli o seu “prefácio” centenas de vezes... Era uma carícia na minha alma... e que eu não queria que terminasse nunca... Isto foi há quase quatro anos, em fins de outubro de 2004. Depois que meu livro, Brazilian Immigrants in the United States: Cultural Imperialism and Social Class, saiu eu não tive mais sossego: fiquei viajando muito para dar palestras nos Estados Unidos e não tinha tempo de me dedicar a publicar o livro de poemas... Mas fui fazendo uma coisa e outra e outra parte importante do livro que foi feita já nesse período foi a capa: Kinha e Ado, amigos de Campina Grande, produziram uma capa que é a minha cara... É a cara do conteúdo do livro... Com todo o respeito pelas capas lindas que há por aí, a de Solidão Equilibrista é a mais linda do mundo...

Desde o ano passado, quando voltei de Chicago, iniciei o trabalho de produção do livro, dessa vez era sério, eu queria ver o livro publicado, mas não tinha pressa, queria que fosse bem produzido, afinal já esperara tanto tempo! Meu querido amigo, e ex-aluno, Gilberto Machado, me apresentou a dois artistas, seus ex-alunos do CEFET: Lyse Horn e Leo Brum. Eles ilustraram o livro. Então, é um livro superlindo, que até as crianças gostarão de pegar, de olhar, porque tem figuras! Aproveito para agradecer aqui aos dois pela disposição de se debruçarem sobre os meus poemas e se deixarem inspirar por eles para me ajudarem a produzir um livro mais bonito, mais delicado...

Mas foi o trabalho paciente de Yone Almeida que deu ao livro uma diagramação quase perfeita... Ela “vestiu” os poemas... brincando com elementos da capa nas páginas internas onde há espaço para tais brincadeiras... Uma graça... Thanks Yone, pela sua paciência e pelo seu entusiasmo. Completam o livro o posfácio de Ireleno Benevides, poeta e colega de UFC, e a orelha de Nilze Costa e Silva, conhecida poeta e fundadora e colega nos Poemas Violados. Não posso deixar de agradecer também à gentileza e paciência do editor, Cláudio Guimarães, e de todo o pessoal da imprensa universitária da UFC, sempre tão pacientes com as minhas demandas: Charles, Heron, Luiz Carlos, Leonora...

Então é isto: estou muito, muito feliz de dar a luz a esse livrinho tão querido e tão esperado... Vou já-já providenciar o seu lançamento em Fortaleza e nas cidades onde tenho amigos poetas... E aí convido todo mundo!

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Antes que Floripa e Jericoacoara se percam pra sempre...

Lar doce lar. Alívio e sofrimento... Alívio porque é bom mesmo chegar e espalhar tudo e não ter que negociar com ninguém o próximo passo, a próxima hora... Sofrimento porque, após esses primeiros instantes de usufruto da libertação do “outro”, tenho que me decidir sobre o que fazer com o meu excesso de liberdade... E agora, o quê?

Quase igual à história do “pedi e obtereis” da prece, pedi ao meu chefe, Nicolino Trompieri, uma trégua naqueles cursos introdutórios de mil alunos e ele me concedeu... Agora estou ensinando apenas duas disciplinas: Antropologia da Educação, no curso de Pedagogia, e Pesquisa Etnográfica, na pós-graduação em Educação. Fizemos esse arranjo porque eu o convenci de que se não escrevesse o “livro” da pesquisa de Chicago agora, jamais escreveria. As aulas às turmas introdutórias de 50-60 alunos são uma espécie de alucinação da qual só me dou conta quando tudo passa, mas, enquanto dura, não dá para se envolver com mais nada, apenas seguir o conselho da Marta Suplicy: relaxar...

Agora, pois, tenho tanto tempo livre que parece até que estou diante da vida eterna... Para não me atrapalhar, o que é difícil, porque sempre me atrapalho com tudo, preciso escrever tudo que tenho que fazer e dividir o tempo entre elas... Uma agenda rigorosa.

Este blog será uma das coisas que tenho que fazer: a que mais me convida agora. Acho que vou trazer o “livro” pra cá: é um jeito de não escrever sózinha. Depois penso nessa história complicada de autoria e co-autoria, mas neste exato instante, me dou conta disto: que posso escrever o “livro” aqui e aí me sentirei menos só...

Eu, que vivo dizendo por aí, que não tenho medo da solidão, nem da morte e nem de Deus, agora com essa história de dependência com este blog... Pronto, é isto: a escrita no blog é uma prova da minha carência do outro: o leitor, o comentador... E os meus diários de verdade, que andam meio abandonados, são mais um encontro comigo, com Deus: não preciso de feedbacks quando os escrevo... A própria escrevinhação já é o feedback... a cura.

Enfim, cheguei, acho, embora às vezes ache que não chegarei nunca mais porque estarei sempre em trânsito... É uma sensação esquisita, mas também confortável... Não quero falar sobre isto agora... Agora preciso organizar umas anotações para a aula de Pesquisa Etnográfica...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A bela e provinciana Floripa

(Florianópolis (Córrego Grande), 26 de agosto de 2008)

Quero começar explicando que não há nenhuma conotação pejorativa no adjetivo “provinciana” do título da crônica, ao contrário. Poderia ter usado outro adjetivo: aconchegante, por exemplo. Mas provinciana rende mais palavras, mais explicações. Então, eis porque.

Ontem, enquanto caminhava com o Lucas para a casa de Felipe, seu amigo, me lembrava dos tempos de antigamente quando ia passar férias na casa de “vózinha” e caminhávamos do seu sítio/fazenda até o de Tio Ananiano. Claro que o Córrego Grande, bairro onde estou, não é tão rural assim, inclusive os latidos fortes dos pitbulls aqui e ali, que me assustavam e irritavam, também lembravam que estávamos numa cidade grande. Talvez tenha sido a familiaridade do Lucas com lugar o que me fez lembrar mesmo de “antigamente”: a casa do Felipe parecia ser uma extensão da sua. Caminhávamos pelas ruas como se elas já lhe pertencessem: tal como um anfitrião nos mostrando os vários cômodos da casa. Íamos à casa de Felipe com dois propósitos: levar o lixo orgânico daqui e checar a internet. Checar a internet nada tinha a ver com as necessidades do Lucas, mas com as minhas: um dos meus vícios. O Lucas aproveitava a minha necessidade para alimentar a sua horta. E isto é extraordinário: não tendo mais o seu próprio sítio para cultivar, como em Fortaleza, ele transformou o quintal do Felipe nesse lugar onde pode continuar capinando, jardinando...

Conto do começo: quando depois de dois vôos da Gol finalmente cheguei em Floripa, lá estava Marcionília me esperando com o seu sorriso enorme. O Lucas tinha aula logo em seguida e, depois de uns quinze minutos de viagem de visões panorâmicas, nos deixou nas imediações do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Era hora de almoço e Marcionília me levava para o self service do restaurante dos servidores. Que alegria ver servidas como comuns todas as verduras e legumes que em Fortaleza são excepcionais: brócolis, brotos, beringela, vários tipos de alface, couve-flor, rúcula... que felicidade. O caminho do aeroporto para o Córrego Grande já oferecia uma idéia razoável da cidade: morros e praias... ou lagoas? Mas, diferentemente do Rio de Janeiro e Salvador cujos morros são povoados pelos pobres, aqueles pareciam mais “arrumados”, mais ricos. Mas Lucas e Marcionília me explicam que não, que aquelas são as favelas daqui. Chique, hein? E aí vão contando outras coisas da sociabilidade florianopolitana: não há praticamente aquela violência tão comum em Fortaleza e na maioria das cidades com população superior a meio milhão de habitantes (aqui tem 800 mil). E até praia para surfar, como em Fortaleza, Lucas também tem. Quase em casa: uma temperatura mais fria apenas, parece ser a única grande diferença. Eu não perguntei nada ainda sobre os preconceitos dos catarinenses contra os nordestinos... Será que nem isto?

Estou aqui, na aconchegante quitinete de Lucas e Marcionilia, esperando que ela chegue da aula de dança para inventarmos algo pra comer ou sair à cata de um restaurante. Lucas ficará dando aulas de inglês até as 22 horas. Quando cheguei da conferência, Lucas ainda estava aqui e me contou, sem muito sofrimento, que a sua carteira e celular haviam sido roubados... Havia ido surfar, com o Felipe, e deixaram carteiras e roupas no “esconderijo” que sempre deixam e quando voltaram do surf só encontraram as roupas. Menos mal. Mas, enfim, além do transporte público que todo mundo reclama, Florianópolis também tem o “descuidismo”... Mas eu não experimentei nenhum dos dois ainda e, por enquanto, Floripa é para mim sinônimo de aconchego, comida saudável, farta e barata e montanhas lindíssimas que circundam todos os lugares por onde vou...

"Finas fatias de viagem cortadas no ar..."

Aeroporto Pinto Martins, 25 de agosto de 2008
5:39am
São coisas diferentes que fazemos em aeroportos e rodoviárias. A memória é vívida porque há apenas 4 dias fiquei esperando na rodoviária de Fortaleza para ir para Jericoacoara. Lá não enxergo nenhuma possibilidade de, como aqui, sentar no chão, perto de uma tomada, e ligar meu computador. Os passageiros já se espremem perto do portão de embarque. Nunca faço isso. Nunca fico na fila. Permaneço no saguão até o último instante; em geral sou das últimas a embarcar. Observei hoje, enquanto na fila do check-in, que aprendi a gostar de aeroportos. Inclusive, gostar dessa distância “ótima” que os passageiros estabelecem entre si: ninguém incomoda ninguém; ninguém pergunta nada a ninguém. E eu posso me perder em paz nos meus delírios, nas minhas escrevinhações...

Há uns instantes senti como se tivessem acendido uma enorme lâmpada amarela atrás de mim. Meio incomodada me virei para ver o que era: o sol. Enorme, iluminadíssimo, amarelo-dourado. É sempre bom o sol nascendo... Agora está incomodando um pouco... mas ainda assim é bom. Me lembrei agora de uma entrevista com um desses físicos famosos nacionais, uma vergonha que não me lembre do nome dele porque é um dos mais famosos. Ele falava sobre o resfriamento do sol e evocou uma imagem que nunca mais me saiu da cabeça porque extremamente poética e irônica: o sol com uma vela na mão. Dizia que podia sim, que o sol podia, literalmente, ficar em tal situação. E eu fiquei morrendo de pena do sol: quem te viu, quem te vê...

Aeroporto Antônio Carlos Jobim (Galeão), 25 de agosto de 2008
10:19am
Desembarcamos há pouco e estou aqui, diante do portão pelo qual terei que passar para embarcar para Florianópolis. Saudades do Lucas e da Marcionília e vontade de conhecer essa cidade de que todos falam tão bem, quer dizer, como nada é perfeito, dizem, tem o pior transporte público do país.

Não posso perder a oportunidade de falar mal da Gol. Nem me lembrava mais que era assim, que o serviço de bordo era o pior do mundo. Imagine que nem café servem! Aí servem umas barrinhas de cereais, refrigerantes, suco de laranja e água. A aeromoça, chatíssima, estridente, me perguntou: quer cereal de banana ou maçã? E, para beber, água, suco ou refrigerante? Resolvi me comportar como uma surda e respondi: quero café. Ela, bem alto, e olhando pra mim como se eu fosse total idiota: “não temos café, senhora, apenas água, refrigerante e suco.” Aí eu quis suco de laranja, estava morrendo de fome, tinha que escolher mesmo, mas o fiz sob protesto. E continuei protestando com o outro comissário de bordo: um rapaz gentil, de voz sossegada e baixa. E ele explicou que a Gol nunca serviu café. Eu argumentei que inicialmente, quando as suas passagens eram 40% mais baratas que as das outras companhias, tudo bem. Mas agora?! Ele concordou. Depois eu disse: “devia ser mais “brasileira” e servir café.” Ele concordou também e me disse que todo mundo reclama. E me ensinou: vá ao site e também reclame. Mas também contou que isto vai mudar: a empresa está ouvindo as queixas dos consumidores. Eu não quero saber: a partir de agora só viajo pela Gol se for naquelas promoções de 100 contos ida e volta. Pronto. E aí trago minha lancheira. Mas aí, vejam, não foi uma reclamação vã: eu já estava completamente perdida nas aventuras antropológicas de Hortense Powdermaker, de quem voltarei a falar proximamente, quando o gentil comissário de bordo aproximou-se de mim e perguntou se eu queria um pouco do café que ele havia preparado para ele. Fiquei comovida e meio encabulada, sei lá, sentindo-me meio discriminada, positivamente, mas discriminada. Disse que sim. E ele trouxe o café. Como todos os copos que usam são aqueles transparentes para refrigerantes, ele usou o seguinte disfarce para não criar uma situação de protesto generalizado: usou dois copos; sendo que o que estava com café foi envolvido em guardanapos e posto no segundo, de modo que o conteúdo tornou-se invisível. Agradeci com a mão no coração, interrompi a minha leitura e comecei a degustar aquele café horroroso, preparado com nescafé, como se fosse um Kauai (Hawaí). Dali a instantes ele me surpreendeu de novo: trouxe biscoitos cream crackers e maizena...

Aproveito o ensejo para fazer um elogio à gentileza. Há algo mais comovente e benvindo do que a gentileza? Digam o que quiserem dizer do mundo moderno, burguês, capitalista, mas a invenção da gentileza só merece elogios... Não estou falando da cordialidade servil, colonizada, medrosa... Estou falando da gentileza de escutar o outro; colocar-se no seu lugar e dialogar com ele dessa perspectiva.

sábado, 23 de agosto de 2008

De ficção e ficções...

No dia 13 de agosto, um dia antes de voltar ao Brasil, inspirada pelos comentários de Muad´Dib a postagens anteriores, escrevi a crônica “Um outro eu... mas qual?” Recebi vários comentários, mas um deles, o de Emma, provavelmente não foi compreendido por muita gente. Copio o que ela escreveu: “Lembranças... Berna, desde ontem à noite fiquei pensando em uma pegadinha que você me fez há uns 20 anos atrás... sobre uma paixão... e me veio à mente coisas desse tipo. Quem é quem no mundo de hoje? Quem é a criatura e quem é a criadora??? Seria divertido.”

Emma sugeria que Muad´Dib fosse uma criação minha. Recebi o comentário como um elogio. Ela sugeria que eu era uma ficcionista tão imbuída do seu papel que transformava em ficção a própria vida. Conto agora a história da “pegadinha” do jeito que me lembro para depois voltar a falar de Muad´Dib.

Longos idos meados da década de 1980. Estava me recuperando do final do namoro com Valdemar e dividia um apartamento com Emma C Siliprandi, em Campina Grande. As duas fazíamos mestrado em Sociologia na UFPB. Para ajudar a sarar a dor de cotovelo fiquei viajando mais sistematicamente para João Pessoa: pela praia, por Laís, pelos amigos Giovanni, Leo e Ana Tereza e o recém-conhecido, mas já querido, Roderick Fonseca. Emma estava me achando meio silenciosa, meio esquisita. Eu já não sofria mais tanto pelo final com o Valdemar e, portanto, já não queria falar mais disso. Acho que o que vivíamos no mestrado não rendia naquele momento conversas particularmente entusiasmadas.

Emma e outros amigos achavam que o melhor jeito de me libertar do final da história com Valdemar era entrar numa nova história. Havia até certa pressão nesse sentido... Um dia, após voltar de JP, Emma me perguntou: “Ei Berna, tudo bem?” Naquele exato instante comecei a lhe contar a história desse cara esquisito que eu havia encontrado em JP... Naquele mesmo dia, escrevi no meu diário sobre ele. Meu silêncio passou a ser sinônimo de concentração no cara e naquela paixão esquisita. Passaram-se várias semanas, várias idas a JP. Emma sempre me perguntava por "ele" e eu contava como as coisas estavam indo... As férias chegaram e Emma viajou por um mês inteiro . Quando voltou, estava ansiosa para saber sobre o meu “namorado”. E eu, completamente desprevenida, respondi: “que namorado?” Ela: "o teu namorado esquisito, guria!"E aí aquela história: a vida inteira para adquirir confiança e apenas um instante para perder. Eu me traí com a minha resposta. Havia esquecido a própria ficção. Tinha inventado a história do namorado esquisito porque achava mais fácil atribuir o meu ensimesmamento a ela do que às dúvidas e buscas.

Emma não me perdoava por eu ter “inventado” a história. E me olhava ora como a uma louca ora como a um monstro. Pelo jeito, até hoje não me perdoou. Enfim chego ao presente. A Muad´Dib e à hipótese de Emma de que ele também pode ser ficcional. Eu tenho certeza que é. Apenas não é cria minha, isto eu garanto. Não me sinto capaz de criação tão extraordinária, pelo menos não ainda.

Como Emma e outros leitores deste blog, também sinto muito a falta de Muad´Dib... Não sei porque ele sumiu, sei que foi imediatamente após a crônica em que revelo o impacto que têm os seus comentários sobre mim... Pois é, não sei porque sumiu... mas adoraria que voltasse...

Ganhando o mundo, camará!

(Jericoacoara, sábado, 23 de agosto de 2008, 6:56h)

Acabo de voltar da padaria Santo Antônio, um dos pontos turísticos de Jericoacoara. Acordei 5:30, morrendo de fome e Júlio, um dos rapazes que cuida desta pousada, me indicou essa padaria, que abre todos os dias às duas da madrugada e fica aberta até enquanto há pão. É\ uma história simples e meio boba como quase todas as histórias das tradições. O dono, cujo nome esqueci de perguntar, costumava abrir 6 da manhã, com pães quentinhos. Com o aumento do turismo a fila que se formava de manhã foi crescendo e ele foi sentindo a necessidade de acordar mais cedo para ter condições de atendimento da demanda. O seu filho, o senhor que me serviu hoje, me disse que em geral começam a trabalhar umas 9 ou 10 da noite para às duas abrirem com pão fresquinho. Eu tinha algumas memórias da primeira vez que fui lá, em janeiro de 2001, quando estava namorando o Marcus. Lembrava-me de uma mesa longa, onde todos os fregueses sentavam juntos. E lembrava também de um pão grande, especial, tipo panetoni, servido com café. Hoje ele me disse que é um pão de coco. E também servem o pão de queijo deles que nada tem a ver com o tradicional mineiro. Chama-se pão de queijo apenas porque acrescentam queijo à massa pronta antes de levá-la ao forno. Não sei, mas acho às vezes que as pessoas acham meio esquisito que eu fique perguntando tanta besteira... Sempre fui assim e quando estou longe dos meus filhos ou amigos aproveito para ser mais ainda. É divertido. É um jeito de me aproximar mais das pessoas porque, apesar de elas inicialmente acharem esquisito, daqui a pouco estão me confidenciando os seus maiores segredos... aqueles que nem sabiam que guardavam.

Fiz o que pude para não estar aqui, não vir pra cá. Não consegui preparar a palestra para o encontro internacional da Capoeira Brasil, como queria. Me atrapalhei entre o pouco tempo entre a volta da Califórnia e o encontro. Também fiquei meio pirada com essa história de pressão alta. E expliquei pro Armando, o ex-aluno que me convidou, que não viria por isso. Liguei na quarta, dia que começou o encontro. Ele insistiu para eu vir assim mesmo, mas eu o convenci que não, era uma questão de saúde e tal. E ele aceitou. Mas apenas provisoriamente. No dia seguinte me ligou insistindo e eu disse pra ele que, além da pressão alta, tinha o problema de não ter tido tempo de preparar uma apresentação como eu gostaria. E ele disse que poderíamos fazer outro formato: uma mesa redonda onde todos os presentes falariam mais livremente da sua experiência-pesquisa com capoeira. Eu falaria da expansão da capoeira em Chicago, parte da minha pesquisa de pós-doutorado.

Aí vim. Na quinta-feira de manhã a minha pressão já havia chegado aos números normais e, consciente observadora de mim mesma, levantei uma hipótese: a pressão subira em função do stress da viagem à Califórnia , mas talvez, principalmente também porque lá eu não estava me exercitando como costumo fazer em Fortaleza. Foi durante a caminhada da quinta-feira que me dei conta disto. De fato, ao longo de quase três semanas em Riverside, caminhei apenas umas quatro ou cinco vezes, o resto era fazendo compras, conversando com Kel ou amigos, cozinhando, ou escrevendo, em casa ou nos cafés. É por isto também que quero voltar à minha rotina em Fortaleza o mais rápido possível.

Muitas coisas para contar sobre a capoeira em Chicago. Muitas coisas para contar sobre a capoeira no mundo e o mundo vastíssimo da capoeira. O Gerardo Vasconcelos, colega querido da Faced, contou a história de Besouro Mangangá, um capoeirista baiano, de Santo Amaro da Purificação, meio mitológico, que viveu uma saga semelhante à de Lampião e Robin Hood. É uma pesquisa extraordinária, a do Gerardo, e ele se envolve com ela da mesma forma apaixonada com que me envolvo com as minhas. Eu era a única pessoa na mesa quase completamente inocente sobre a capoeira, inclusive porque a minha pesquisa jamais foi sobre a capoeira em si, mas a capoeira como um produto que difunde a “marca” Brazil pelo mundo.

Duas coisas importantes a se dizer sobre tal produto antes de quaisquer outras: a capoeira não é de jeito nenhum brasileira nos mesmos termos do samba. Como este, ela tem um pé na África: é um dos tantos produtos culturais afro-brasileiros. Mas diferentemente do samba e da forma como ele se difunde, celebrando a nossa mestiçagem, a capoeira não propagandeia o “milagre” da nossa democracia racial. Ao contrário, é um exemplo da resistência e expressa mais que tudo o conflito, o ressentimento, a raiva e estratégias para sobreviver a tudo isto tanto físico quanto emocional e filosoficamente. O que é a capoeira? Os seus mestres respondem a essa questão tão enigmaticamente quanto os mestres zen-budistas e todos insinuam que a resposta vem da prática, do contato, da convivência com essas artes/estilos de vida.

A outra questão importante é sobre a forma como a capoeira se transforma num produto
“brasileiro”. Criminalizada durante a primeira república foi reabilitada no Governo Vargas, período de construção da nossa identidade nacional. Mas a sua mais completa reabilitação, incluindo a sua transformação em objeto de desejo das classes médias, se dá depois que ela “ganha” o mundo. Então, é a migração para o “mundo” que transforma a capoeira num produto brasileiro. O meu amigo Alejandro Madrid (University of Illinois at Chicago) tem um jeito irônico de dizer isto: a capoeira é brasileira somente porque ela ganhou o mundo, se tivesse ficado em casa até hoje seria marginalizada... Ou seja, seria o produto de um gueto, com todas as restrições devidas, e não um produto/patrimônio nacional, com as suas “honras e glórias”.

Por que a capoeira se transforma num produto brasileiro depois que ganha o mundo é uma explicação mais longa que não posso e não quero dar agora... Mas o jeito como a capoeira se difunde, o seu corpo-a-corpo em Chicago será tema de diversas crônicas até eu finalmente juntar tudo e transformar no livro que preciso escrever sobre a pesquisa que desenvolvi lá entre 2006 e 2007...

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

El precio de la ignorancia (Final)

Quando escolhi este título para o conjunto de crônicas que termina com esta, a ignorância que estava em foco era a minha própria. Eu pensava particularmente na minha ignorância sobre a dinâmica da vida em geral e não especificamente a vida ou a justiça americana. Pensava em, ao final, oferecer um conselho: quando precisar saber sobre alguma coisa, particularmente sobre leis e justiça em terras estrangeiras, não procure os amigos, procure os especialistas. Se algum amigo for especialista no assunto, tudo bem, converse com ele, mas não deixe de procurar outros. Fui instigada a escrever sobre o tema, pelo enorme alívio que eu, Raquel e Nick sentimos após as duas entrevistas com advogados em Los Angeles. O último com quem conversamos, George S Castro, é brasileiro. Embora seja o dono de um escritório de advocacia e formado em Direito no Brasil, não é advogado na Califórnia. Tanto ele, quanto o anterior, Hector Ortega, pareceram ter bastante intimidade com a lei da imigração, embora nenhum dos dois tenha lidado com um caso como o nosso. A firma de George cobra 2.000 dólares para resolver o problema. Os dois insistem que é preciso ter paciência: dificilmente tudo se resolverá apenas com a audiência do dia 22 de janeiro de 2009. Do ponto de vista do meu senso de justiça, tudo isto é um pesadelo desnecessário. Somente a humildade que as religiões pregam oferecem abrigo nessas circunstâncias.

Resolvemos parcialmente o problema: começamos a nos informar. Hoje sabemos bastante mais sobre leis e advogados nos Estados Unidos. Já nos tranquilizamos em relação a um fato: contrataremos um advogado. A questão agora é: qual? Nos demos de 20 a 30 dias para respondermos tal questão. Contratar um advogado não é mais fácil do que comprar um carro usado. Também não está completamente fora de cogitação mais entrevistas com outros advogados. Nesse caso, iriam somente Raquel e Nick.

Estarei de férias do caso pelos próximos 15 dias para me concentrar no início do semestre letivo e preparação da palestra para o encontro internacional de capoeira em Jericoacoara. Em seguida vou para Florianópolis, participar do “Fazendo Gênero”. Os dois encontros foram decididos com o coração. Para o de Jeri fui convidada por Armando, ex-aluno de fundamentos antropológicos da educação física. Ele é super-querido e meio que ajudou a salvar a disciplina no semestre passado... E para o de Florianópolis apresentei trabalho principalmente para ter a oportunidade de visitar o Lucas e a Marcionília.

Agora estou aqui, meio crucificada entre um encontro e outro e a passagem brevíssima por Fortaleza. Aulas para preparar e vontade de me envolver com elas, mas mal iniciarão e já terei que, outra vez, pegar a estrada. A palestra que darei em Jericoacoara também não está preparada ainda. Sei mais ou menos o que vou dizer, os vídeos que vou mostrar, mas estou ainda escolhendo as palavras...os vídeos... Mas começo a me tranquilizar com o limite de tudo: é o que pode ser. Digo isto, mas há partes de mim que não se convencem e o meu corpo reage: desde Riverside a minha pressão arterial, que antes estava absolutamente sob controle apenas com dieta, exercícios e bons pensamentos, voltou a subir.

Volto à conversa sobre a ignorância. Acho que é um pouco isso que nos damos conta na maturidade: seremos sempre ignorantes em relação a tantas coisas da vida... Mas também aprendemos que não há maior liberdade do que a de conhecer as alternativas e poder escolher.

Sérgio continua inconformado em relação à situação da Raquel e meio frustrado com os resultados que apresento depois de quase três semanas lidando com isto in loco. Também eu. Mas não dá para ser diferente: não dá para agir antes de compreender. Não faz sentido escolher nenhum advogado antes de estarmos minimamente convencidos. Poderíamos já escolher o Hector Ortega para defendê-la, mas a minha melhor sugestão é que pesquisemos um pouco mais. Ainda temos tempo: a audiência só será no dia 22 de janeiro de 2009. Contratar um advogado em meados de setembro é ainda bastante razoável. Tempo de sobra para ele entender o caso e defendê-la apropriadamente.

Já conhecemos a melhor advogada da Califórnia: nossa amiga Adriana S. Mas ela não tem diploma. Pensamos em contratar a sua assessoria para ajudar a Raquel a assinar o contrato com o melhor desses quatro ou cinco advogados com quem afinal terá conversado. Acho que esta é a melhor escolha. Por enquanto...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Um outro eu... Mas qual?


Eu o reconheci desde a primeira sentença como se fosse aquela parte de mim que me aceita... O outro que me observa com a compaixão com que somente eu sou capaz de me observar... Um milagre quase. Percebe certa sofisticação na minha simplicidade... Será que ele também desconfia dela? Quero dizer, da simplicidade? Se é espontânea... ou fabricada? Afinal, não é meio paradoxal uma simplicidade sofisticada? Não creio que ele sugira que haja muito mais do que o que aparece, embora ele, como eu, sabe bem que o que aparece é apenas a ponta do iceberg. Há mais: tanto, tanto, tanto...

Mas sendo o que aparece a ponta do iceberg, pelo amor de deus: é real! É confiável! É seguro... Ou não? De um jeito ou do outro: quem tem coragem de mergulhar? De desafiar a fantasia do que se enxerga na superfície?

Adriana, minha querida amiga argentina, que me ensina sempre tanto sobre tudo no mundo, e que eu amo demais e de quem me custa muito me despedir, comentou um pouco sobre isto hoje... Meio por acaso... A propósito de que, meu Deus? Não importa. Estávamos no Jammin Bread, uma lanchonete meio chique, meio vegetariana, lá, no Towne Center, onde também fica o Coffee Roasters, na área “universitária” de Riverside, morrendo de fome e comendo um sanduíche vegetariano acompanhado de chá do paraíso, um chá meio genérico com um leve toque de jasmin que servem com um monte de gelo: paradise iced tea. Ela dizia exatamente isto: a sua simplicidade é tomada por um incauto apenas como simplicidade...

E é o que você enxerga sem ser eu, sem ser Adriana, sem me conhecer... Ou me conhece? Além daqui, das Sumehrianas? O fato é que raríssimas pessoas percebem isto. Raríssimas pessoas percebem de mim o que quero que percebam. E, pra falar a verdade, prefiro assim. Embora aqui e ali sim: o Brito, o meu ex-cunhado, me sacaneava um pouco com essa história da minha simplicidade: “Berna, tu é muito simples... tu já pensou uma mulher como tu, com tanta coisa importante pra fazer, aqui, tão simples, conversando com a gente?” Uma tonelada de ironia no discurso do Brito, mas bastante sensibilidade também.

Mas páro por aqui, não preciso me revelar mais. Aliás, acho que nestas crônicas me revelo pouquíssimo. Apesar disso, não há como fugir de mim: vou sempre aparecer um pouco ou muito em tudo que faço. E, sem dúvida, como você percebeu, o meu texto também revela a minha espontaneidade... Mas quanto revela da minha alma? Dos medos que demoro a revelar para mim mesma? Um truísmo, eu sei, mas aqui apenas me permito revelar o que se pode revelar num texto público, numa crônica. Com tom e estilo de diário, é verdade, mas mais uma armadilha para atrair o leitor do que um diário propriamente... Inclusive, como diz Canetti, diário é outra coisa, percorre outros caminhos.

Não sei, mas a sua aparição por aqui, justamente quando eu filosofava sobre a literatura e a solidão foi meio mágica, meio milagrosa... Muitíssimo benvinda. Infelizmente a maioria dos comentários recebo mesmo é pelo email: por uma razão ou outra, as pessoas não querem se expor. Os comentários, espaço do encontro do autor com o leitor, é o espaço mesmo do encontro das solidões, da realização da literatura. Sem comentário não tem blog... como não tem literatura sem leitor.

Me lembro agora do que me dizia Seu (Francisco) Carvalho sobre esse encontro... e somente agora tudo isso faz tanto sentido. Conheci-o através de Anchieta Barreto, colega meu, que o conhecia bem desdes os tempos em que fora reitor e Seu Carvalho secretário dos conselhos superiores da universidade. Anchieta me presenteou com A Barca dos Sentidos com que imediatamente me encantei. Vi que tinha um lugar pra mim naqueles versos... Uma solidãozinha que eu queria habitar... Pouco depois, como representante da faced no cepe, tive a satisfação de
conhecê-lo pessoalmente. E era um aprendizado e um encantamento que não tinha fim. Meio desumano porque não teve um dia que eu não gostasse de encontrá-lo; que eu não passasse a enxergar o mundo diferente depois de uma conversa com ele, que as coisas que ele me dizia não ficassem germinando dentro de mim. Foram poucos encontros: uns quatro ou cinco. Ele sempre me presenteava com algum dos seus livros. Um dia, não me lembro mais porque, ele disse que o mínimo que se espera do leitor é um comentário, um bilhete... O escritor precisa de feedback... Precisa saber o que provoca nos outros os seus escritos.

Fiquei me sentindo meio em dívida porque ele já havia lido pelo menos três livros seus e nunca tinha lhe enviado bilhete nenhum... E também me sentia meio tímida para comentar quando nos encontrávamos... Dizia coisas superficiais... Mas não lhe dava idéia da extensão do impacto dos seus versos no meu cotidiano...

Um dia, finalmente, no meio das milhares de coisas do doutorado, daqui, de Riverside, lhe enviei longa carta e, no final, o seguinte poema, inclusive inspirado pela sua Canção ao Pote:

A luz da poesia

ao poeta Francisco Carvalho
A luz da poesia atravessa escuridão, abismos, inocência.
Talvez não sacie a sede de justiça, de beleza, de paixão.
Mas deixa marcas do seu encantamento
nas retinas que lhe acariciam.
Ao invés de um banho de palavras,
a poesia é sopro de beleza e bússola de tragédia
transcende as barreiras da intenção e nos
premia com filhos da lua
e pulsações de desejo em almas de bronze
Apocalíptica constrói o túmulo
dos que não querem (ou não merecem) descansar em paz.
Camarada, traiçoeira, aproxima-me de mim
e ao mesmo tempo me reúne ao pó.
Tecedora de impossibilidades nos dá o que a história nos tira:
a possibilidade de ser todos os homens em todos os tempos, como cobiçava Whitman.
Ainda que transmutável em castelos, pântanos e fortalezas,
a poesia não quer ser porto de ninguém
mas ilumina como o farol de todos.

A você, Muad’Dib, não tenho um poema para oferecer ainda... mas ofereço essas divagações inacabadas de hoje, com gratidão. Good night.