http://www.cnn.com/2008/US/07/29/earthquake.ca/index.html#cnnSTCVideo
Riverside, Califórnia, 29 de julho de 2008
Finalmente cheguei na Califórnia. São meio-dia e catorze minutos no tempo daqui e cheguei há quase quatro dias, mas foi somente agora que aterrisei verdadeiramente, com todas as boas vindas que mereço. Estava conversando ao telefone com meu amigo Armando Gonzalez-Caban quando senti a casa inteira balançando. Estava numa local e numa posição privilegiada: sentada num sofá na sala de estar da casa de Liz (sogra da Kel). Daqui, pela janela da esquerda, vejo as Box Spring Mountains... e vejo também outras janelas e outras portas: a da cozinha para o quintal. A sensação que tive desta vez foi a de que um enorme trem estava passando por baixo dos meus pés. Tudo tremeu e não desapareceu num piscar de olhos. Depois tremeu e balançou de novo. Janelas, luminárias, móveis. Nada caiu no chão. Eu e Armando rapidamente conscientes do que se passava à nossa volta não tínhamos nada a fazer a não ser rir. Claro que se o chão tivesse se aberto diante de mim eu não riria. Mas também não tenho idéia do que faria. Mas, assim, o terremoto é apenas um lembrete. Nick, marido da Kel, me disse agora que a magnitude foi de 5.8 na escala Richter. Agora todos já estão comentando sobre o assunto, inclusive a CNN: um forte terremoto atingiu o centro de Los Angeles... tão grande que foi sentido até em Las Vegas... Depois conto mais deste encontro com a Kel e com Riverside.
"Sumehrianas" é uma brincadeira e uma homenagem à minha cidade natal, Sumé, Paraíba. É uma brincadeira porque, de fato, quem nasce em Sumé, é sumeense. Mas os meus colegas, civilizados, do Pio XI, Campina Grande, 1977, “viajavam” pra longe quando eu dizia a minha procedência. Na verdade, eles diziam sumeriana, em referência à Suméria. Estou acrescentando um “h” depois do “e”, para continuar a brincadeira e também para tornar estas “sumehrianas” únicas.
quinta-feira, 31 de julho de 2008
domingo, 27 de julho de 2008
Ainda sobre solidão & literatura
Um dos comentários à minha crônica “A Solidão do Blog” veio do Zé Netto. Ele disse mais ou menos assim: “é isso mesmo, você queria o quê? Só há escrita se houver solidão.” Ele fala claramente da solidão como recolhimento. Se o escritor não fechar as portas do mundo para ouvir ou observar o que há dentro de si, ele não produzirá nada. Verdade. Este é o primeiro passo: abre-se mão da companhia dos homens para se entregar a companhia ainda mais imprevisível, a da palavra. Silencia o mundo lá fora para dar espaço ao que sobrou dentro. Tentei conversar sobre isto com o Caio, mas ele não teve paciência para as minhas filosofações. Mas eu queria conversar mais sobre a minha dependência da palavra escrita; do ter que escrever todo dia pelo menos uma anotação no diário. Uma carta. Um poema. Um artigo de opinião. Um email. Qualquer coisa. É como se não houvesse espaço para a existência não intermediada pela palavra. Nesse sentido, escrever é praticamente sinônimo de existir. Não é vaidade, é necessidade. Uma questão de vida ou morte, como diz Cecília Meireles em Traduzir-se.
Blanchot (O espaço literário, p 12) concorda que a “obra” é solitária, mas (insiste que) “isso não significa que ela seja incomunicável, que lhe fale o leitor”. O que eu tentava dizer pro Caio era algo relacionado com as duas afirmações, algo meio paradoxal: é através da sua solidão inscrita na palavra que o escritor se comunica com o mundo. Aqui, o que parece distanciar aproxima. A solidão que “priva” o escritor do mundo produz depois a reaproximação através da obra.
A pergunta que faço a seguir é a que sempre me fizeram: por que o sacrifício? Ou seja, por que renunciar ao mundo? “Por que você não deixa esses livros pra lá e vai ‘viver’”? Como assim “viver” se pra mim o espaço existencial por excelência era o do silêncio, aconchego e agonia da “obra”? Pra mim, viver era ler; ler era viver. Depois, aos poucos, fui experimentando o mundo de que todos gostavam tanto. Permiti-me também arrebatar por ele: amigos, amores, diplomas, filhos e outros desejos. Mas, de algum modo, através da ciência ou da literatura, sempre mantinha minha fidelidade ao mundo da palavra. Indomável como é, a palavra era o meu porto seguro. Faltava namorado, amigo, pai, mãe, irmão, filho, mas a palavra estava sempre lá, quase como Deus. Não, vejo agora que a palavra não era quase como Deus, era, de fato, a sua mais legítima expressão, era Deus. No sentido cristão-ocidental: me abrigando às vezes, me chicoteando outras. As vezes doía mais a intraduzibilidade da dor em palavra do que a dor em si.
Até aqui não toquei no outro sentido de solidão que Blanchot explora na obra citada acima. Ele fala de algo que experimentei apenas superficialmente e não sei se terei coragem de fazê-lo mais intensamente: a entrega do Eu ao Ele. Blanchot, parafraseando Kafka, afirma que só há literatura quando o EU abdica de si para metamorfosear-se n’ELE. É nessa metamorfose que o autor experimenta a solidão no sentido mais usual: o de abandono. O autor não mais falará de si (EU), mas d’ELE. É nessa circunstância, dizem tanto Blanchot quanto Canetti, que surge a necessidade do diário; espaço onde o escritor ainda fala de si, do EU. Submete-se ao tempo dos homens. Confere a hora, o calendário: hoje é sexta-feira, 25 de julho. Enquanto me deixo levar por essas conjecturas de vôo, lembro-me que meus amigos dos Poemas Violados estão se preparando para entrar em cena: cumprir a programação do Dia do Escritor. Lembro-me também que Caio está entrando em sala de aula. Pronto. Estou ligada com o mundo. Esta é uma referência de realidade uma vez que metamorfoseado n’ELE, o EU entrega-se ao fascínio da ausência de tempo. Foi sobre isto que conversei com Regina, minha comadre, no nosso último encontro. Ela me dizia que não tinha condições de se dividir entre as funções de mãe, esposa e funcionária pública e a de artista. Toda vez que entra em contato com a arte teme perder a referência do mundo das obrigações domésticas, conjugais e profissionais. Eu disse pra ela que consigo conciliar as duas coisas. Mas não é verdade. Não creio que haja conciliação: vivo no limbo; não me entrego profundamente a nenhum dos dois mundos. Como seria a experiência de se entregar?
Blanchot (O espaço literário, p 12) concorda que a “obra” é solitária, mas (insiste que) “isso não significa que ela seja incomunicável, que lhe fale o leitor”. O que eu tentava dizer pro Caio era algo relacionado com as duas afirmações, algo meio paradoxal: é através da sua solidão inscrita na palavra que o escritor se comunica com o mundo. Aqui, o que parece distanciar aproxima. A solidão que “priva” o escritor do mundo produz depois a reaproximação através da obra.
A pergunta que faço a seguir é a que sempre me fizeram: por que o sacrifício? Ou seja, por que renunciar ao mundo? “Por que você não deixa esses livros pra lá e vai ‘viver’”? Como assim “viver” se pra mim o espaço existencial por excelência era o do silêncio, aconchego e agonia da “obra”? Pra mim, viver era ler; ler era viver. Depois, aos poucos, fui experimentando o mundo de que todos gostavam tanto. Permiti-me também arrebatar por ele: amigos, amores, diplomas, filhos e outros desejos. Mas, de algum modo, através da ciência ou da literatura, sempre mantinha minha fidelidade ao mundo da palavra. Indomável como é, a palavra era o meu porto seguro. Faltava namorado, amigo, pai, mãe, irmão, filho, mas a palavra estava sempre lá, quase como Deus. Não, vejo agora que a palavra não era quase como Deus, era, de fato, a sua mais legítima expressão, era Deus. No sentido cristão-ocidental: me abrigando às vezes, me chicoteando outras. As vezes doía mais a intraduzibilidade da dor em palavra do que a dor em si.
Até aqui não toquei no outro sentido de solidão que Blanchot explora na obra citada acima. Ele fala de algo que experimentei apenas superficialmente e não sei se terei coragem de fazê-lo mais intensamente: a entrega do Eu ao Ele. Blanchot, parafraseando Kafka, afirma que só há literatura quando o EU abdica de si para metamorfosear-se n’ELE. É nessa metamorfose que o autor experimenta a solidão no sentido mais usual: o de abandono. O autor não mais falará de si (EU), mas d’ELE. É nessa circunstância, dizem tanto Blanchot quanto Canetti, que surge a necessidade do diário; espaço onde o escritor ainda fala de si, do EU. Submete-se ao tempo dos homens. Confere a hora, o calendário: hoje é sexta-feira, 25 de julho. Enquanto me deixo levar por essas conjecturas de vôo, lembro-me que meus amigos dos Poemas Violados estão se preparando para entrar em cena: cumprir a programação do Dia do Escritor. Lembro-me também que Caio está entrando em sala de aula. Pronto. Estou ligada com o mundo. Esta é uma referência de realidade uma vez que metamorfoseado n’ELE, o EU entrega-se ao fascínio da ausência de tempo. Foi sobre isto que conversei com Regina, minha comadre, no nosso último encontro. Ela me dizia que não tinha condições de se dividir entre as funções de mãe, esposa e funcionária pública e a de artista. Toda vez que entra em contato com a arte teme perder a referência do mundo das obrigações domésticas, conjugais e profissionais. Eu disse pra ela que consigo conciliar as duas coisas. Mas não é verdade. Não creio que haja conciliação: vivo no limbo; não me entrego profundamente a nenhum dos dois mundos. Como seria a experiência de se entregar?
terça-feira, 22 de julho de 2008
De Rainhas e Desejos (um conto, porque a Marcionília pediu)
Não gosto de encontrá-la aqui, entre vozes, cheiros e peles itinerantes. Temo que ela se perca outra vez, antes que eu a tenha. Tê-la: páreo duro.
Não fosse o Rei (e todos esses olhares) a protegê-la da minha cobiça, já teria conquistado todos os recônditos do seu corpo. Ela me convida. Brinco com os seus lábios que se abrem devagar e deixam seus dentes afiados morderem a ponta dos meus dedos. Seguro-me forte para não me deixar levar pelos seus olhos enfeitiçados e sedentos. Mas a boca vermelha na minha pele devolve-me ao meu corpo e acorda instintos ancestrais: quero devorá-la toda.
Mas paro. Preciso começar de novo, nem que dure tudo e séculos e mais. Preciso não ceder à tentação imediata de seios que pulsam de desejo, que rogam pela minha boca, pelas minhas mãos e num descuido me carregam céleres pros quintos dos infernos. Quero ir onde quer que a nossa ânsia nos leve, mas homeopaticamente. Sem que eu perca do seu corpo nenhum espaço e deste encontro nenhum instante.
O Rei não desconfia que existo, não pressente o perigo.
Começamos tudo outra vez. Pelos pés, agora. Descalço-lhe a sandália de tirinhas pretas de couro e sinto-me como um pirata diante do seu tesouro: cada uma das pedras preciosas provoca prazer diverso e todas são fundamentais. Agora são os seus dedos que estão entre os meus dentes e este desejo de lambê-los devagarzinho, gostoso; depois ir mordendo cada vez mais forte até devorá-los. Daqui ela parece imensa, mas minhas mãos empreendem a caminhada pelas longas pernas, subindo ávidas pelas coxas. Ela se encolhe de prazer e suas coxas prendem minhas mãos, impedindo-as de ir além. Seus olhos sorriem com sua boca vermelha e sua pele vibra em uníssono me atraindo pra si. Nossos corações batem juntos, supersônicos.
O Rei sequer pressente a apoteose. Mantém-se como um Rei, impassível, confiante.
Minhas mãos se livram da armadilha das coxas e se lançam sôfregas numa guerra contra as vestes, guardiãs da sua castidade real. Nossos corpos convulsionados tremem e até a curta saia jeans parece intransponível. Os bicos dos seios, rígidos, ferem e queimam minha pele, meu rosto, minha boca. Minha ânsia não espera mais o zíper que emperra e das minhas entranhas eclode o grito primal.
Brindo silenciosamente: xeque-mate.
(Publicado na coletânea O Amor que move o Sol e outras Estrelas, Scortecci-Rebra, 2005)
Não fosse o Rei (e todos esses olhares) a protegê-la da minha cobiça, já teria conquistado todos os recônditos do seu corpo. Ela me convida. Brinco com os seus lábios que se abrem devagar e deixam seus dentes afiados morderem a ponta dos meus dedos. Seguro-me forte para não me deixar levar pelos seus olhos enfeitiçados e sedentos. Mas a boca vermelha na minha pele devolve-me ao meu corpo e acorda instintos ancestrais: quero devorá-la toda.
Mas paro. Preciso começar de novo, nem que dure tudo e séculos e mais. Preciso não ceder à tentação imediata de seios que pulsam de desejo, que rogam pela minha boca, pelas minhas mãos e num descuido me carregam céleres pros quintos dos infernos. Quero ir onde quer que a nossa ânsia nos leve, mas homeopaticamente. Sem que eu perca do seu corpo nenhum espaço e deste encontro nenhum instante.
O Rei não desconfia que existo, não pressente o perigo.
Começamos tudo outra vez. Pelos pés, agora. Descalço-lhe a sandália de tirinhas pretas de couro e sinto-me como um pirata diante do seu tesouro: cada uma das pedras preciosas provoca prazer diverso e todas são fundamentais. Agora são os seus dedos que estão entre os meus dentes e este desejo de lambê-los devagarzinho, gostoso; depois ir mordendo cada vez mais forte até devorá-los. Daqui ela parece imensa, mas minhas mãos empreendem a caminhada pelas longas pernas, subindo ávidas pelas coxas. Ela se encolhe de prazer e suas coxas prendem minhas mãos, impedindo-as de ir além. Seus olhos sorriem com sua boca vermelha e sua pele vibra em uníssono me atraindo pra si. Nossos corações batem juntos, supersônicos.
O Rei sequer pressente a apoteose. Mantém-se como um Rei, impassível, confiante.
Minhas mãos se livram da armadilha das coxas e se lançam sôfregas numa guerra contra as vestes, guardiãs da sua castidade real. Nossos corpos convulsionados tremem e até a curta saia jeans parece intransponível. Os bicos dos seios, rígidos, ferem e queimam minha pele, meu rosto, minha boca. Minha ânsia não espera mais o zíper que emperra e das minhas entranhas eclode o grito primal.
Brindo silenciosamente: xeque-mate.
(Publicado na coletânea O Amor que move o Sol e outras Estrelas, Scortecci-Rebra, 2005)
quinta-feira, 17 de julho de 2008
Os vários mundos no meu mundo...
domingo, 13 de julho de 2008
A Solidão do Blog
Poucos dias depois que criei este blog já estava em crise sobre a minha vocação de blogueira. Primeiro: levei anos para me decidir a criá-lo. Passei mais um tempão atrás de alguém que me ensinasse ou fizesse por mim. Esses medos de tecnologia simples, facilmente desvendável, que os filhos dominam num piscar de olhos antes mesmo de nascerem. Acabei fazendo sozinha, seguindo as instruções de uma amiga. Segundo: o que eu quero com um blog? Nem tive tempo de sonhar com blog. Sonhei com outras coisas: em ter uma coluna semanal em algum diário local ou regional, mas nunca me empenhei nisto seriamente. O máximo que fiz foi escrever ocasionalmente artigos breves, de opinião, para o jornal O Povo, daqui de Fortaleza. Só ocasionalmente escrevi alguns mais longos, mais sociológicos, sobre os temas que estudo. Mas um dia vi a página do Rubem Alves na internet e fiquei pensando em fazer alguma coisa parecida. Queria então “um lugar meu” na internet para escrever crônicas ocasionais e para divulgar mais amplamente os artigos que geralmente publico em revistas especializadas. Queria, portanto, uma webpage e não um blog. A primeira tem uma dinâmica e uma simultaneidade que o segundo não tem. De experiência com blog tinha apenas a der ler o quixotesemrumo, do Lucas (http://quixotesemrumo.wordpress.com/). E outras passagens ocasionais e superficiais num blog ou noutro que me indicavam. Por outro lado, sempre me senti avessa à idéia de usar o blog como um diário de intimidades. Para mim, diário é diário e precisa ser “secreto” para se escrever como diário. Os blogs que revelam intimidades em geral reveladas apenas para os velhos diários são outra coisa, ou seja, são uma nova categoria de escrito. Seja lá o que for, não era isso que eu queria ou precisava. Terceiro: o que eu esperava de um blog? Eu imaginava um espaço de diálogo, mais dinâmico do que o jornal. Ou semelhante. Sempre recebi feedbacks dos artigos que publiquei em jornal. E também tinha a experiência de compartilhar minhas “etnografias de viagens” que provocavam respostas que muitas vezes rendiam muitos emails, muita conversa. Enfim criei o blog e avisei pros meus amigos, aqueles para quem em geral enviava minhas “etnografias de viagens” e pedi para eles comentarem os artigos que lessem. Ao invés de comentarem no blog, abaixo do artigo, comentaram via email. Pouquíssimos comentaram no blog e apenas um ou outro desconhecido encontrou o blog por acaso (?) e comentou. Tentei responder a alguns comentários mais instigantes, mais inspiradores e cliquei sobre o nome do comentador, mas aquele clique não me levava a lugar nenhum. Resolvi me consultar com o Lucas, único blogueiro das proximidades. E ele disse que era assim mesmo: não se responde aos comentários. Quer dizer, responde-se escrevendo mais, fazendo novas postagens. Fiquei meio perdida, meio sem saber o que fazer. Aí deu uma sensação enorme de solidão. Eu, num blog, falando pra ninguém? Email e orkut ou facebook são mais animados: eu escrevo, o outro responde, ou não responde. Mas sempre sei quem respondeu e quem não respondeu. Lá eu não sei quem viu, quem não viu... Aí? Fico eu escrevendo sem saber para quem? Como um soldado da rainha, devo ignorar quem me olha, quem me conta, quem me quer? Como se tudo isso fosse pouco, ainda esse nome horroroso: blogueira? Sei não...
terça-feira, 17 de junho de 2008
De brasileiros a latinos?!?
(publicado originalmente no jornal O Povo, em 30 de julho de 2005)
Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente. Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''. Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque era também latina? Não entendi imediatamente o que estava em jogo com a sua questão. Um ano depois, quando iniciei minha pesquisa de campo sobre brasileiros imigrantes em Los Angeles, ouvi de Telma, primeira entrevistada, a seguinte explicação: ''Após todos esses anos aqui, acabei aprendendo a ver as pessoas como os americanos: defino rapidamente o que elas são, a raça. Fico até meio envergonhada de dizer isto - e até nem acho que sou racista - mas não gosto quando as pessoas falam comigo em espanhol porque não quero que pensem que sou mexicana, ou da Guatemala, porque essas são raças que os americanos denigrem... Elas são... Como é que eu posso explicar? Os latinos são como uma classe inferior para os americanos''. As observações de Telma sobre a sua integração em Los Angeles levaram-me a também pensar sobre a minha. Eu jamais havia me sentido constrangida a esconder a minha latino-americanidade. Mas também não havia parado para pensar mais profundamente sobre o assunto: tinha certa consciência do racismo e colonialismo estruturando a vida e criando hierarquias de classe, cor, gênero e nação no mundo inteiro, mas, como estudante de pós-graduação, sentia-me beneficiada por ser da América Latina, especialmente no sentido da camaradagem com estudantes e professores oriundos ou interessados na região. Mas Telma nem estava usando a palavra ''latino'' como abreviação de latino-americano, como entendi a princípio, e nem no sentido mais comum no Brasil, de acordo com o qual latino inclui tudo que alude às conseqüências do imperialismo romano e refere-se tanto à América Latina como aos seus colonizadores europeus. Ela estava, ao contrário, evocando outro significado, o de posição social, racismo e discriminação. Por outro lado, ela não incluiu todas as nacionalidades latino-americanas na categoria latino. Especificou mexicanos e guatemaltecos como os latinos de quem ela queria se distinguir e explicou por que: Eles são como uma classe inferior para os americanos. Ora, eu também tinha colegas mexicanos na Universidade e não os relacionava com classe inferior. Por que, então, isto acontecia tão automaticamente na experiência dela? Quarenta e seis anos, morena escura, Telma imigrou para Los Angeles em 1975 e sempre trabalhou em empregos domésticos. Mas além de um emprego típico de imigrantes latinos, ela é fisicamente mais próxima do estereótipo do camponês mexicano do que do americano branco ou negro. Assim, quando ela afirma que os latinos são considerados uma classe inferior pelos americanos, ela está claramente afirmando que, na sua integração em Los Angeles, ser classificada como latina serve apenas para reforçar as desvantagens da sua posição social. Noutras palavras, ela está encarcerada na conotação negativa do rótulo: imigrantes pobres, trabalho desqualificado e status inferior. No meu caso, acho que o rótulo evoca o pertencimento geográfico primeiro, ou seja, quando afirmo que sou brasileira, os estadunidenses não me conectam imediatamente a um destino social nos Estados Unidos. Sou cidadã do Terceiro Mundo, o que, em termos gerais, também não é grande coisa, mas não sou latina em função da aparência e lugar no mercado de trabalho. É claro que por trás dos dois sentidos paira a crença colonialista e racista da superioridade dos Estados Unidos sobre os outros países e, conseqüentemente, do homem branco sobre outras expressões de humanidade. E, no final das contas, da perspectiva da geografia neo-colonial, o estereótipo de latino está irremediavelmente ligado à posição e status da América Latina na divisão internacional de trabalho. É exatamente esse status que é transferido aos imigrantes e que permitiu ao meu amigo me questionar sobre como eu estava experimentando a vida como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Do ponto de vista do colonizador, portanto, pouco importa a nacionalidade de cada ''latino''. Brasileiro, argentino, chileno, mexicano e dominicano são todos iguais. O problema, porém, é que a utilização dos critérios da aparência e lugar no mercado de trabalho na hierarquização social não é uma exclusividade da sociedade estadunidense. Ao contrário, esses critérios funcionam com a mesma eficácia em todas as sociedades atingidas pela expansão ocidental. E aqui, ao invés de buscar exemplos longínquos, aproveito para iluminar um pouco a nossa própria realidade: a discriminação contra o nordestino no Sul e Sudeste ou contra o sertanejo nas cidades litorâneas são expressões do mesmo racismo que é tão facilmente observável nos Estados Unidos contra os latinos. Em todos esses casos, como propõem Castles & Kosack (Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe. London: Oxford University Press 1973), a discriminação racista contra o imigrante deve ser interpretada como uma conseqüência da função que ele geralmente ocupa na estrutura social e não o contrário. Assim, cor e etnia não podem ser fatores determinantes da posição social do imigrante porque esta já é definida a priori, uma vez que a imigração é motivada para suprir demandas específicas de trabalho. Ou seja, a discriminação generalizada contra os imigrantes é comparável àquela contra as classes trabalhadoras e funciona como mais um elemento na hierarquia da exploração do trabalho. Porém, uma vez que o estereótipo é construído tendo como base certo grupo étnico ou racial, todos os indivíduos identificados com ele serão tratados semelhantemente, com exceção daqueles que possuem atributos que lhes permitem ''provar'' que são exemplares distintos do conjunto. Exemplo, os latinos cuja aparência permite vinculá-los a outros grupos raciais ou étnicos podem se utilizar deste atributo para negociar a sua ''latinidade'' em outras bases, ou mesmo passar por branco, negro ou o que for possível. Por outro lado, embora com uma aparência que os vincule ao estereótipo, os latinos pertencentes às elites também conseguem negociar a sua identidade mais favoravelmente. Moral da história: os povos, as regiões, as raças e os países são mais ou menos valorizados em função da distância em que se situam em relação aos modelos propostos pelos centros de poder. Desse modo, seja como latino, nos Estados Unidos, ou nordestino, em São Paulo, a vida é sempre mais fácil para os que têm pele mais clara e mais dinheiro. Bernadete Beserra é Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Califórnia, professora da Universidade Federal do Ceará.
Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente. Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''. Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque era também latina? Não entendi imediatamente o que estava em jogo com a sua questão. Um ano depois, quando iniciei minha pesquisa de campo sobre brasileiros imigrantes em Los Angeles, ouvi de Telma, primeira entrevistada, a seguinte explicação: ''Após todos esses anos aqui, acabei aprendendo a ver as pessoas como os americanos: defino rapidamente o que elas são, a raça. Fico até meio envergonhada de dizer isto - e até nem acho que sou racista - mas não gosto quando as pessoas falam comigo em espanhol porque não quero que pensem que sou mexicana, ou da Guatemala, porque essas são raças que os americanos denigrem... Elas são... Como é que eu posso explicar? Os latinos são como uma classe inferior para os americanos''. As observações de Telma sobre a sua integração em Los Angeles levaram-me a também pensar sobre a minha. Eu jamais havia me sentido constrangida a esconder a minha latino-americanidade. Mas também não havia parado para pensar mais profundamente sobre o assunto: tinha certa consciência do racismo e colonialismo estruturando a vida e criando hierarquias de classe, cor, gênero e nação no mundo inteiro, mas, como estudante de pós-graduação, sentia-me beneficiada por ser da América Latina, especialmente no sentido da camaradagem com estudantes e professores oriundos ou interessados na região. Mas Telma nem estava usando a palavra ''latino'' como abreviação de latino-americano, como entendi a princípio, e nem no sentido mais comum no Brasil, de acordo com o qual latino inclui tudo que alude às conseqüências do imperialismo romano e refere-se tanto à América Latina como aos seus colonizadores europeus. Ela estava, ao contrário, evocando outro significado, o de posição social, racismo e discriminação. Por outro lado, ela não incluiu todas as nacionalidades latino-americanas na categoria latino. Especificou mexicanos e guatemaltecos como os latinos de quem ela queria se distinguir e explicou por que: Eles são como uma classe inferior para os americanos. Ora, eu também tinha colegas mexicanos na Universidade e não os relacionava com classe inferior. Por que, então, isto acontecia tão automaticamente na experiência dela? Quarenta e seis anos, morena escura, Telma imigrou para Los Angeles em 1975 e sempre trabalhou em empregos domésticos. Mas além de um emprego típico de imigrantes latinos, ela é fisicamente mais próxima do estereótipo do camponês mexicano do que do americano branco ou negro. Assim, quando ela afirma que os latinos são considerados uma classe inferior pelos americanos, ela está claramente afirmando que, na sua integração em Los Angeles, ser classificada como latina serve apenas para reforçar as desvantagens da sua posição social. Noutras palavras, ela está encarcerada na conotação negativa do rótulo: imigrantes pobres, trabalho desqualificado e status inferior. No meu caso, acho que o rótulo evoca o pertencimento geográfico primeiro, ou seja, quando afirmo que sou brasileira, os estadunidenses não me conectam imediatamente a um destino social nos Estados Unidos. Sou cidadã do Terceiro Mundo, o que, em termos gerais, também não é grande coisa, mas não sou latina em função da aparência e lugar no mercado de trabalho. É claro que por trás dos dois sentidos paira a crença colonialista e racista da superioridade dos Estados Unidos sobre os outros países e, conseqüentemente, do homem branco sobre outras expressões de humanidade. E, no final das contas, da perspectiva da geografia neo-colonial, o estereótipo de latino está irremediavelmente ligado à posição e status da América Latina na divisão internacional de trabalho. É exatamente esse status que é transferido aos imigrantes e que permitiu ao meu amigo me questionar sobre como eu estava experimentando a vida como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Do ponto de vista do colonizador, portanto, pouco importa a nacionalidade de cada ''latino''. Brasileiro, argentino, chileno, mexicano e dominicano são todos iguais. O problema, porém, é que a utilização dos critérios da aparência e lugar no mercado de trabalho na hierarquização social não é uma exclusividade da sociedade estadunidense. Ao contrário, esses critérios funcionam com a mesma eficácia em todas as sociedades atingidas pela expansão ocidental. E aqui, ao invés de buscar exemplos longínquos, aproveito para iluminar um pouco a nossa própria realidade: a discriminação contra o nordestino no Sul e Sudeste ou contra o sertanejo nas cidades litorâneas são expressões do mesmo racismo que é tão facilmente observável nos Estados Unidos contra os latinos. Em todos esses casos, como propõem Castles & Kosack (Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe. London: Oxford University Press 1973), a discriminação racista contra o imigrante deve ser interpretada como uma conseqüência da função que ele geralmente ocupa na estrutura social e não o contrário. Assim, cor e etnia não podem ser fatores determinantes da posição social do imigrante porque esta já é definida a priori, uma vez que a imigração é motivada para suprir demandas específicas de trabalho. Ou seja, a discriminação generalizada contra os imigrantes é comparável àquela contra as classes trabalhadoras e funciona como mais um elemento na hierarquia da exploração do trabalho. Porém, uma vez que o estereótipo é construído tendo como base certo grupo étnico ou racial, todos os indivíduos identificados com ele serão tratados semelhantemente, com exceção daqueles que possuem atributos que lhes permitem ''provar'' que são exemplares distintos do conjunto. Exemplo, os latinos cuja aparência permite vinculá-los a outros grupos raciais ou étnicos podem se utilizar deste atributo para negociar a sua ''latinidade'' em outras bases, ou mesmo passar por branco, negro ou o que for possível. Por outro lado, embora com uma aparência que os vincule ao estereótipo, os latinos pertencentes às elites também conseguem negociar a sua identidade mais favoravelmente. Moral da história: os povos, as regiões, as raças e os países são mais ou menos valorizados em função da distância em que se situam em relação aos modelos propostos pelos centros de poder. Desse modo, seja como latino, nos Estados Unidos, ou nordestino, em São Paulo, a vida é sempre mais fácil para os que têm pele mais clara e mais dinheiro. Bernadete Beserra é Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Califórnia, professora da Universidade Federal do Ceará.
Nova Orleans: glamour atingido
(publicado originalmente no jornal O Povo, em 18 de setembro de 2005. Republicado no Cronópios, em 24 de setembro de 2005 http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=591)
Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente dar atenção à conversa: por que alimentaria pensamentos sobre destruição e morte se era início da primavera e tudo era sol, flores e alegria? Adorei Nova Orleans e senti-me em casa de um jeito que jamais me sentira em Los Angeles, Chicago ou Nova York. Nem em Miami, que é considerada mais latina do que americana, senti-me tão à vontade. Confirmei com os meus sentidos a hipótese de García Márquez de que a agroindústria açucareira, com os seus escravos e grandes propriedades, produziu uma cultura muito semelhante em três regiões da América: o nordeste do Brasil, Caribe e sul dos Estados Unidos. De fato, Salvador, São Domingos (República Dominicana) e Nova Orleans me pareceram semelhantes até no lixo e na mendicância. Lá até o inglês tem mais ginga: é mais macio e sedutor do que o falado em Nova York e Los Angeles. Mas Nova Orleans é mesmo uma cidade americana muito especial. Fundada em 1718, por um canadense de origem francesa, somente em 1803, depois de ter sido colônia da França, Espanha e, depois, França outra vez, foi comprada pelos Estados Unidos. O glamour que atrai a Nova Orleans cerca de 10 milhões de turistas anualmente é fruto dessa história distinta. O carnaval (que lá se chama Mardis Gras), o jazz, os negros (que representam 67% da população), a comida e a música cajun, a alegria, a simpatia e o calor dos seus habitantes fazem de Nova Orleans uma cidade que pouca semelhança tem com a frieza através da qual nos acostumamos a ver os Estados Unidos e os americanos. Nos meus cinco dias de visita, não vi muito além do que vêem os turistas: fiquei hospedada nas imediações do French Quarter (quarteirão francês) e, para além dos seus limites, contemplei apenas o que havia no percurso do bondinho que me levava até a Tulane University. Ali, nas imediações do Audubon Park, erguem-se as mansões burguesas: elegantes, tristes e silenciosas. O oposto do barulho, alegria, sujeira e permissividade da Bourbon Street. Gostei de tudo, mas fiquei muito intrigada com a mendicância e o lixo. Acho que mais pessoas me pediram esmola nas imediações do French Quarter, do que geralmente pedem aqui, na Beira-Mar. Ou talvez lá eu tenha ficado mais atenta para isto porque era um fato inusitado na minha experiência de Estados Unidos.
Se Nova Orleans não fosse tão peculiar talvez se aplicasse o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal, não são apenas os desabrigados do furacão Katrina que vivem a agonia das suas conseqüências. O governo Bush e a democracia americana também. Assim, para além dos prejuízos materiais e emocionais de mais de um milhão de pessoas, o desastre de Nova Orleans representa o colapso de uma idéia de Estados Unidos enraizada no mundo inteiro: o país mais poderoso do planeta nem é tão branco e nem tão democrático quanto nos fez crer. Pelo menos foram essas as duas questões em que insistiam alunos e colegas com quem conversei sobre o assunto nos últimos dias: ''mas professora, eu não sabia que havia pessoas tão pobres nos Estados Unidos, pensei que fosse mais igual... sei lá, pela pobreza e pela cor das pessoas nas reportagens, o cenário da tragédia parecia mais africano do que americano''. Mas os alunos e colegas daqui, que nunca foram aos Estados Unidos, não eram os únicos a se surpreender com a caixa de Pandora em que o Katrina havia transformado Nova Orleans. Jornais e revistas do mundo inteiro, e também dos Estados Unidos, comentavam as mesmas coisas. O sentimento geral era de que a nudez do rei havia finalmente sido revelada. Assim, o primeiro mito que a catástrofe destruiu é o de que americano é igual a branco, anglo-saxão e protestante: em Nova Orleans, Atlanta e outras cidades do sul dos Estados Unidos são os negros que preponderam, assim como em Miami e em várias cidades do Texas e da Califórnia são os chamados latinos (= cubanos, mexicanos, porto-riquenhos, colombianos, brasileiros, etc). Mas preponderam apenas do ponto de vista numérico, uma vez que depois de mais de dois séculos de integração os negros continuam excluídos da idéia de americanidade. Mas se o racismo é uma variável fundamental na compreensão dos Estados Unidos, a outra, sempre posta de lado pela sociologia americana, é a exploração entre as classes sociais. Uma observação mais cuidadosa mostra que mais do que apenas negros, são os negros pobres as principais vítimas do desastre. Outro mito cai e os Estados Unidos se aproximam da África e da América Latina não apenas em função da origem étnica de significativos contingentes da sua população, mas também da miséria socioeconômica: o american way of life não é uma garantia para todos os cidadãos americanos. Então, que democracia é a que os Estados Unidos querem impor ao mundo inteiro e em nome da qual invadiram o Iraque e outras tantas nações ao longo da sua história? O fato é que as principais vítimas da catástrofe do Katrina haviam sido atingidas antes pela dinâmica da democracia americana. Quer dizer, não eram apenas vítimas da vontade de Deus, do racismo e da incompetência (propositada, alguns dizem) na organização da operação de resgate. As políticas econômicas dos últimos governos, especialmente do Governo Bush, têm permitido que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. No ano passado, pela quarta vez consecutiva e apesar do crescimento econômico de 3,8%, o índice de pobreza nos Estados Unidos subiu para 12,7%, o que significa que havia 37 milhões de americanos vivendo abaixo da linha de pobreza. Mas a pobreza lá, como aqui, não é igualmente dividida entre as regiões, raças e etnias. O sul, particularmente os estados de Alabama, Louisiana e Mississippi, tinham as rendas médias mais baixas e, entre os grupos étnicos e raciais, eram os negros os mais pobres. Apesar disso, Bush se esforça para aumentar os cortes de impostos de ganhos de capital e convencer os americanos da importância da privatização da previdência social e da manutenção do salário mínimo em 5,15 dólares a hora, apesar da inflação anual média de 3% desde o período em que este valor foi estabelecido, em 1997. Para além do aprendizado específico sobre a sociedade americana, a tragédia de Nova Orleans demonstra que se há qualquer conteúdo democrático nas políticas capitalistas neoliberais é o de que elas não poupam sequer o seu mais importante porta voz e porto seguro, os Estados Unidos. Atingem todas as nações, raças e etnias e criam miséria e distância social tanto nas periferias quantos nos centros de poder, mas não indistintamente. Seletivas e hierárquicas justificam a acusação de racista e classista que o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, e outras lideranças negras fizeram contra o governo Bush. Assim, tão grave e dramático quanto os ataques de 11 de setembro de 2001, o choque provocado pelo Katrina atinge a sociedade americana de forma completamente diferente. Enquanto a intimidação do inimigo externo solidificava a idéia de nação e justificava a promoção da guerra contra os que a ameaçam, o Katrina revela exatamente o oposto, isto é, que a nação americana está cada dia mais ameaçada, mas não por Osama bin Laden ou Saddam Hussein: pela extrema concentração de renda e tratamento desigual dos seus cidadãos. Para os americanos vítimas das políticas neoliberais, fica cada dia mais evidente que o inimigo não está do outro lado do mundo, nem mesmo do outro lado da fronteira, mas ali, do lado, na Casa Branca.
BERNADETE BESERRA é professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Observatório das Nacionalidades
Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente dar atenção à conversa: por que alimentaria pensamentos sobre destruição e morte se era início da primavera e tudo era sol, flores e alegria? Adorei Nova Orleans e senti-me em casa de um jeito que jamais me sentira em Los Angeles, Chicago ou Nova York. Nem em Miami, que é considerada mais latina do que americana, senti-me tão à vontade. Confirmei com os meus sentidos a hipótese de García Márquez de que a agroindústria açucareira, com os seus escravos e grandes propriedades, produziu uma cultura muito semelhante em três regiões da América: o nordeste do Brasil, Caribe e sul dos Estados Unidos. De fato, Salvador, São Domingos (República Dominicana) e Nova Orleans me pareceram semelhantes até no lixo e na mendicância. Lá até o inglês tem mais ginga: é mais macio e sedutor do que o falado em Nova York e Los Angeles. Mas Nova Orleans é mesmo uma cidade americana muito especial. Fundada em 1718, por um canadense de origem francesa, somente em 1803, depois de ter sido colônia da França, Espanha e, depois, França outra vez, foi comprada pelos Estados Unidos. O glamour que atrai a Nova Orleans cerca de 10 milhões de turistas anualmente é fruto dessa história distinta. O carnaval (que lá se chama Mardis Gras), o jazz, os negros (que representam 67% da população), a comida e a música cajun, a alegria, a simpatia e o calor dos seus habitantes fazem de Nova Orleans uma cidade que pouca semelhança tem com a frieza através da qual nos acostumamos a ver os Estados Unidos e os americanos. Nos meus cinco dias de visita, não vi muito além do que vêem os turistas: fiquei hospedada nas imediações do French Quarter (quarteirão francês) e, para além dos seus limites, contemplei apenas o que havia no percurso do bondinho que me levava até a Tulane University. Ali, nas imediações do Audubon Park, erguem-se as mansões burguesas: elegantes, tristes e silenciosas. O oposto do barulho, alegria, sujeira e permissividade da Bourbon Street. Gostei de tudo, mas fiquei muito intrigada com a mendicância e o lixo. Acho que mais pessoas me pediram esmola nas imediações do French Quarter, do que geralmente pedem aqui, na Beira-Mar. Ou talvez lá eu tenha ficado mais atenta para isto porque era um fato inusitado na minha experiência de Estados Unidos.
Se Nova Orleans não fosse tão peculiar talvez se aplicasse o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal, não são apenas os desabrigados do furacão Katrina que vivem a agonia das suas conseqüências. O governo Bush e a democracia americana também. Assim, para além dos prejuízos materiais e emocionais de mais de um milhão de pessoas, o desastre de Nova Orleans representa o colapso de uma idéia de Estados Unidos enraizada no mundo inteiro: o país mais poderoso do planeta nem é tão branco e nem tão democrático quanto nos fez crer. Pelo menos foram essas as duas questões em que insistiam alunos e colegas com quem conversei sobre o assunto nos últimos dias: ''mas professora, eu não sabia que havia pessoas tão pobres nos Estados Unidos, pensei que fosse mais igual... sei lá, pela pobreza e pela cor das pessoas nas reportagens, o cenário da tragédia parecia mais africano do que americano''. Mas os alunos e colegas daqui, que nunca foram aos Estados Unidos, não eram os únicos a se surpreender com a caixa de Pandora em que o Katrina havia transformado Nova Orleans. Jornais e revistas do mundo inteiro, e também dos Estados Unidos, comentavam as mesmas coisas. O sentimento geral era de que a nudez do rei havia finalmente sido revelada. Assim, o primeiro mito que a catástrofe destruiu é o de que americano é igual a branco, anglo-saxão e protestante: em Nova Orleans, Atlanta e outras cidades do sul dos Estados Unidos são os negros que preponderam, assim como em Miami e em várias cidades do Texas e da Califórnia são os chamados latinos (= cubanos, mexicanos, porto-riquenhos, colombianos, brasileiros, etc). Mas preponderam apenas do ponto de vista numérico, uma vez que depois de mais de dois séculos de integração os negros continuam excluídos da idéia de americanidade. Mas se o racismo é uma variável fundamental na compreensão dos Estados Unidos, a outra, sempre posta de lado pela sociologia americana, é a exploração entre as classes sociais. Uma observação mais cuidadosa mostra que mais do que apenas negros, são os negros pobres as principais vítimas do desastre. Outro mito cai e os Estados Unidos se aproximam da África e da América Latina não apenas em função da origem étnica de significativos contingentes da sua população, mas também da miséria socioeconômica: o american way of life não é uma garantia para todos os cidadãos americanos. Então, que democracia é a que os Estados Unidos querem impor ao mundo inteiro e em nome da qual invadiram o Iraque e outras tantas nações ao longo da sua história? O fato é que as principais vítimas da catástrofe do Katrina haviam sido atingidas antes pela dinâmica da democracia americana. Quer dizer, não eram apenas vítimas da vontade de Deus, do racismo e da incompetência (propositada, alguns dizem) na organização da operação de resgate. As políticas econômicas dos últimos governos, especialmente do Governo Bush, têm permitido que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. No ano passado, pela quarta vez consecutiva e apesar do crescimento econômico de 3,8%, o índice de pobreza nos Estados Unidos subiu para 12,7%, o que significa que havia 37 milhões de americanos vivendo abaixo da linha de pobreza. Mas a pobreza lá, como aqui, não é igualmente dividida entre as regiões, raças e etnias. O sul, particularmente os estados de Alabama, Louisiana e Mississippi, tinham as rendas médias mais baixas e, entre os grupos étnicos e raciais, eram os negros os mais pobres. Apesar disso, Bush se esforça para aumentar os cortes de impostos de ganhos de capital e convencer os americanos da importância da privatização da previdência social e da manutenção do salário mínimo em 5,15 dólares a hora, apesar da inflação anual média de 3% desde o período em que este valor foi estabelecido, em 1997. Para além do aprendizado específico sobre a sociedade americana, a tragédia de Nova Orleans demonstra que se há qualquer conteúdo democrático nas políticas capitalistas neoliberais é o de que elas não poupam sequer o seu mais importante porta voz e porto seguro, os Estados Unidos. Atingem todas as nações, raças e etnias e criam miséria e distância social tanto nas periferias quantos nos centros de poder, mas não indistintamente. Seletivas e hierárquicas justificam a acusação de racista e classista que o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, e outras lideranças negras fizeram contra o governo Bush. Assim, tão grave e dramático quanto os ataques de 11 de setembro de 2001, o choque provocado pelo Katrina atinge a sociedade americana de forma completamente diferente. Enquanto a intimidação do inimigo externo solidificava a idéia de nação e justificava a promoção da guerra contra os que a ameaçam, o Katrina revela exatamente o oposto, isto é, que a nação americana está cada dia mais ameaçada, mas não por Osama bin Laden ou Saddam Hussein: pela extrema concentração de renda e tratamento desigual dos seus cidadãos. Para os americanos vítimas das políticas neoliberais, fica cada dia mais evidente que o inimigo não está do outro lado do mundo, nem mesmo do outro lado da fronteira, mas ali, do lado, na Casa Branca.
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