quinta-feira, 11 de setembro de 2008

De quantos 11 de Setembro precisamos?

(o artigo abaixo foi publicado no jornal O Povo, alguns dias após 11 de Setembro de 2001. Resolvi postá-lo agora, sete anos depois, porque ainda o considero atual e também como testemunho de que permaneço ancorada no tempo presente)



Foram confusos os meus sentimentos quando o meu filho me chamou para ver na televisão as primeiras notícias sobre o ataque ao WTC. Fazia pouco mais de um ano que havíamos voltado de uma temporada de 5 anos em Los Angeles e estávamos nos sentindo ainda muito ligados à vida e aos amigos americanos. Confesso que senti-me aliviada pelo fato de que o ataque era contra New York, não contra Los Angeles. As chances de que alguém conhecido estivesse àquela hora no WTC eram desprezíveis. Pelo menos eu não teria que chorar por ninguém em particular e anuviar, com isto, a minha primeira reação que foi, para susto e protesto dos meus filhos, a de satisfação.

Não satisfação com a dor e a miséria de tantas pessoas. Satisfação porque alguém tivera a coragem de protestar, no próprio território americano, contra as políticas abusivas dos Estados Unidos no mundo. Achei que com a evidência da sua vulnerabilidade, os americanos pudessem se tornar menos arrogantes e mais humildes. Quem sabe, vulneráveis, os americanos não prestariam alguma atenção à vulnerabilidade alheia? É claro que nos meus cinco anos de Los Angeles percebi que nem todos os americanos são arrogantes como é arrogante a política externa do seu país. E também percebi que a democracia americana, como a república ateniense, não cabe todos os que vivem em território americano.

Não custou para eu perceber que era vã a esperança que alimentara de que aquela tragédia servisse para os Estados Unidos repensarem a sua política externa. Percebi, logo nas primeiras reações dos políticos americanos, que o culto da humildade - parte do legado cristão - há muito deixou de fazer parte do protestantismo americano e, se eu cheguei a pensar que aquela lição poderia ter a força e o significado que os protestos pacíficos anti-globalização não estavam tendo, cuidei logo de tirar o meu cavalo da chuva.

Movidos pela dor, mas principalmente pela arrogância e vaidade, os políticos americanos queriam vingar os seus mortos. Diferentemente do que o meu espírito cristão sonhou, eles não conseguiam ver aqueles mortos como consequência das tantas tragédias que os Estados Unidos vêm produzindo mundo afora no esforço de manter a hegemonia conquistada desde a II Guerra Mundial. Ao invés de aproveitarem a oportunidade para rever a insustentabilidade da sua política global, encontraram o motivo de que precisavam para recrudescer tal política.

Não sei se pelo meu ofício de antropóloga ou pela minha alma cristã, não consigo achar que os civilizados valem mais dos que os não-civilizados; não consigo achar menos terrorista o terrorismo americano porque é pretensamente civilizado. Assim como não consigo achar que os paulistas são melhores do que os fortalezenses ou estes melhores do que os cratenses e assim por diante.

A tragédia de 11 de Setembro não serviu para ensinar este princípio fundamental, nem para os Estados Unidos e nem para os que apóiam as suas políticas insustentáveis. De quantas tragédias os americanos, e aqueles que neles se espelham, precisam para entender que somos todos humanos, não divinos?

Muad’Dib, o anjo Francisco Gabriel e outros mistérios deste mundo de meu Deus...

Verdade: após ler os primeiros dois ou três comentários de Muad’Dib, desconfiei que ele fosse uma manifestação do meu anjo da guarda, Francisco Gabriel. Somente ele, tão próximo de mim, saberia como me atingir tão certeiramente. Então, estava eu me apaixonando pelo meu próprio anjo da guarda!? Por que havia ele escolhido o mundo virtual para se manifestar? Parece iconoclastia, blasfêmia, mas nenhuma novidade há nisso, inclusive dentro da própria igreja católica. Lembro-me particularmente do erotismo presente nos poemas de Santa Teresa de Ávila a Jesus Cristo. E Jesus Cristo, do jeito que é apresentado pela igreja católica, parece mais irmão do que pai... E é a idéia por trás do Deus-filho. Não somos deus, mas também somos filhos... Do mesmo jeito fui levada a pensar sobre os anjos: no mesmo nível dos irmãos e primos: uma proximidade e uma camaradagem difícil de encontrar nas relações entre diferentes. Um incesto menos grave, digamos assim.

Logo depois dos primeiros comentários quis saber mais sobre o autor e cliquei no seu nome para ver o seu perfil. Nada. Nenhum email. Queria saber quem era pessoa tão especial. Imaginei que fosse algum dos brasileiros de quem me aproximei na pesquisa em Chicago querendo brincar comigo. Também pensei que fosse algum amigo americano porque Muad’Dib comete alguns erros de português incomuns entre os nativos com a mesma formação que ele. Pensei que fosse o Darien ou o Brian. Mas eles não olhariam para a cultura americana como estrangeiros. Enfim, seja lá quem fosse era uma brincadeira, um enigma, mas também um presente. Era extraordinário descobrir que alguém poderia prestar tanta atenção ao que digo, ao que sou e fiquei encantada. Por que o pseudônimo árabe? Depois descobri que era um personagem daquele romance Duna, acho que foi Emma quem me ajudou com isso, ou ele próprio comentou alguma coisa... A partir de certo momento, Emma achou que ele fosse criação minha; que eu estava inventando a história toda, como já fizera no passado. Ela só acreditou que ele tinha vida própria porque certo dia, enquanto conversávamos no skype, ele postou um novo comentário. Um comentário a outro comentário dela, recém-postado. Ou seja, eu não teria condições de escrever e conversar tão concentradamente, tudo ao mesmo tempo! Mas ela disse que não importava, ficção ou realidade, era divertido e produtivo o encontro no blog.

Mas eu queria saber quem era Muad’Dib porque estava apaixonada e queria me aproximar mais, experimentar com ele outros aspectos da existência... Ainda em Riverside, numa tarde de vinhos e desejos, escrevi a crônica “Um outro eu... mas qual?” (http://bernadetebeserra.blogspot.com/2008/08/um-outro-eu-mas-qual.html) Era praticamente um apelo para ele se revelar. Sugeria que ele enviasse uma resposta privada. Mas, ao contrário, ele sumiu do blog por vários dias. Para mim, “muitos dias” uma vez que estava acostumada à nossa comunicação quase cotidiana. Depois reapareceu praticamente pedindo para continuar anônimo e explicando a sua ausência... O seu criador tinha uma vida real da qual precisava também cuidar... Além disso, sentiu-se intimidado e pressionado pela intensidade da minha crônica, dos meus sentimentos.

Passei a viagem Los Angeles-Fortaleza inteira tentando juntar as pistas oferecidas nos seus comentários, mas elas não me levavam a ninguém. Aproximavam-se bastante de alguns “suspeitos” apenas para depois desembocarem no nada. Circe me pergunta se não estou apaixonada por ele. Sim, claro, desde o princípio. Mas agora várias outras mulheres deste blog também sonham com Muad’Dib. Se ele aparecer teríamos talvez que pensar na constituição de um harém...

“Ousado” ele se imagina, como diz no mesmo comentário que postou o seu poema erótico. Ousado mesmo seria tirar a máscara, se revelar. Mas eu já não espero mais por isto. Deixo-o permanecer assim, enigma... Os nossos desejos e fantasias encontrando-se em todos os lugares inexistentes, como disse a Francinete. Tornando mais picantes e fantásticos os nossos cotidianos...

domingo, 7 de setembro de 2008

Viagem Chile-Peru: rumo à Santiago

a Circe Vidigal e Mari Chiba, que gostam de diários e viagens,

(estou postando esses relatos porque alguns amigos pediram... Eles se referem à viagem que fiz ao Chile/Peru em fevereiro deste ano da graça de 2008... Os computadores que "frequentei" tinham teclados diferentes dos nossos e nem sempre pude ser fiel ao meu amado idioma)

Santiago, 4 de fevereiro de 2008 Sao quase 8 horas e parece ainda de madrugada. Ficamos de sair de casa para um tour por Santiago la pelas 11... Tempo de sobra para digitar as anotacoes feitas ate agora.

Aeroporto Guarulhos, 3 de fevereiro, 9:30am
Quero voltar agora aa tempestade mental que me envolvia enquanto eu esperava na fila do check-in da Varig. Pensava no quanto as viagens me excitam; me carregam pra outros mundos e me poem em contato com os meus sentimentos mais profundos. Me poem em contato com o ser livre que ainda sou e que em tantas circunstancias imagino morto. Percebi, desde que cheguei ao hotel, que trouxe mais roupas do que o necessario. Na verdade, bastava 5 camisetas... e eu trouxe o dobro... Poderia ter-me consultado com o Lucas. Como me dizia o Paul, quanto menos, mais! Ele se referia aas palavras. Menos palavras, mais sentido, mais poesia, mais desafio. E, do ponto de vista da logica do vestibular da UFC, acrescentara Caio: menos erros. A bagagem alem do necessario eh uma metafora apenas. Preciso lidar com as consequencias das minhas escolhas... E fazer novas escolhas quando as anteriores nao me levam pra onde quero... Pelo sim, pelo nao, poderia encher a minha casa e a minha alma de avisos; viaje leve! quanto menos, mais!

O vocabulo " alma" me remete aa minha excitacao quando vinha do hotel. Palavras, ideias, sentencas rodopiavam aa minha volta como flocos de neve numa tempestade. Veio aa minha memoria o maior legado de O Denario do Sonho (Marguerite Yourcenar): " quando a alma eh surda, de nada servem as palavras."

Voo SP-Santiago
Estou escutando Kid Rock e me lembrando do Caio, que me ajudou a gravar as musicas que estou agora ouvindo... Estou me lembrando dele e de tantos outros anjos da guarda na minha vida... Quem me apresentou ao Kid Rock foi o Bill Schulte, um amigo querido de Riverside, que tinha/tem "pedigree" para ser qualquer coisa na vida e acabou se tornando jardineiro e produzindo as rosas mais cheirosas do mundo... E com isto criando problemas para si proprio e para varios maridos cujas esposas presenteou com essas rosas. Eu fui uma delas, embora nao me lembre de isto ter causado nenhum ruido particular na minha relacao com Sergio por isto. De fato, apesar de usar as suas rosas como instrumento de seducao, Bill nem estava tao disponivel assim. Era tao casado quanto eu e foi atraves do futebol da Raquel e da Bettina, sua filha, duas grandes jogadoras, que nos conhecemos e nos tornamos amigos. Depois que Sergio voltou com o Lucas para o Brasil, em meados de 1999, o Bill me confessou que se apaixonara por mim desde o primeiro dia que me vira. Era interessante conviver com a sua paixao que se transformava em rosas, poemas, longos papos regados a cafe, caminhadas pela Box Springs Mountains e viagens (com a familia!) aas praias proximas! Raquel e Caio achavam o Bill super "cool" e quando eu me apaixonei platonicamente pelo Armando eles acharam um tremendo mau-gosto. E estavam certos, como sempre. Porque platonica, a minha enfatuacao pelo Armando nao atrapalhava em nada a minha amizade com o Bill, ao contrario.

Diferentemente de todos os meus amigos, Bill era um nativo de Riverside e foi ele quem me ensinou sobre a cidade e a sua historia tudo que sei. Sobre a cultura das classes altas; a transformacao da paisagem com o crescimento de Los Angeles; como Riverside, com a producao de laranja, conseguiu, na primeira decada do seculo XX, ter a maior renda per capita do pais e se tornar famosa muito antes de LA. Tudo invertido agora. Um seculo depois do breve apogeu e do posterior e estonteante sucesso de LA, eh possivel que apenas um ou outro sobrevivente das classes dominantes de Riverside conte essa historia. Mas Bill tambem me apresentou a outros mundos: o do surf, por exemplo. E outros. Observo, atraves dele, a dinamica das amizades. Todas pressupoem tempo para gastar com o outro. (Depois de uns dez anos na pele de mulher, Deirdre me falava sobre esse tempo e esse investimento que desconhecia quando era homem, mas eu, ao contrário dela, conheci muitos homens que investiram na amizade). O Bill me comovia muitas vezes. Ele gostava das minhas mini-saias e um dia, saindo do Trader Joe's, me disse, apontando um casal de velhinhos "saudaveis": "ei Berna, eu te imagino daqui a algumas decadas como essa senhora aí e ainda usando essas mini-saias... e eu ainda te achando a mulher mais linda e mais sexy do mundo." Todo mundo que ama enxerga isto e enxerga seculos e seculos na frente, mesmo que a vida inteira nao dure mais meia hora. Um dia Bill me ligou aflito. Precisava conversar comigo urgentemente. Fomos para o parquinho do Family Housing. E ele me contou de Ted, grande amigo da adolescencia e dos primeiros anos de adulto. Ted era o cara mais bonito e mais cobicado do grupo. Nao havia mulher bonita que nao estivesse interessada nele. Depois se mudou pro Novo Mexico e foi um alivio para o Bill e seus amigos. Quem sabe as mulheres agora nao comecariam a prestar atencao neles? Bill me contou que no dia anterior recebera um telefonema dele. Estava passando por Riverside e queria encontra-lo. Bill foi ao seu encontro e quase morreu: Ted nao era mais aquele seu amigo, havia mudado de sexo; continuava muito bonito, mas agora sob o sexo feminino. Estava com a sua namorada/mulher... Ou seja, nao havia mudado de sexo porque nutria pelos homens qualquer desejo... Ao contrario. Bill ficou muito assustado com o encontro e queria conversar. Estava em crise. Nao de genero ou de sexo, estava em crise de tudo... Volto ao presente: O aviao acabou de decolar. Enquanto subia se descortinava aa minha esquerda a imensidao em que se trasnformou Sao Paulo...

(...)
A vantagem de voar Varig eh que ha vinho e nao custa 5 dolares como nos voos das companhias americanas. Enquanto almocava, conversava com Rosalba, uma venezuelana, mais ou menos 22 anos, companhia ate Santiago. Ela eh estudante de Relacoes Internacionais na Universidad Central de Caracas. Conversamos sobre varios temas: governo Chavez, linguas, hegemonia politico-economica. Ela tem uma visao mais imparcial do Gov Chavez, menos preconceituosa: acha que esta fazendo muitas coisas boas, mas lhe faltam delicadeza e diplomacia. Falamos em espanhol e ingles. Ela se entusiasma quando sabe que sou antropologa. E conversamos um pouco tambem sobre mim e o meu trabalho. As minhas descobertas sobre mim mesma e o mundo estudando brasileiros nos Estados Unidos. Pronto. Como vejo tudo em permanente transformacao, busco, agora, a Bernadete de Sumeh e dela so encontro a capacidade de sonhar... Tudo o mais se transformou, inclusive a forma como a enxergo e como enxergo Sumeh, seu eterno laboratorio existencial/poetico. Sumeh, como o sertao, tambem eh maior do que o mundo inteiro. Nao ha medo, surpresa ou traicao de que Sumeh nao tenha sido palco. Ainda ha pouco, quando caminhava do Terminal 1 para o 2 (aeroporto Guarulhos), eu me indagava sobre mim mesma. Meus sentimentos e desejos. E me sentia como imagino que se sente um monge budista: satisfeito. E essa satisfacao tinha a ver com a minha mais absoluta gratidao aa minha historia. Concentrava-me particularmente na gratidao aos meus pais. E por favor nao se suponha que ha aqui qualquer elogio ao que eles eram. Meio argentinianamente, eu diria que, se ha elogios a fazer nao tenho a menor duvida de que devem ser feitos a mim mesma... Pela capacidade de desde cedo transformar miseria em poesia... Falo do meu pai primeiro: eh possivel que ninguem no mundo tenha me ensinado mais sobre a solidao do que ele. Ao contrario de outros solitarios que conheci depois, ele nao temia a solidao. Entregava-se a ela de corpo e alma. Foi atraves da observacao da forma como ele lidava com a solidao que descobri o prazer do cigarro e da, entao, musica popular brasileira. Nelson Goncalves, Angela Maria, Cauby Peixoto... uns xotes de Luiz Gonzaga. E Amalia Rodriguez e Carlos Gardel. Eu queria fazer parte daquela solidao e ai inventei Heloisa, uma personagem de um dos meus romances que, ao contrario de mim, tem lugar na solidao do seu pai. Aprendi com Sebastiao Beserra de Souza que a solidao eh um excelente lugar e talvez por isto nunca me impressionei com a solidao dos Buendia. E sempre conversei sobre isto com os meus irmaos mais proximos e mais dados aas filosofacoes: Fabio, Lais, Katia, Klenia e Wallas. Mas eu sei que eh dificil ficar sozinha... Uma missao quase impossivel. Quando escolhi ir para um hotel ao inves de ficar na casa de alguem conhecido em SP, o que eu queria era ficar sozinha. Mas sao muitos os apelos de companhia: televisao, livros, telefone, internet. Entreguei-me aa companhia de Robert Pirsig (O Zen e a Arte de Manutencao das Motocicletas). Li-o pela primeira vez ha exatos 21 anos, em 1987, quando Kel nasceu. Li e me impressionei. Convenci varios dos meus amigos a tambem empreender a aventura de viajar com ele. Tornou-se uma das minhas mais importantes referencias... Eu nao aprendi nada sobre o zen, mas entendi um monte sobre a minha propria loucura e passei a relativiza-la e respeita-la ainda mais. Como eu, tanto o Robert Pirsig, quanto a sua personagem, Phaedro, haviam se aventurado pelas freeways e atalhos da loucura. Mas a sua loucura, diferentemente da minha, tinha origem noutros desafios. Sem me aprofundar numa busca de causas e efeitos, comparo os caminhos e descaminhos da loucura apenas aaqueles que me oferece o amor. A poeisa tambem, claro, oferece muitos insights. Mas de tudo que ja li somente dois poemas me levam dos pincaros do ceu aas profundezas do inferno: Song of the Open Road, de Whitmann, e Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke. Tabacaria, de Pessoa, também... As vezes leio apenas alguns versos desses poemas para me lancar numa busca de fazer inveja a Zenon (A Obra em Negro).

Uma conclusao provisoria, para quem precisa de conclusoes: a vida me assusta menos agora porque tambem me assusto menos comigo. Claro que ainda temo muitas experiencias, entre elas, a das drogas, da religiao e da criacao literaria. O amor que, de acordo com a Maria Rita Kehl, eh a droga mais pesada, ja nao me assusta mais. (Acho que "drogas" eh a categoria mais generica das citadas acima porque nela cabem o amor, a criacao literaria e a propria religiao...)

Sao quase duas da tarde e fomos avisados de que estamos nos aproximando de Santiago. O espetaculo da cordilheira dos Andres com os seus picos nevados confundindo-se com as nuvens eh mais apocaliptico do que o do Bryce Canyon. Tao extraordinario que me contenho para nao aplaudir. Rosalba ainda faz o gesto de aplauso e rimos cumplices. Estamos quase chegando. (....) Enquanto esperava na fila do banheiro, observava o tapete denso de nuvens e me imaginava caindo sobre elas como se sobre um colchao de penas... macio como meus seios... e seguro como o colo da mae...

Reencontro II

a Lúcia Couto

Voltava de uma farra, ante-ontem, quase madrugada, quando encontrei o seu recado no orkut. Difícil me entregar a Morfeu quando Lúcia Couto "esfuziantemente" me convida à vigília e à memória:

“Linda... louca... poetaaaaaaaaa!!!! Depois de muito clicar para cima e para baixo da maneira como minha cegueira cibernautica me permite, buscando fazer comentários no seu blog, cujo endereço consegui a partir de um encontro-fortuito-e-civilizado (num supermercado de shopping) com a Cláudia, caí na tua página do orkut...Uffffa é cansativo até pra narrar o fato. Enfimmmm...quero dizer que estou radiantemente esfuziante por te encontrar nas crônicas que li. O amor intelectual aflorou com força sumehriana!!!!! Beijos!”

Ri, feliz: a Lúcia de sempre, a Lúcia apaixonada, querida, que conheci e convivi por vários anos desde 1983, quando nos encontramos naquela turma de mestrado de sociologia rural, no campus II (Campina Grande) da Universidade Federal da Paraíba. Era uma turma pequena, 5 alunos, e até hoje me lembro de todos: Lúcia, Miguel, Ildes, Fernando Barroso e eu. Antes de encontrá-la pessoalmente soube que a sua prova havia sido a melhor do concurso. Segundo a mesma fonte, estávamos mais ou menos empatadas no nosso desempenho: meu projeto de pesquisa também havia sido o melhor. Mas isto não me dava conforto. Difícil aceitar que alguém vindo da Medicina tivesse tido o melhor desempenho num concurso para o qual, pelo menos eu e o Miguel havíamos sido (mal?) preparados durante os quatro anos de Bacharelado em Ciências Sociais! Insisti com a “fonte”: certeza mesmo que essa tal de Lúcia Couto fez a melhor prova? Despeitada, não gostei de Lúcia “à primeira vista”. Foi ela quem pacientemente foi destruindo as minhas resistências e me seduzindo. Acho que já a partir das primeiras semanas nos tornamos “best friends”... Ou meu despeito era frágil ou sua capacidade de sedução infinita... Parceiras de longas horas de estudo e co-autoras em vários papers das disciplinas: passávamos horas "viajando" nos títulos dos trabalhos: tinha que ser bonito, tinha que ser poético... Do que me lembro neste exato instante: o quarto de estudo, no quintal da sua casa, e nós duas devorando teorias da modernização da agricultura, campesinato e capitalismo e, inocentemente, destruindo os nossos pulmões com maços e maços de cigarro Hollywood. De repente, ela se levantava, pegava o violão e dizia: vou tocar uma música pra tu. Tocava e cantava sempre composições de sua própria autoria.

Quando a conheci, Lúcia já era “famosa”: ela e a sua banda haviam sido os vencedores no festival anual de música da cidade alguns anos antes. No ambiente acadêmico também era conhecida: mulher do professor Paulo Nakatani.

Mas Lúcia sempre foi muito mais do que tudo isso. Nunca encontrei tanta paixão e capacidade de trabalho e amor em alguém! Linda, alta, magrela, cabelos longuíssimos, felicíssimo produto dessa nossa mestiçagem desregrada, ela queria, provavelmente ainda quer, cuidar de todo mundo. Me contou histórias de Paris, de viagens de motocicleta, de festivais de música, do seu descontentamento com a medicina... abandonou a medicina, depois de uma especialização em microcirurgia, aparentemente sem remorso... Ensinou-me tanta coisa sobre culinária, arte de receber amigos, sexualidade, (idioma) francês...

Enquanto eu ainda me perdia no meu medo de tudo, Lúcia parecia já uma mulher livre, “com licença eu vou à luta”. Não parecia ter dificuldades para decidir a vida de todos à sua volta... Era firme, até meio autoritária às vezes, mas sempre muito querida e agradável. Inquieta, mas paciente. Em troca pelo que eu lhe oferecia de sociologia, antropologia, literatura e cariris paraibanos, ela me levava para passeios por muitos planetas...

Ontem, quando vi os recados que ela deixara no orkut, corri para as pastas de cartas que “coleciono” e, copio abaixo, os primeiros trechos da primeira carta sua que encontrei:

“Berlin, 9.10.92. Não direi hoje “querida Berna” pois seria pouco diante do que de emoção a leitura da tua carta evocou. A saudade infinita, ao desejo grande do reencontro impossivelmente imediato na varanda ou no boteco, soma-se aquela carência intelectual desgraçadamente enorme de quem até hoje só se encheu de perguntas?????????????????????? sem respostas plausíveis. Com todas essas considerações, iniciarei assim: Amada Berna! Esperei muito pela tua carta para te sentir mais perto. Afinal, durante a leitura se consegue ouvir a voz e perceber imaginariamente os gestos de quem escreve... Sinto muitas saudades!”

A carta prossegue por muitos longos parágrafos cheios de emoção e de descrições e reflexões sobre o que andava vivendo em Berlin naquele outono... Eu lhe consultava sobre a vida familiar em terras estrangeiras e ela me motivava a empreender tal aventura o mais rápido possível. Somente três anos depois, eu, Sérgio, Lucas, Raquel e Caio finalmente aterrissamos em Los Angeles e, meio maravilhados, meio assustados, navegamos pelas freeways que ligam Los Angeles à Riverside e lá ficamos por cinco anos.

O que aconteceu conosco? Com a nossa amizade? Por que ela intitulou “Reencontro” ao poema que ontem me dedicou? Não sei se reencontro é a melhor palavra porque, verdade verdadeira, nunca nos separamos ou nos perdemos uma da outra completamente. Os nossos corpos sairam perambulando por aí, em busca das experiências de que precisavam, mas as nossas almas, do jeito delas, permaneceram grudadas.

Mas é verdade, os movimentos da vida de cada uma criaram essa longa pausa na nossa comunicação mais profunda, como se propõe outra vez agora... Mas foi uma pausa entrecortada por encontros breves, aqui e ali, quando ela veio nos visitar uma vez ou quando eu ia para Campina Grande no São João... Também nos encontramos há uns três anos na sua casa cornucópia em Pipa. Mas é possível sim, que a partir de certo momento, eu tenha achado que Lúcia era "demais" pra mim. “Demais” no sentido de Fernando Pessoa, em Tabacaria. Era coisa demais que a sua companhia mexia, acordava, indagava. E eu, nessa minha limitação canceriana, precisava me manter concentrada na minha caminhada meio trôpega, meio inviezada, quilômetros atrás dela... Mil coisas novas ao meu redor e eu tentando viver e compreender: filhos, marido, trabalho... Meu Deus, meu Deus... tanta coisa!

Lúcia, querida, que alegria que estas Sumehrianas me trouxeram você! É bom saber que depois de todos esses afagos virtuais, brevemente nos abraçaremos ao vivo e a cores... É claro que eu te amo. Tim-tim!

sábado, 6 de setembro de 2008

Reencontro

(Tantos encontros e reencontros que estas Sumehrianas estão rendendo... Amanhã falo mais sobre isto. Mas ofereço agora ao leitor este poema lindo que recebi de Lúcia Couto, uma mulher linda que tive o privilégio de encontrar no primeiro dia de aula do mestrado em sociologia rural, em Campina Grande, há quase mil anos... ou quando mesmo, meu Deus?)

Para Berna


Agora que as crianças dormiram
Aquele sono de infância que
nossas memórias guardam
podemos, desde nosso silêncio
ocidentalmente ocupadas
recuperar liames
enquanto pessoas amadas.
Amor jamais corrompido
Pelo tempo passado
Entre um encontro e outro...
Jamais consumido
No cotidiano desencontrado
De pessoas alheias
Ou definhantes sentimentos
Na hipocrisia pautados...

Não...não fomos nós!

Agora que as crianças dormiram
Permitindo aos adultos a deixa
De buscar seus próprios cerrados,
Vamos nós por em dia
Da nossa vida o regaço.
Vamos nós de alegrias
Preencher o terraço
Da casa que não conhecemos
Que não construímos
E que talvez... tanto quisemos.
Projeto presente em cada sono
Cada sonho comunitário
Que para além
De qualquer chavão revolucionário
Era parte de quem re-parte
Por um devir visionário.

Sim...fomos nós!

Agora que as crianças dormiram
Que se nos cheguem
Todos os tempos e palavras não ditas
Que se preencham todos os espaços
Dos quais a vida
Com seu bom(?) senso nos privou.
Que se nos cheguem
Todos os viajantes que nem cumprimentamos
E que menos ainda amamos.
Que se nos cheguem
os tempos de hoje... surrealista pintura
como os ventos que levam os invernos
como os amores que aliviam os infernos
como as dores que obrigam à cura!

Sim...somos nós!

Agora que as crianças dormiram
Que os homens se foram
Em sua busca insana
À procura do nada
É nossa vez de,
Assim como é sangrar
Uma vez por mês,
Permitir à palavra a fluidez
E ordenar a emoção do pensamento
De maneira que de agora em diante
E até o fim dos nossos tempos
Nenhuma lacuna
Ou estanque momento
Venha nos fazer lamentar
Quando uma ou outra
Parar de respirar
Em rendição à vitória do tempo.

Lúcia Couto

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

“Solidão Equilibrista” no mundo, finalmente!


Comecei a sonhar e viver o mundo dos livros antes de desenvolver qualquer consciência sobre o mundo mais concreto ao meu redor. Lembro-me, a partir dos dez anos, a felicidade que sentia quando ia aos Correios receber os livros que havia pedido às Edições de Ouro. Meu coração batia forte enquanto eu subia a ladeira da Sizenando Rafael correndo para chegar em casa e abrir logo o pacote. Até hoje guardo comigo o cheiro daqueles livros recém-chegados da longa viagem do Rio de Janeiro a Sumé... Entrei nesse mundo pelas mãos e histórias de Kátia, minha irmã mais velha, outra devoradora de livros. Na loja de papai, onde trabalhávamos todos, eu a ouvia, nos dias mais vagos da semana, conversando com seu Inojosa ou Seu Miguel Guilherme sobre os livros que estava lendo. Sempre achava fascinante aqueles mundos dos quais falava e o que mais queria era poder habitá-los.

Não sei exatamente quando comecei a querer escrever livros... acho que foi desde que comecei a lê-los. Queria recontar as estórias lidas porque nunca me conformava com os seus finais... ou alguns dos seus desenvolvimentos. Por que elas tinham que ser contadas sempre do mesmo jeito?

Já a poesia, do jeito que compreendo hoje, me foi apresentada mais tarde, por Álvaro Luís Guedes Pinheiro quando nos encontramos no segundo ano científico, no Pio XI, em Campina Grande, 1977. Por isto e pelo amor que sentimos um pelo outro, dediquei Solidão Equilibrista a ele. É quase um filho nosso... Na verdade é um filho de muitos pais e mães... Mas a presença de Álvaro na minha vida foi crucial para que esse livro de poemas viesse um dia a existir. Meus filhos, Lucas, Raquel e Caio também. Por isso que dedico também a eles; "aos bem-te-vis do meu quintal... e a todos os seres e dúvidas que não me deixam dormir mais do que o necessário..."

Escrever poemas eu escrevo de vez em quando... Aqui e ali. Esporadicamente. Não sou uma poeta como é a Olga, o Zé Netto, ou era o Álvaro... É quase um milagre que tenha conseguido reunir o suficiente para um livro. Mas eu sempre quis contar e publicar estórias... Não que as escrevesse; de fato, escrevia apenas cartas e diários. As histórias eu apenas imaginava... Tinha medo da escrita, achava quase um sacrilégio escrever... Fui, através da antropologia, perdendo esse medo e, de vez em quando, escrevendo um conto ou rascunhando o início de um romance. Tenho arquivos e arquivos com contos e romances inacabados... Esperando às vezes, para serem concluídos, apenas algumas horas da minha dedicação...

Solidão Equilibrista é também filho de uma parte minha que não quer mais negociar com aquela que está sempre em fuga da literatura e se abriga, medrosa, nos relatos antropológicos e noutras formas de escrita que não têm tanto compromisso com a revelação da alma. Decidi publicá-lo desde que o meu livro, Brasileiros nos Estados Unidos, saiu, New York. O meu lado mais literário sentia-se meio traído... Como assim, primeiro a antropóloga e depois a escritora?

Juntei uns 30 ou 40 poemas e pedi ao Seu Carvalho para dar uma olhada e ver se se inspirava por aqueles versos o bastante para escrever um prefácio. Depois de poucos dias, recebi seu telefonema dizendo que já escrevera o prefácio; que gostara muito dos versos que eu lhe apresentara.

Poucos vezes na minha vida senti-me tão feliz quanto naquela tarde em que li, pela primeira vez, os seus comentários sobre o meu livro. Li e reli o seu “prefácio” centenas de vezes... Era uma carícia na minha alma... e que eu não queria que terminasse nunca... Isto foi há quase quatro anos, em fins de outubro de 2004. Depois que meu livro, Brazilian Immigrants in the United States: Cultural Imperialism and Social Class, saiu eu não tive mais sossego: fiquei viajando muito para dar palestras nos Estados Unidos e não tinha tempo de me dedicar a publicar o livro de poemas... Mas fui fazendo uma coisa e outra e outra parte importante do livro que foi feita já nesse período foi a capa: Kinha e Ado, amigos de Campina Grande, produziram uma capa que é a minha cara... É a cara do conteúdo do livro... Com todo o respeito pelas capas lindas que há por aí, a de Solidão Equilibrista é a mais linda do mundo...

Desde o ano passado, quando voltei de Chicago, iniciei o trabalho de produção do livro, dessa vez era sério, eu queria ver o livro publicado, mas não tinha pressa, queria que fosse bem produzido, afinal já esperara tanto tempo! Meu querido amigo, e ex-aluno, Gilberto Machado, me apresentou a dois artistas, seus ex-alunos do CEFET: Lyse Horn e Leo Brum. Eles ilustraram o livro. Então, é um livro superlindo, que até as crianças gostarão de pegar, de olhar, porque tem figuras! Aproveito para agradecer aqui aos dois pela disposição de se debruçarem sobre os meus poemas e se deixarem inspirar por eles para me ajudarem a produzir um livro mais bonito, mais delicado...

Mas foi o trabalho paciente de Yone Almeida que deu ao livro uma diagramação quase perfeita... Ela “vestiu” os poemas... brincando com elementos da capa nas páginas internas onde há espaço para tais brincadeiras... Uma graça... Thanks Yone, pela sua paciência e pelo seu entusiasmo. Completam o livro o posfácio de Ireleno Benevides, poeta e colega de UFC, e a orelha de Nilze Costa e Silva, conhecida poeta e fundadora e colega nos Poemas Violados. Não posso deixar de agradecer também à gentileza e paciência do editor, Cláudio Guimarães, e de todo o pessoal da imprensa universitária da UFC, sempre tão pacientes com as minhas demandas: Charles, Heron, Luiz Carlos, Leonora...

Então é isto: estou muito, muito feliz de dar a luz a esse livrinho tão querido e tão esperado... Vou já-já providenciar o seu lançamento em Fortaleza e nas cidades onde tenho amigos poetas... E aí convido todo mundo!

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Antes que Floripa e Jericoacoara se percam pra sempre...

Lar doce lar. Alívio e sofrimento... Alívio porque é bom mesmo chegar e espalhar tudo e não ter que negociar com ninguém o próximo passo, a próxima hora... Sofrimento porque, após esses primeiros instantes de usufruto da libertação do “outro”, tenho que me decidir sobre o que fazer com o meu excesso de liberdade... E agora, o quê?

Quase igual à história do “pedi e obtereis” da prece, pedi ao meu chefe, Nicolino Trompieri, uma trégua naqueles cursos introdutórios de mil alunos e ele me concedeu... Agora estou ensinando apenas duas disciplinas: Antropologia da Educação, no curso de Pedagogia, e Pesquisa Etnográfica, na pós-graduação em Educação. Fizemos esse arranjo porque eu o convenci de que se não escrevesse o “livro” da pesquisa de Chicago agora, jamais escreveria. As aulas às turmas introdutórias de 50-60 alunos são uma espécie de alucinação da qual só me dou conta quando tudo passa, mas, enquanto dura, não dá para se envolver com mais nada, apenas seguir o conselho da Marta Suplicy: relaxar...

Agora, pois, tenho tanto tempo livre que parece até que estou diante da vida eterna... Para não me atrapalhar, o que é difícil, porque sempre me atrapalho com tudo, preciso escrever tudo que tenho que fazer e dividir o tempo entre elas... Uma agenda rigorosa.

Este blog será uma das coisas que tenho que fazer: a que mais me convida agora. Acho que vou trazer o “livro” pra cá: é um jeito de não escrever sózinha. Depois penso nessa história complicada de autoria e co-autoria, mas neste exato instante, me dou conta disto: que posso escrever o “livro” aqui e aí me sentirei menos só...

Eu, que vivo dizendo por aí, que não tenho medo da solidão, nem da morte e nem de Deus, agora com essa história de dependência com este blog... Pronto, é isto: a escrita no blog é uma prova da minha carência do outro: o leitor, o comentador... E os meus diários de verdade, que andam meio abandonados, são mais um encontro comigo, com Deus: não preciso de feedbacks quando os escrevo... A própria escrevinhação já é o feedback... a cura.

Enfim, cheguei, acho, embora às vezes ache que não chegarei nunca mais porque estarei sempre em trânsito... É uma sensação esquisita, mas também confortável... Não quero falar sobre isto agora... Agora preciso organizar umas anotações para a aula de Pesquisa Etnográfica...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A bela e provinciana Floripa

(Florianópolis (Córrego Grande), 26 de agosto de 2008)

Quero começar explicando que não há nenhuma conotação pejorativa no adjetivo “provinciana” do título da crônica, ao contrário. Poderia ter usado outro adjetivo: aconchegante, por exemplo. Mas provinciana rende mais palavras, mais explicações. Então, eis porque.

Ontem, enquanto caminhava com o Lucas para a casa de Felipe, seu amigo, me lembrava dos tempos de antigamente quando ia passar férias na casa de “vózinha” e caminhávamos do seu sítio/fazenda até o de Tio Ananiano. Claro que o Córrego Grande, bairro onde estou, não é tão rural assim, inclusive os latidos fortes dos pitbulls aqui e ali, que me assustavam e irritavam, também lembravam que estávamos numa cidade grande. Talvez tenha sido a familiaridade do Lucas com lugar o que me fez lembrar mesmo de “antigamente”: a casa do Felipe parecia ser uma extensão da sua. Caminhávamos pelas ruas como se elas já lhe pertencessem: tal como um anfitrião nos mostrando os vários cômodos da casa. Íamos à casa de Felipe com dois propósitos: levar o lixo orgânico daqui e checar a internet. Checar a internet nada tinha a ver com as necessidades do Lucas, mas com as minhas: um dos meus vícios. O Lucas aproveitava a minha necessidade para alimentar a sua horta. E isto é extraordinário: não tendo mais o seu próprio sítio para cultivar, como em Fortaleza, ele transformou o quintal do Felipe nesse lugar onde pode continuar capinando, jardinando...

Conto do começo: quando depois de dois vôos da Gol finalmente cheguei em Floripa, lá estava Marcionília me esperando com o seu sorriso enorme. O Lucas tinha aula logo em seguida e, depois de uns quinze minutos de viagem de visões panorâmicas, nos deixou nas imediações do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Era hora de almoço e Marcionília me levava para o self service do restaurante dos servidores. Que alegria ver servidas como comuns todas as verduras e legumes que em Fortaleza são excepcionais: brócolis, brotos, beringela, vários tipos de alface, couve-flor, rúcula... que felicidade. O caminho do aeroporto para o Córrego Grande já oferecia uma idéia razoável da cidade: morros e praias... ou lagoas? Mas, diferentemente do Rio de Janeiro e Salvador cujos morros são povoados pelos pobres, aqueles pareciam mais “arrumados”, mais ricos. Mas Lucas e Marcionília me explicam que não, que aquelas são as favelas daqui. Chique, hein? E aí vão contando outras coisas da sociabilidade florianopolitana: não há praticamente aquela violência tão comum em Fortaleza e na maioria das cidades com população superior a meio milhão de habitantes (aqui tem 800 mil). E até praia para surfar, como em Fortaleza, Lucas também tem. Quase em casa: uma temperatura mais fria apenas, parece ser a única grande diferença. Eu não perguntei nada ainda sobre os preconceitos dos catarinenses contra os nordestinos... Será que nem isto?

Estou aqui, na aconchegante quitinete de Lucas e Marcionilia, esperando que ela chegue da aula de dança para inventarmos algo pra comer ou sair à cata de um restaurante. Lucas ficará dando aulas de inglês até as 22 horas. Quando cheguei da conferência, Lucas ainda estava aqui e me contou, sem muito sofrimento, que a sua carteira e celular haviam sido roubados... Havia ido surfar, com o Felipe, e deixaram carteiras e roupas no “esconderijo” que sempre deixam e quando voltaram do surf só encontraram as roupas. Menos mal. Mas, enfim, além do transporte público que todo mundo reclama, Florianópolis também tem o “descuidismo”... Mas eu não experimentei nenhum dos dois ainda e, por enquanto, Floripa é para mim sinônimo de aconchego, comida saudável, farta e barata e montanhas lindíssimas que circundam todos os lugares por onde vou...

"Finas fatias de viagem cortadas no ar..."

Aeroporto Pinto Martins, 25 de agosto de 2008
5:39am
São coisas diferentes que fazemos em aeroportos e rodoviárias. A memória é vívida porque há apenas 4 dias fiquei esperando na rodoviária de Fortaleza para ir para Jericoacoara. Lá não enxergo nenhuma possibilidade de, como aqui, sentar no chão, perto de uma tomada, e ligar meu computador. Os passageiros já se espremem perto do portão de embarque. Nunca faço isso. Nunca fico na fila. Permaneço no saguão até o último instante; em geral sou das últimas a embarcar. Observei hoje, enquanto na fila do check-in, que aprendi a gostar de aeroportos. Inclusive, gostar dessa distância “ótima” que os passageiros estabelecem entre si: ninguém incomoda ninguém; ninguém pergunta nada a ninguém. E eu posso me perder em paz nos meus delírios, nas minhas escrevinhações...

Há uns instantes senti como se tivessem acendido uma enorme lâmpada amarela atrás de mim. Meio incomodada me virei para ver o que era: o sol. Enorme, iluminadíssimo, amarelo-dourado. É sempre bom o sol nascendo... Agora está incomodando um pouco... mas ainda assim é bom. Me lembrei agora de uma entrevista com um desses físicos famosos nacionais, uma vergonha que não me lembre do nome dele porque é um dos mais famosos. Ele falava sobre o resfriamento do sol e evocou uma imagem que nunca mais me saiu da cabeça porque extremamente poética e irônica: o sol com uma vela na mão. Dizia que podia sim, que o sol podia, literalmente, ficar em tal situação. E eu fiquei morrendo de pena do sol: quem te viu, quem te vê...

Aeroporto Antônio Carlos Jobim (Galeão), 25 de agosto de 2008
10:19am
Desembarcamos há pouco e estou aqui, diante do portão pelo qual terei que passar para embarcar para Florianópolis. Saudades do Lucas e da Marcionília e vontade de conhecer essa cidade de que todos falam tão bem, quer dizer, como nada é perfeito, dizem, tem o pior transporte público do país.

Não posso perder a oportunidade de falar mal da Gol. Nem me lembrava mais que era assim, que o serviço de bordo era o pior do mundo. Imagine que nem café servem! Aí servem umas barrinhas de cereais, refrigerantes, suco de laranja e água. A aeromoça, chatíssima, estridente, me perguntou: quer cereal de banana ou maçã? E, para beber, água, suco ou refrigerante? Resolvi me comportar como uma surda e respondi: quero café. Ela, bem alto, e olhando pra mim como se eu fosse total idiota: “não temos café, senhora, apenas água, refrigerante e suco.” Aí eu quis suco de laranja, estava morrendo de fome, tinha que escolher mesmo, mas o fiz sob protesto. E continuei protestando com o outro comissário de bordo: um rapaz gentil, de voz sossegada e baixa. E ele explicou que a Gol nunca serviu café. Eu argumentei que inicialmente, quando as suas passagens eram 40% mais baratas que as das outras companhias, tudo bem. Mas agora?! Ele concordou. Depois eu disse: “devia ser mais “brasileira” e servir café.” Ele concordou também e me disse que todo mundo reclama. E me ensinou: vá ao site e também reclame. Mas também contou que isto vai mudar: a empresa está ouvindo as queixas dos consumidores. Eu não quero saber: a partir de agora só viajo pela Gol se for naquelas promoções de 100 contos ida e volta. Pronto. E aí trago minha lancheira. Mas aí, vejam, não foi uma reclamação vã: eu já estava completamente perdida nas aventuras antropológicas de Hortense Powdermaker, de quem voltarei a falar proximamente, quando o gentil comissário de bordo aproximou-se de mim e perguntou se eu queria um pouco do café que ele havia preparado para ele. Fiquei comovida e meio encabulada, sei lá, sentindo-me meio discriminada, positivamente, mas discriminada. Disse que sim. E ele trouxe o café. Como todos os copos que usam são aqueles transparentes para refrigerantes, ele usou o seguinte disfarce para não criar uma situação de protesto generalizado: usou dois copos; sendo que o que estava com café foi envolvido em guardanapos e posto no segundo, de modo que o conteúdo tornou-se invisível. Agradeci com a mão no coração, interrompi a minha leitura e comecei a degustar aquele café horroroso, preparado com nescafé, como se fosse um Kauai (Hawaí). Dali a instantes ele me surpreendeu de novo: trouxe biscoitos cream crackers e maizena...

Aproveito o ensejo para fazer um elogio à gentileza. Há algo mais comovente e benvindo do que a gentileza? Digam o que quiserem dizer do mundo moderno, burguês, capitalista, mas a invenção da gentileza só merece elogios... Não estou falando da cordialidade servil, colonizada, medrosa... Estou falando da gentileza de escutar o outro; colocar-se no seu lugar e dialogar com ele dessa perspectiva.

sábado, 23 de agosto de 2008

De ficção e ficções...

No dia 13 de agosto, um dia antes de voltar ao Brasil, inspirada pelos comentários de Muad´Dib a postagens anteriores, escrevi a crônica “Um outro eu... mas qual?” Recebi vários comentários, mas um deles, o de Emma, provavelmente não foi compreendido por muita gente. Copio o que ela escreveu: “Lembranças... Berna, desde ontem à noite fiquei pensando em uma pegadinha que você me fez há uns 20 anos atrás... sobre uma paixão... e me veio à mente coisas desse tipo. Quem é quem no mundo de hoje? Quem é a criatura e quem é a criadora??? Seria divertido.”

Emma sugeria que Muad´Dib fosse uma criação minha. Recebi o comentário como um elogio. Ela sugeria que eu era uma ficcionista tão imbuída do seu papel que transformava em ficção a própria vida. Conto agora a história da “pegadinha” do jeito que me lembro para depois voltar a falar de Muad´Dib.

Longos idos meados da década de 1980. Estava me recuperando do final do namoro com Valdemar e dividia um apartamento com Emma C Siliprandi, em Campina Grande. As duas fazíamos mestrado em Sociologia na UFPB. Para ajudar a sarar a dor de cotovelo fiquei viajando mais sistematicamente para João Pessoa: pela praia, por Laís, pelos amigos Giovanni, Leo e Ana Tereza e o recém-conhecido, mas já querido, Roderick Fonseca. Emma estava me achando meio silenciosa, meio esquisita. Eu já não sofria mais tanto pelo final com o Valdemar e, portanto, já não queria falar mais disso. Acho que o que vivíamos no mestrado não rendia naquele momento conversas particularmente entusiasmadas.

Emma e outros amigos achavam que o melhor jeito de me libertar do final da história com Valdemar era entrar numa nova história. Havia até certa pressão nesse sentido... Um dia, após voltar de JP, Emma me perguntou: “Ei Berna, tudo bem?” Naquele exato instante comecei a lhe contar a história desse cara esquisito que eu havia encontrado em JP... Naquele mesmo dia, escrevi no meu diário sobre ele. Meu silêncio passou a ser sinônimo de concentração no cara e naquela paixão esquisita. Passaram-se várias semanas, várias idas a JP. Emma sempre me perguntava por "ele" e eu contava como as coisas estavam indo... As férias chegaram e Emma viajou por um mês inteiro . Quando voltou, estava ansiosa para saber sobre o meu “namorado”. E eu, completamente desprevenida, respondi: “que namorado?” Ela: "o teu namorado esquisito, guria!"E aí aquela história: a vida inteira para adquirir confiança e apenas um instante para perder. Eu me traí com a minha resposta. Havia esquecido a própria ficção. Tinha inventado a história do namorado esquisito porque achava mais fácil atribuir o meu ensimesmamento a ela do que às dúvidas e buscas.

Emma não me perdoava por eu ter “inventado” a história. E me olhava ora como a uma louca ora como a um monstro. Pelo jeito, até hoje não me perdoou. Enfim chego ao presente. A Muad´Dib e à hipótese de Emma de que ele também pode ser ficcional. Eu tenho certeza que é. Apenas não é cria minha, isto eu garanto. Não me sinto capaz de criação tão extraordinária, pelo menos não ainda.

Como Emma e outros leitores deste blog, também sinto muito a falta de Muad´Dib... Não sei porque ele sumiu, sei que foi imediatamente após a crônica em que revelo o impacto que têm os seus comentários sobre mim... Pois é, não sei porque sumiu... mas adoraria que voltasse...