quinta-feira, 31 de julho de 2008

Apocalíptica Califórnia




Riverside, Califórnia, 30 de julho de 2008
São 11:27. Estou no Roasters Coffee, o famoso café onde geralmente encontrava colegas e professores nos meus tempo de doutoranda aqui, na Universidade da Califórnia, Riverside. Lembro-me que ele tinha um outro nome e mudou depois que mudou de dono. Prefiro este café a qualquer Starbucks que tenha entrado aqui ou em qualquer cidade. A música, sempre jazz, é baixa e agradável. Muito diferente do Starbucks do Logan Boulevard (Chicago), que era uma barulheira danada e eu passava mais tempo pedindo para baixar o som do que concentrada no que queria fazer.

Vim aqui para me encontrar com Alfredo M, professor da UCR, advogado, que, em 1998, defendeu meu caríssimo filho Caio Brito contra a Sra. Tena Petix, diretora da Highland Elementary School. Ela o acusava de portar armas perigosas e sugeria que ele fosse expulso da escola. A arma perigosa era uma laminazinha de apontador que ele havia desparafusado da parte plástica e que mantinha escondida na sua carteira até que Tony, um colega de classe, o viu com ela e se motivou a também trazer uma lâmina para a escola. Excitado com o novo brinquedo, Tony cortava tudo ao seu redor e acabou por também se cortar. Foi o sangue dele que chamou a atenção da professora para a “arma”. Tony, não suportando o problema sozinho, denunciou Caio: ele também possuía uma lâmina. Foi aí que tudo começou. Na verdade, de acordo com Caio, “tudo começou com um apontador azul...” (it all started with a blue pencil sharpener). Em apenas duas ou três semanas descobrimos mais sobre a cultura e o sistema legal californiano do que ao longo dos primeiros quatro anos. A diretora, após acusar Caio e Tony de portarem armas perigosas, sugeria que os dois fossem expulsos do sistema de escola pública de Riverside. Não era apenas a expulsão daquela escola, mas de qualquer outra escola pública do município.

Alfredo M, amigo de Adriana, outra amiga, defendeu o Caio. Foi nessa circunstância que nos conhecemos. Eu gostava de várias coisas nele: a simplicidade, primeiro. Ele não parecia o homem importante que era. Conversava com Caio como se os dois fossem da mesma idade e, principalmente, parecia se divertir muito com toda a história, o que nos tranquilizava bastante. Havia uma superioridade intransponível na sua aparente simplicidade. É assim que o enxergo até hoje, mas hoje vejo muito mais. Depois do caso do Caio encontrei-o uma ou duas vezes, casualmente. Lembro-me que eu e Jeannie o convidamos para a minha festa de despedida, em 2000, quando eu estava voltando para o Brasil. Ele não foi. Uns dois anos depois, outra amiga, Maria Talamantes, contou-me que ele também havia defendido seu filho.

Ano passado, quando vim para o casamento da Kel, precisei consultá-lo a respeito de dúvidas sobre a ajustes no status de imigrante dela. Encontramo-nos aqui neste mesmo café. Ele me contou um pouco de si, do que andava fazendo, escrevendo, pensando. Eu também falei sobre mim e os meus planos próximos. Mas a nossa conversa girou mais em torno do tema da escrita: acadêmica e literária. Ele falava de si como se de uma personagem da sua fantasia. De um jeito que me do fluxo das minhas próprias etnografias ou diários de viagens. Ele me contava que estava escrevendo um livro sobre os casos mais interessantes e absurdos que defendeu e achava que o caso do Caio merecia um espaço nele. Pediu-me para ajudá-lo a lembrar dos detalhes do caso. Eu me lembrava de pouca coisa, mas lembrava de algo importante: que imediatamente após o julgamento, eu, Sérgio e Adriana, nossa amiga, entrevistamos o Caio sobre todos os detalhes possíveis do caso. Prometi-lhe que transcreveria a fita e lhe enviaria o texto.

Trocamos alguns emails sobre o caso porque eu havia encontrado anotações interessantes sobre ele no meu próprio diário. As cobranças da vida no Brasil me fizeram rapidamente esquecer a promessa feita até que há uns dois ou três meses precisei dele outra vez porque Kel estava tendo problemas com o processo do seu pedido de greencard.

Escrevi-lhe um email em que falava dos problemas da Kel e me desculpava pela promessa não cumprida. Mas insistia que, então, cumpriria. A promessa foi refeita no mesmo período em que os cupins começaram a comer meus livros. Tudo estava desarrumado e era difícil encontrar seja lá o que fosse. Procurei a tal da fita da entrevista em tudo que era buraco possível e não encontrei. Há umas três semanas, finalmente encontrei a pasta onde havia arquivado os principais documentos do processo do Caio. Foi extraordinário porque havia vários depoimentos e tanta coisa... Copiei um dos depoimentos do Caio e enviei para ele com cópia para todos os envolvidos, Sérgio, Lucas, Kel e o próprio Caio. Aquele depoimento do Caio nos levava a revisitar instantes importantes da nossa vida familiar aqui, em Riverside.

Alfredo não respondeu esse email com o depoimento que eu achara tão precioso. Reenviei, insistindo numa resposta para a consulta que fizera sobre o problema da Kel e chamando a atenção para o depoimento que ele não havia comentado. Ele respondeu a questão que eu fizera sobre Kel e continuou alheio ao material “literário” que eu lhe havia enviado. Fiquei meio chateada, mas não exatamente numa posição em que podia reclamar da sua falta de atenção, afinal, eu estava outra vez lhe pedindo favores. Sim, claro, ele jamais cobrou nada pela defesa do Caio. Fazia parte do seu ativismo de “latino”.

Deixei para lá a minha comunicação com ele e fui me concentrar no meu cotidiano de final de férias. Tanta coisa para fazer: o livro da pesquisa de Chicago para o qual eu tinha finalmente encontrado um caminho; a minha vida de blogueira que começava a frutificar e outras “viagens” em que eu me envolvia naqueles dias. Estava já meio perdida no meu “egoísmo produtivo” quando Sérgio me convocou para uma missão: visitar a Kel. Usei os argumentos que podia contra a idéia, mas o mais importante parecia mesmo o preço das passagens. No mínimo 40% mais caras do que em baixa estação. Eu poderia vir em setembro, depois das conferências em Jericoacoara e Florianópolis. Mas Sérgio insistia que a Kel precisava de ajuda agora e arranjou um argumento difícil de derrubar: ele pagaria as passagens. Eu não podia fazer outra coisa que não fosse arrumar as malas. Assim, depois de três conexões e trinta e duas horas de viagem, cheguei exausta, mas feliz, em Riverside, minha “pátria chica”, como diz o meu amigo, Jan Rus.
Volto a Alfredo M. Quando cheguei aqui ele já me esperava. Achei-o muito mais jovem do que das outras vezes e, antes mesmo de nos cumprimentarmos com o abraço americano e os beijinhos brasileiros de praxe, fui dizendo: “Alfredo, nunca o vi tão jovem!”

Acho que foi o meu excesso que o levou a buscar explicações para a sua aparência atual. Diz-me que está de fato mais magro e nunca esteve em tão boa forma. Aproveito e lhe pergunto se é casado. Na verdade, quero perguntar se ele continua casado. Ele responde que sim, mas não acha que é uma boa resposta. Acha que a minha pergunta tem mil sentidos. Que quando responde “sim, sou casado” está construindo uma barreira entre nós que, de fato, não existe. Então, corrige: “sou casado, mas sou um homem livre.” E esclarece que não se refere a liberdade sexual ou coisa do tipo: é algo mais vasto. E conta como chegou aos sentimentos e impressões de agora. Me adverte para o fato de que é possível que eu o tome como louco, uma vez que o que me conta não é usual.

(São já duas horas da tarde e me dou conta de que estou aqui há quase seis horas: escrevendo estas anotações, dando telefonemas, respondendo emails... As mesas e poltronas que estavam vazias quando cheguei, estão agora todas ocupadas. Queria entender melhor a economia desses cafés. Como será que sobrevivem? Eu, por exemplo, estou aqui por quase seis horas, pedi um copo de água com gelo, que é de graça, estou com o meu computador ligado na tomada deles, usando a internet, fui ao banheiro umas quatro ou cinco vezes e paguei apenas por dois café e dois cookies, que custaram todos uns 5 dólares).

Acho nossas conversas sempre muito agradáveis e engraçadas. Encanta-me que com tanto livro escrito mantenha a mesma simplicidade e espontaneidade de onze anos atrás. Mas tenta me convencer de que estou errada: o que tenho diante de mim é outro homem: mais jovem, mais sábio. Um homem que enxerga para além dos olhares e palavras. Enxerga tudo com uma clarividência de fazer inveja aos profetas. E conta-me uma das suas últimas epifanias. Há uns dois ou três meses, ficou insone. As vitaminas e outros energéticos superaram o poder dos exercícios relaxantes e outros calmantes e ele não conseguiu dormir. Ficou acordado por mais de 24 horas e foi nessa longa vigília que redescobriu o mundo e a clareza com que enxerga a si próprio e a tudo à sua volta. A vigília o fez viver a realidade em câmera lenta, como se tivesse fumado maconha. Tudo se separava, se dividia para se fazer mais inteligível. Até as cores se subdividiam em outras e mais outras numa cornucópia interminal de sensações e prazeres. Tudo se dividia, mas simultaneamente tudo também se completava, se unia e, como num juizo final privado, tudo se revelava.

Tinha uma reunião importante pouco depois de completadas as primeiras 24 horas de insônia. Pensou em desmarcar, mas achou desnecessário. Foi para a reunião. O caminho até a universidade, velho conhecido, apresentava mil e uma novidades. Precisava de uma atenção quintuplicada para dar conta de tudo que seus sentidos captavam Na reunião todos se mostraram óbvios demais. Antes de falarem já sabia tudo que seria dito, sentido, pensado. Consciente de si e dos seus limites e poderes não era absurdo se transformar numa ponte para o outro. A reunião, que podia ser uma armadilha, foi um laboratório de humanidade.

Meio matreiro, meio hesitante, meio enigmático e principalmente meio encabulado, contava-me que sua mente nunca estivera tão clara, tão limpa. Percebe hoje o mundo com uma clareza que chega a doer. Como se, ao se perceber, fosse capaz de também perceber ao mundo inteiro.
Lembrei-me do que me dissera uma vez Dedé (Aderson), amigo de Sérgio dos primeiros tempos do nosso casamento: “Berna, detesto falar contigo... A tua atenção me constrange... Sinto-me desnudado, transparente. Horrível!”

Alfredo continuava falando daquele “ele” guru, sábio, como se fosse de uma personagem. Quem estava diante de mim era tão vulnerável e limitado quanto eu. Não me senti nenhum pouco desnudada. Ou simplesmente não temi expor o que havia dentro de mim.

Benvinda à Califórnia - Welcome to California

http://www.cnn.com/2008/US/07/29/earthquake.ca/index.html#cnnSTCVideo
Riverside, Califórnia, 29 de julho de 2008
Finalmente cheguei na Califórnia. São meio-dia e catorze minutos no tempo daqui e cheguei há quase quatro dias, mas foi somente agora que aterrisei verdadeiramente, com todas as boas vindas que mereço. Estava conversando ao telefone com meu amigo Armando Gonzalez-Caban quando senti a casa inteira balançando. Estava numa local e numa posição privilegiada: sentada num sofá na sala de estar da casa de Liz (sogra da Kel). Daqui, pela janela da esquerda, vejo as Box Spring Mountains... e vejo também outras janelas e outras portas: a da cozinha para o quintal. A sensação que tive desta vez foi a de que um enorme trem estava passando por baixo dos meus pés. Tudo tremeu e não desapareceu num piscar de olhos. Depois tremeu e balançou de novo. Janelas, luminárias, móveis. Nada caiu no chão. Eu e Armando rapidamente conscientes do que se passava à nossa volta não tínhamos nada a fazer a não ser rir. Claro que se o chão tivesse se aberto diante de mim eu não riria. Mas também não tenho idéia do que faria. Mas, assim, o terremoto é apenas um lembrete. Nick, marido da Kel, me disse agora que a magnitude foi de 5.8 na escala Richter. Agora todos já estão comentando sobre o assunto, inclusive a CNN: um forte terremoto atingiu o centro de Los Angeles... tão grande que foi sentido até em Las Vegas... Depois conto mais deste encontro com a Kel e com Riverside.

domingo, 27 de julho de 2008

Ainda sobre solidão & literatura

Um dos comentários à minha crônica “A Solidão do Blog” veio do Zé Netto. Ele disse mais ou menos assim: “é isso mesmo, você queria o quê? Só há escrita se houver solidão.” Ele fala claramente da solidão como recolhimento. Se o escritor não fechar as portas do mundo para ouvir ou observar o que há dentro de si, ele não produzirá nada. Verdade. Este é o primeiro passo: abre-se mão da companhia dos homens para se entregar a companhia ainda mais imprevisível, a da palavra. Silencia o mundo lá fora para dar espaço ao que sobrou dentro. Tentei conversar sobre isto com o Caio, mas ele não teve paciência para as minhas filosofações. Mas eu queria conversar mais sobre a minha dependência da palavra escrita; do ter que escrever todo dia pelo menos uma anotação no diário. Uma carta. Um poema. Um artigo de opinião. Um email. Qualquer coisa. É como se não houvesse espaço para a existência não intermediada pela palavra. Nesse sentido, escrever é praticamente sinônimo de existir. Não é vaidade, é necessidade. Uma questão de vida ou morte, como diz Cecília Meireles em Traduzir-se.
Blanchot (O espaço literário, p 12) concorda que a “obra” é solitária, mas (insiste que) “isso não significa que ela seja incomunicável, que lhe fale o leitor”. O que eu tentava dizer pro Caio era algo relacionado com as duas afirmações, algo meio paradoxal: é através da sua solidão inscrita na palavra que o escritor se comunica com o mundo. Aqui, o que parece distanciar aproxima. A solidão que “priva” o escritor do mundo produz depois a reaproximação através da obra.
A pergunta que faço a seguir é a que sempre me fizeram: por que o sacrifício? Ou seja, por que renunciar ao mundo? “Por que você não deixa esses livros pra lá e vai ‘viver’”? Como assim “viver” se pra mim o espaço existencial por excelência era o do silêncio, aconchego e agonia da “obra”? Pra mim, viver era ler; ler era viver. Depois, aos poucos, fui experimentando o mundo de que todos gostavam tanto. Permiti-me também arrebatar por ele: amigos, amores, diplomas, filhos e outros desejos. Mas, de algum modo, através da ciência ou da literatura, sempre mantinha minha fidelidade ao mundo da palavra. Indomável como é, a palavra era o meu porto seguro. Faltava namorado, amigo, pai, mãe, irmão, filho, mas a palavra estava sempre lá, quase como Deus. Não, vejo agora que a palavra não era quase como Deus, era, de fato, a sua mais legítima expressão, era Deus. No sentido cristão-ocidental: me abrigando às vezes, me chicoteando outras. As vezes doía mais a intraduzibilidade da dor em palavra do que a dor em si.
Até aqui não toquei no outro sentido de solidão que Blanchot explora na obra citada acima. Ele fala de algo que experimentei apenas superficialmente e não sei se terei coragem de fazê-lo mais intensamente: a entrega do Eu ao Ele. Blanchot, parafraseando Kafka, afirma que só há literatura quando o EU abdica de si para metamorfosear-se n’ELE. É nessa metamorfose que o autor experimenta a solidão no sentido mais usual: o de abandono. O autor não mais falará de si (EU), mas d’ELE. É nessa circunstância, dizem tanto Blanchot quanto Canetti, que surge a necessidade do diário; espaço onde o escritor ainda fala de si, do EU. Submete-se ao tempo dos homens. Confere a hora, o calendário: hoje é sexta-feira, 25 de julho. Enquanto me deixo levar por essas conjecturas de vôo, lembro-me que meus amigos dos Poemas Violados estão se preparando para entrar em cena: cumprir a programação do Dia do Escritor. Lembro-me também que Caio está entrando em sala de aula. Pronto. Estou ligada com o mundo. Esta é uma referência de realidade uma vez que metamorfoseado n’ELE, o EU entrega-se ao fascínio da ausência de tempo. Foi sobre isto que conversei com Regina, minha comadre, no nosso último encontro. Ela me dizia que não tinha condições de se dividir entre as funções de mãe, esposa e funcionária pública e a de artista. Toda vez que entra em contato com a arte teme perder a referência do mundo das obrigações domésticas, conjugais e profissionais. Eu disse pra ela que consigo conciliar as duas coisas. Mas não é verdade. Não creio que haja conciliação: vivo no limbo; não me entrego profundamente a nenhum dos dois mundos. Como seria a experiência de se entregar?

terça-feira, 22 de julho de 2008

De Rainhas e Desejos (um conto, porque a Marcionília pediu)

Não gosto de encontrá-la aqui, entre vozes, cheiros e peles itinerantes. Temo que ela se perca outra vez, antes que eu a tenha. Tê-la: páreo duro.

Não fosse o Rei (e todos esses olhares) a protegê-la da minha cobiça, já teria conquistado todos os recônditos do seu corpo. Ela me convida. Brinco com os seus lábios que se abrem devagar e deixam seus dentes afiados morderem a ponta dos meus dedos. Seguro-me forte para não me deixar levar pelos seus olhos enfeitiçados e sedentos. Mas a boca vermelha na minha pele devolve-me ao meu corpo e acorda instintos ancestrais: quero devorá-la toda.

Mas paro. Preciso começar de novo, nem que dure tudo e séculos e mais. Preciso não ceder à tentação imediata de seios que pulsam de desejo, que rogam pela minha boca, pelas minhas mãos e num descuido me carregam céleres pros quintos dos infernos. Quero ir onde quer que a nossa ânsia nos leve, mas homeopaticamente. Sem que eu perca do seu corpo nenhum espaço e deste encontro nenhum instante.

O Rei não desconfia que existo, não pressente o perigo.

Começamos tudo outra vez. Pelos pés, agora. Descalço-lhe a sandália de tirinhas pretas de couro e sinto-me como um pirata diante do seu tesouro: cada uma das pedras preciosas provoca prazer diverso e todas são fundamentais. Agora são os seus dedos que estão entre os meus dentes e este desejo de lambê-los devagarzinho, gostoso; depois ir mordendo cada vez mais forte até devorá-los. Daqui ela parece imensa, mas minhas mãos empreendem a caminhada pelas longas pernas, subindo ávidas pelas coxas. Ela se encolhe de prazer e suas coxas prendem minhas mãos, impedindo-as de ir além. Seus olhos sorriem com sua boca vermelha e sua pele vibra em uníssono me atraindo pra si. Nossos corações batem juntos, supersônicos.

O Rei sequer pressente a apoteose. Mantém-se como um Rei, impassível, confiante.
Minhas mãos se livram da armadilha das coxas e se lançam sôfregas numa guerra contra as vestes, guardiãs da sua castidade real. Nossos corpos convulsionados tremem e até a curta saia jeans parece intransponível. Os bicos dos seios, rígidos, ferem e queimam minha pele, meu rosto, minha boca. Minha ânsia não espera mais o zíper que emperra e das minhas entranhas eclode o grito primal.

Brindo silenciosamente: xeque-mate.


(Publicado na coletânea O Amor que move o Sol e outras Estrelas, Scortecci-Rebra, 2005)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Os vários mundos no meu mundo...

Estava há pouco escrevendo o meu diário que, de fato, já não mais merece esse nome porque está virando semanário, quinzenário... Mas hoje quis escrever um pouco. Mal comecei as primeiras sentenças e me dei conta de que o Caio estava na cozinha, preparando o seu café da manhã. Me perguntei se não deveria descer e ficar com ele... Aproveitar o privilégio da sua companhia. É nisto que tenho pensado ultimamente: a vida passando, meio que escorrendo entre os dedos, como água. Talvez a sabedoria seja não se angustiar com a água escorrendo, mas viver a sensação de tê-la passando entre os dedos... Sentir a sua temperatura, textura, cheiros... observar suas cores. Não adianta querer agarrá-la, prendê-la... Apenas me contentar em viver o seu fluxo. Mais ou menos isto. Acho que essa consciência da provisoriedade de tudo tornou-se mais pungente depois do casamento do Lucas. Observar, daqui da minha janela, o Lucas capinando sua horta era quase uma promessa de eternidade. Ele foi embora e eu, que já era atrapalhada, fiquei mais ainda. Mas até o galo, um símbolo de estabilidade, pirou e passou a cantar nas horas mais inesperadas e esquisitas, além de começar a fazer outras besteiras, como desafiar os cães e nos acompanhar de um lado pra outro, como um bezerro desmamado... Na verdade, a saída do Lucas encerra um ciclo. Era talvez a última conta que faltava no rosário da minha compreensão sobre a provisoriedade de tudo. Comecei a me concentrar no presente há exatos treze anos quando eu, Sérgio, Lucas, Raquel e Caio nos mudamos para Riverside, Califórnia, para o meu doutorado. Uns dois ou três meses antes da viagem comecei a prestar muita atenção em tudo que vivia e tinha em Fortaleza: as ruas tortas e esburacadas; as pessoas simpáticas, apressadas, mal-educadas; os amigos que eu ia sentir tanta falta, a Jane, o Antônio, as cores do céu do porto das Dunas, o cheiro e a brisa do mar, e Candy, a nossa cadelinha, que íamos “abandonar”. Nos meus primeiros meses em Riverside, eu vivia mais “aqui” do que lá. Somente muito aos poucos fui enxergando o lugar onde estava em carne e osso e me deixando envolver por ele. Mas foi uma luta isto. Como me envolver sem garantias? Como me “entregar” a um lugar que não era meu? Pra que gastar emoção com relações que eu já sabia limitadas, provisórias, com data marcada para acabar? Cinco anos depois, em 2000, eu vivia a situação oposta: sofria me despedindo dos amigos e paisagens conquistadas. Em cinco anos tinha me transformado noutra pessoa. Lembro-me que morria de medo de voltar para Fortaleza e perder a nova Bernadete, conquistada tão penosamente. Conversei com a minha terapeuta sobre aquele medo de voltar... especialmente de voltar a ser o que era... Ela me tranquilizou dizendo que aquele era um processo irreversível de “conversão”. E era. Eu era outra pessoa e começava a experimentar a vida de outros modos, embora me sentisse ainda meio emperrada no meu desejo de permanência de tudo. Mas não teve jeito, a minha vida não me deu trégua nos últimos treze anos... Durante esse tempo arrumei e desarrumei as malas e o coração muitas vezes... Descobri paisagens dentro e fora de mim que nem desconfiava que existissem. A vida parece mais curta agora e o mundo e os sentimentos mais vastos... Os cupins que andaram me aterrorizando nos últimos dias me levaram a descobrir que a minha casa é uma cornucópia... Um universo tão misterioso e tão profundo que eu precisaria de muitas férias como estas para desvendar... Missão impossível, quase. Muito o que fazer: vou começar saindo da frente deste computador e indo tomar café com o Caio...

domingo, 13 de julho de 2008

A Solidão do Blog

Poucos dias depois que criei este blog já estava em crise sobre a minha vocação de blogueira. Primeiro: levei anos para me decidir a criá-lo. Passei mais um tempão atrás de alguém que me ensinasse ou fizesse por mim. Esses medos de tecnologia simples, facilmente desvendável, que os filhos dominam num piscar de olhos antes mesmo de nascerem. Acabei fazendo sozinha, seguindo as instruções de uma amiga. Segundo: o que eu quero com um blog? Nem tive tempo de sonhar com blog. Sonhei com outras coisas: em ter uma coluna semanal em algum diário local ou regional, mas nunca me empenhei nisto seriamente. O máximo que fiz foi escrever ocasionalmente artigos breves, de opinião, para o jornal O Povo, daqui de Fortaleza. Só ocasionalmente escrevi alguns mais longos, mais sociológicos, sobre os temas que estudo. Mas um dia vi a página do Rubem Alves na internet e fiquei pensando em fazer alguma coisa parecida. Queria então “um lugar meu” na internet para escrever crônicas ocasionais e para divulgar mais amplamente os artigos que geralmente publico em revistas especializadas. Queria, portanto, uma webpage e não um blog. A primeira tem uma dinâmica e uma simultaneidade que o segundo não tem. De experiência com blog tinha apenas a der ler o quixotesemrumo, do Lucas (http://quixotesemrumo.wordpress.com/). E outras passagens ocasionais e superficiais num blog ou noutro que me indicavam. Por outro lado, sempre me senti avessa à idéia de usar o blog como um diário de intimidades. Para mim, diário é diário e precisa ser “secreto” para se escrever como diário. Os blogs que revelam intimidades em geral reveladas apenas para os velhos diários são outra coisa, ou seja, são uma nova categoria de escrito. Seja lá o que for, não era isso que eu queria ou precisava. Terceiro: o que eu esperava de um blog? Eu imaginava um espaço de diálogo, mais dinâmico do que o jornal. Ou semelhante. Sempre recebi feedbacks dos artigos que publiquei em jornal. E também tinha a experiência de compartilhar minhas “etnografias de viagens” que provocavam respostas que muitas vezes rendiam muitos emails, muita conversa. Enfim criei o blog e avisei pros meus amigos, aqueles para quem em geral enviava minhas “etnografias de viagens” e pedi para eles comentarem os artigos que lessem. Ao invés de comentarem no blog, abaixo do artigo, comentaram via email. Pouquíssimos comentaram no blog e apenas um ou outro desconhecido encontrou o blog por acaso (?) e comentou. Tentei responder a alguns comentários mais instigantes, mais inspiradores e cliquei sobre o nome do comentador, mas aquele clique não me levava a lugar nenhum. Resolvi me consultar com o Lucas, único blogueiro das proximidades. E ele disse que era assim mesmo: não se responde aos comentários. Quer dizer, responde-se escrevendo mais, fazendo novas postagens. Fiquei meio perdida, meio sem saber o que fazer. Aí deu uma sensação enorme de solidão. Eu, num blog, falando pra ninguém? Email e orkut ou facebook são mais animados: eu escrevo, o outro responde, ou não responde. Mas sempre sei quem respondeu e quem não respondeu. Lá eu não sei quem viu, quem não viu... Aí? Fico eu escrevendo sem saber para quem? Como um soldado da rainha, devo ignorar quem me olha, quem me conta, quem me quer? Como se tudo isso fosse pouco, ainda esse nome horroroso: blogueira? Sei não...