quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Um outro eu... Mas qual?


Eu o reconheci desde a primeira sentença como se fosse aquela parte de mim que me aceita... O outro que me observa com a compaixão com que somente eu sou capaz de me observar... Um milagre quase. Percebe certa sofisticação na minha simplicidade... Será que ele também desconfia dela? Quero dizer, da simplicidade? Se é espontânea... ou fabricada? Afinal, não é meio paradoxal uma simplicidade sofisticada? Não creio que ele sugira que haja muito mais do que o que aparece, embora ele, como eu, sabe bem que o que aparece é apenas a ponta do iceberg. Há mais: tanto, tanto, tanto...

Mas sendo o que aparece a ponta do iceberg, pelo amor de deus: é real! É confiável! É seguro... Ou não? De um jeito ou do outro: quem tem coragem de mergulhar? De desafiar a fantasia do que se enxerga na superfície?

Adriana, minha querida amiga argentina, que me ensina sempre tanto sobre tudo no mundo, e que eu amo demais e de quem me custa muito me despedir, comentou um pouco sobre isto hoje... Meio por acaso... A propósito de que, meu Deus? Não importa. Estávamos no Jammin Bread, uma lanchonete meio chique, meio vegetariana, lá, no Towne Center, onde também fica o Coffee Roasters, na área “universitária” de Riverside, morrendo de fome e comendo um sanduíche vegetariano acompanhado de chá do paraíso, um chá meio genérico com um leve toque de jasmin que servem com um monte de gelo: paradise iced tea. Ela dizia exatamente isto: a sua simplicidade é tomada por um incauto apenas como simplicidade...

E é o que você enxerga sem ser eu, sem ser Adriana, sem me conhecer... Ou me conhece? Além daqui, das Sumehrianas? O fato é que raríssimas pessoas percebem isto. Raríssimas pessoas percebem de mim o que quero que percebam. E, pra falar a verdade, prefiro assim. Embora aqui e ali sim: o Brito, o meu ex-cunhado, me sacaneava um pouco com essa história da minha simplicidade: “Berna, tu é muito simples... tu já pensou uma mulher como tu, com tanta coisa importante pra fazer, aqui, tão simples, conversando com a gente?” Uma tonelada de ironia no discurso do Brito, mas bastante sensibilidade também.

Mas páro por aqui, não preciso me revelar mais. Aliás, acho que nestas crônicas me revelo pouquíssimo. Apesar disso, não há como fugir de mim: vou sempre aparecer um pouco ou muito em tudo que faço. E, sem dúvida, como você percebeu, o meu texto também revela a minha espontaneidade... Mas quanto revela da minha alma? Dos medos que demoro a revelar para mim mesma? Um truísmo, eu sei, mas aqui apenas me permito revelar o que se pode revelar num texto público, numa crônica. Com tom e estilo de diário, é verdade, mas mais uma armadilha para atrair o leitor do que um diário propriamente... Inclusive, como diz Canetti, diário é outra coisa, percorre outros caminhos.

Não sei, mas a sua aparição por aqui, justamente quando eu filosofava sobre a literatura e a solidão foi meio mágica, meio milagrosa... Muitíssimo benvinda. Infelizmente a maioria dos comentários recebo mesmo é pelo email: por uma razão ou outra, as pessoas não querem se expor. Os comentários, espaço do encontro do autor com o leitor, é o espaço mesmo do encontro das solidões, da realização da literatura. Sem comentário não tem blog... como não tem literatura sem leitor.

Me lembro agora do que me dizia Seu (Francisco) Carvalho sobre esse encontro... e somente agora tudo isso faz tanto sentido. Conheci-o através de Anchieta Barreto, colega meu, que o conhecia bem desdes os tempos em que fora reitor e Seu Carvalho secretário dos conselhos superiores da universidade. Anchieta me presenteou com A Barca dos Sentidos com que imediatamente me encantei. Vi que tinha um lugar pra mim naqueles versos... Uma solidãozinha que eu queria habitar... Pouco depois, como representante da faced no cepe, tive a satisfação de
conhecê-lo pessoalmente. E era um aprendizado e um encantamento que não tinha fim. Meio desumano porque não teve um dia que eu não gostasse de encontrá-lo; que eu não passasse a enxergar o mundo diferente depois de uma conversa com ele, que as coisas que ele me dizia não ficassem germinando dentro de mim. Foram poucos encontros: uns quatro ou cinco. Ele sempre me presenteava com algum dos seus livros. Um dia, não me lembro mais porque, ele disse que o mínimo que se espera do leitor é um comentário, um bilhete... O escritor precisa de feedback... Precisa saber o que provoca nos outros os seus escritos.

Fiquei me sentindo meio em dívida porque ele já havia lido pelo menos três livros seus e nunca tinha lhe enviado bilhete nenhum... E também me sentia meio tímida para comentar quando nos encontrávamos... Dizia coisas superficiais... Mas não lhe dava idéia da extensão do impacto dos seus versos no meu cotidiano...

Um dia, finalmente, no meio das milhares de coisas do doutorado, daqui, de Riverside, lhe enviei longa carta e, no final, o seguinte poema, inclusive inspirado pela sua Canção ao Pote:

A luz da poesia

ao poeta Francisco Carvalho
A luz da poesia atravessa escuridão, abismos, inocência.
Talvez não sacie a sede de justiça, de beleza, de paixão.
Mas deixa marcas do seu encantamento
nas retinas que lhe acariciam.
Ao invés de um banho de palavras,
a poesia é sopro de beleza e bússola de tragédia
transcende as barreiras da intenção e nos
premia com filhos da lua
e pulsações de desejo em almas de bronze
Apocalíptica constrói o túmulo
dos que não querem (ou não merecem) descansar em paz.
Camarada, traiçoeira, aproxima-me de mim
e ao mesmo tempo me reúne ao pó.
Tecedora de impossibilidades nos dá o que a história nos tira:
a possibilidade de ser todos os homens em todos os tempos, como cobiçava Whitman.
Ainda que transmutável em castelos, pântanos e fortalezas,
a poesia não quer ser porto de ninguém
mas ilumina como o farol de todos.

A você, Muad’Dib, não tenho um poema para oferecer ainda... mas ofereço essas divagações inacabadas de hoje, com gratidão. Good night.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

El Precio de la Ignorancia (Parte II)






(Foto 1. Venice Beach. Show do haitiano que anda sobre cacos de vidro. 11/08/2008. Foto 2. Raquel e Nichole em frente ao banheiro público da Venice Beach. Ver detalhe do "mosaico" na parede)
Coffee Roasters, Riverside, 9 de agosto de 2008
Escrevo a data e me lembro de Fábio: hoje completaria 45 anos. Tão esquisito essa idéia de não poder encontra-lo nunca mais... Ouvi-lo atender o telefone com o seu: “pronto?” Não sei o que está acontecendo comigo ultimamente, mas a verdade é que a morte já não me assusta tanto... Talvez o que eu queira mesmo dizer com isto é: a dor já não me assusta tanto. Ao mesmo tempo, sinto-me mais sensível do que nunca. Capaz de perceber mil vezes mais do que percebia quando adolescente. Sinto mais, percebo mais, porém, paradoxalmente, assusta-me menos a dor e a vida. Sinatra homenageia Fábio cantando Unforgettable.

Centenas de coisas aconteceram entre o início desta crônica e hoje, inclusive o adiamento da minha volta ao Brasil. Estou outra vez aqui, no Coffee Roasters, o meu porto seguro nesta passagem por Riverside.

Quero prosseguir contando sobre as entrevistas com os advogados em Los Angeles. Pegamos a 60W, que nos leva direto, em cerca de 60-80 minutos, ao centro de Los Angeles. A paisagem não é tão onírica quanto a da 57: o tráfego é mais pesado, tudo que se enxerga ao redor está mais ou menos envolvido por uma espessa nuvem de poluição... Não sei como se chama em português, aqui dizem smog. É isto: uma neblina meio marron-amarelada... Cor do deserto que é o sul da Califórnia. As montanhas aos poucos sendo ocupadas por casas com o crescimento sem controle da indústria imobiliária nas últimas décadas... A natureza certamente agradece a trégua produzida pela crise atual. Nick dirigiu. O tráfego fluiu bem até chegarmos próximo ao centro de Los Angeles e trocarmos a 60W pela 101N (a Hollywood freeway)... É sempre assim: muitas vezes gastamos mais tempo para dirigir 5 milhas na 101 do que 50 na 60. O encontro com Hector Ortega estava marcado para as 11. Chegamos ao seu endereço, 700 Wilshire Blvd, meia hora antes. É provavelmente uma das áreas mais caras do centro, o estacionamento é cobrado por minutos: cada 15 minutos custa em média 3 dólares. Mas há um limite máximo que se permite cobrar por dia: em torno de 20 dólares.

(...)
Riverside, 10 de agosto de 2008
11:20am
(Interrompi a narrativa acima porque me senti mal. Vim pra casa de Jeannie encontrar a Raquel e a Nichole que vieram pra ficar um pouco na piscina. Estou aqui desde ontem. Desde a sexta-feira sentia-me inexplicavelmente cansada, meio febril. Ontem, ainda no café, comecei a sentir a minha garganta doendo e com grande dificuldade de engolir. Vim pra cá e, desde às 3 da tarde de ontem, quando Raquel e Nichole foram embora, estou intermitentemente dormindo. Estou tomando vitamina C e equinácia para a inflamação da garganta. À noite Larissa, filha de Jeannie, voltou de San Diego e cuidou um pouco de mim: fez chá de hortelã e me deu uns remédios fortes para gripe. Nunca tomo nada disso, mas resolvi tomar porque queria mesmo dormir a noite inteira. Desde a hora que acordei estou lendo The Last Lecture (A última aula), de Randy Pausch, professor de Carnegie Mellon, que recentemente morreu de câncer e escreveu o livro quando soube que teria apenas três meses de vida. Tá a maior moda aqui e, embora eu não goste de moda, achei a história dele interessante. Continuo me sentindo cansada e sonolenta. Durmo um pouco, me acordo, leio um pouco, durmo outra vez. Acordo sentindo-me bem, mas minutos depois estou outra vez exausta. A febre e a dor de garganta felizmente já passaram).

Volto à terça-feira, Los Angeles. Meio surpresa, perguntei àquele rapaz que se apresentava se ele era o advogado. Respondeu sim e eu comentei que ele era muito jovem. Surpreendi-me com a sua segurança e tranquilidade. Conhecia bem o problema e conhecia também o juiz e os advogados do Serviço de Imigração. Fizemos-lhe todas as perguntas que já havíamos feito ao Steve. A grande diferença entre eles é que ele nos provava que era importante contratar um advogado sem nos assustar tanto, como fez Steve. Da perspectiva dele, tudo é resolvível. O que me incomodou na conversa com o Steve foi o fato de ele sempre considerar complicada a solução de tudo.

Preciso aqui mais uma vez repetir a história: Raquel, imediatamente após casar com Nick, cidadão americano, entrou com os papéis para mudar de visto. Preciso esclarecer que esta exigência não é um capricho dos Estados Unidos; é, digamos assim, uma exigência do mundo nacional/internacional. É também disso que as nações sobrevivem. De acordo com meus amigos “gringos” que moram no Brasil, aí chega a ser até pior. Enfim, Raquel tinha visto J-2, dependente de J-1 (um visto específico para intercâmbios acadêmicos e que obriga os seus portadores a voltar aos seus países de origem) e pedia o green card, que é uma identidade de residente. Embora não faça muito sentido, as restrições do meu visto também se aplicam aos meus dependentes. Assim como eu, se quissesse ficar, ela teria que pedir ao Serviço de Imigração a dispensa da obrigatoriedade de voltar. Ela não pediu e encaminhou os papéis para mudar de visto sem esse documento. Erro cometido pelo desconhecimento que ela e o escritório que a ajudou tinham da especificidade do seu caso. Nada absurdo porque todo dia todos nós esquecemos alguma coisa: de assinar o cheque, de travar a porta do carro, do prazo do imposto de renda, do aniversário do filho...

Claro que, como disse no início da parte 1 desta crônica, tanto a ignorância como a desatenção têm um preço. É este preço que agora estamos pagando. Caro ou barato, acho que não importa muito agora. E, como sugere o Sublime, melhor não ficar com raiva das contas que temos que pagar (I don’t get mad at the bills I have to pay).

Então, vambora: o Serviço de Imigração costuma devolver os processos incompletos. Inclusive, exatamente por isto e porque a taxa de ajuste de status subiria de trezentos e tantos dólares para mil e poucos, achamos conveniente pedir ajudar especializada. Nem o Serviço de Imigração devolveu o processo incompleto da Raquel, o que teria evitado toda essa confusão e nem o escritório que ela contratou era tão especializado assim...

Ignorância, desatenção de todas as partes e um pouco de má sorte também.
(...)

Venice Beach, 11 de agosto de 2008
13:30h.
Venice Beach é uma festa... Talvez a última evidência da Califórnia dos 1970, que inspirou Going to California e outros sonhos e viagens... Todas as minhas amigas daqui, em geral 10-12 anos mais velhas do que eu, viveram um pouco a Los Angeles dos 70: com LSD, maconha, sexo livre, revolução, tudo... Os velhos hippies perseveram e, como os que encontramos na Praia de Iracema, na Beira-Mar ou em Copacabana, estão lá, criando suas pulseiras e colares. Se não fosse pela temperatura da água do mar; a predominância do inglês; sóbrios, sólidos e grandes lixeiros de dez em dez metros; enorme banheiro público bem em frente a este café e a rua da frente da praia só para pedestres, eu me sentiria como se estivesse em Fortaleza. Ah, tem outras diferençazinhas: o que eles chamam Palm Trees (palmeiras) aqui parecem os nossos açaizeiros... O haitiano que faz o show do homem que anda sobre cacos de vidro exige pagamento adiantado diferente dos nossos palhaços, comediantes e curandeiros da Beira-Mar e Praia de Iracema.... Ah, e os mendigos são muito criativos: há um black-American sentado numa cadeira esperando clientes para aconselhar sobre sexo: Sex Counseling. Um outro dizendo que não quer cappucino, quer vino... E vai por aí... É engraçado que com todos os controles desta sociedade, haja espaço para essas doideiras... Quase todos os hippies têm os seus cartazinhos defendendo a legalização da maconha... Últimos remanescentes de uma cultura mais livre, mais lúdica, mais esperançosa... objetos de museu...

Raquel e Nichole foram até a praia. Quis ficar aqui pra ver se termino esta crônica interminável... Mil e uma noites... Que príncipe quero manter acordado? Que príncipe quero evitar que me degole antes do amanhecer? Agora sério: há história mais fascinante do que a de Sherezade? Não tanto a que ela conta, a dela própria, a da sua estratégia de sobrevivência ao sultão com complexo de corno.

Somente observar as pessoas entrando e saindo deste café/lanchonete já é uma grande diversão... Descrever é mais divertido ainda... Agora, por exemplo, as mesas do lado e da frente estão ocupadas por adolescentes com cara de midwesterners (povo do meio-oeste): Iowa, Ilinois, Wisconsin... Mais ou menos o fenótipo das ginastas que estão representando os Estados Unidos nas Olimpiadas. E aqui atrás tem outra família e um bebêzinho que o pai meio gordo tá enfiando batata frita e hamburguer na boca... Deve ter menos de dois anos, coitado...

Caminhamos uns cinco ou seis quarteirões do estacionamento público (7 dólares até as 18h) na direção de Sta Mônica e, só há uma mercadoria que compete com as tendas/lojinhas de artesanato: as casas de tatuagem. Raquel sugere que eu faça algumas tatuagens e piercings antes de voltar...

Estou sentada de frente pro mar, no interior do Café Venícia... As paredes são de vidro... e enxergo lá longe, depois dos coqueiros, gramados e areia, uma nesguinha de mar... A coleção de fotos na parede do fundo dizem que o proprietário deve ser democrata: o sorriso largo do gostoso do Clinton estampado nas cinco fotos ladeadas por outras de cappuccinos e sanduíches.

A cada instante entra mais gente aqui.. E ei! O carro de bombeiros acabou de entrar na rua que era antes apenas de pedestres... Algum incêndio, provalmente... Eita! Mais outro! Parece que é sério. Mas ninguém presta atenção ou vai atrás pra ver o que tá acontecendo... Eita diferença de Sumé...

Quero voltar para o centro de Los Angeles, quase uma semana atrás: 700 Wilshire Blvd. Escritório do Hector Ortega. Nunca vi advogado tão tranquilo. Como na entrevista com Steve, Raquel conta a sua história. Já havíamos perguntado ao Steve o que aconteceria se ela e Nick decidissem deixar tudo e imediatamente voltar pro Brasil. Mesmo que seja isto o que eles queiram, é preciso esperar até a próxima audiência: 22 de janeiro. Lá, de acordo com a lei da imigração, ela já estará vivendo ilegalmente aqui por mais de um ano. Se sair, ou se for deportada, terá que passar dez anos até novamente poder pedir um visto nos consulados americanos. Mas Hector nos tranquiliza: podemos revogar isto (we can waive that). Absolutamente nada parece irremediável para ele. Diferentemente de Steve, nos disse que, caso o Nick não arrange emprego até o período de Raquel novamente poder pedir o ajuste de status, os pais deles podem entrar como patrocinadores (sponsors). Com a crise atual já não se consegue empregos com a rapidez de antes... É preciso as vezes mudar de profissão, adequar-se às novas demandas do mercado... quais? Tudo difícil: Maria e Jeannie insistem que nunca viveram crise tão profunda... O preço da gasolina está caindo um pouco... Ao invés de 4,70 dólares por galão, agora está em torno de 4 dólares, em alguns postos até um pouquinho menos.

Sim, Hector, quanto custa para defender a Raquel? “Aqui cobramos um preço fixo por cada tipo de serviço. No caso de Raquel seria 3.500 até a decisão final do juiz. Incluindo o preenchimentos de todos os formulários e a elaboração de petições e tudo o mais que seja necessário à sua defesa e obtenção de documentos necessários para a obtenção do green card.” E a forma de pagamento? “700 na assinatura do contrato e o resto dividido em prestações de 200 mensais.”

Ficamos bastante mais animadas:com a conversa, com o preço, com a forma de pagamento... Com um contrato que inclui tudo que precisa ser feito e que não cobra cada coisa separado, como no caso de Steve... A entrevista com o outro advogado estava marcada para as duas da tarde...

(a bateria do computador tá morrendo e a não há tomadas próximas desta mesa...)

sábado, 9 de agosto de 2008

El precio de la ignorancia... (Parte I)





(Terça-feira, 6 de agosto de 2008. 18:30h)


Acabamos de chegar de Los Angeles. Um alívio a informação, o conhecimento, a possibilidade de escolher... Desde ontem estamos trafegando essas freeways que, apesar de todas as críticas, acho maravilhosas. Foi nelas que há 10 anos iniciei o reencontro comigo mesma. Sempre me levavam para lugares inusitados... Comecei nelas uma brincadeira comigo mesma que quero que dure pra sempre: nunca desejava chegar a lugar nenhum, nem mesmo à minha casa, filhos e marido, o que é meio absurdo para uma canceriana – tão cheia de água no seu mapa astral – como eu. Gostava de me perder nas filosofações, fantasiações, ruminações. Sentia-me livre... como as freeways fora da hora do rush. Havia sempre uma entrevista, uma reunião, um destino, o que justificava a minha movimentação do leste para o oeste, do sul para o norte, mas eu me envolvia mais era com a transição; com a possibilidade de dialogar comigo mesma: tanto entusiasmo, tanto medo, tanta inocência!

Antes de chegamos em casa propriamente pedi pro Nick passar no Trader Joe’s, para eu comprar um vinho. Uma licença que peço à minha amiga Maria e a Timothy Campbell, o quiropata (chiropractor) que fui ver ontem, depois da entrevista com o primeiro advogado. Preciso de um vinho: para aproveitar o ensejo e conhecer marcas que não conheço - e que dificilmente conhecerei em Fortaleza; para celebrar a ampliação do nosso conhecimento sobre leis imigratórias e, finalmente, para ficar um pouco tonta (get a bit high)... pelo amor de Deus!...

Antes de falar sobre os encontros e achados dos dois últimos dias, quero filosofar um pouco. Lembrar dos tempos em que a antropologia me arrebatava mais... Quero falar dos males da ignorância e qualquer dia desses juro que escrevo um manual sobre como se defender disto. Mas é uma conquista difícil esta, a do conhecimento contra a ignorância. Muita coisa aprendi com a antropologia, mas agora lembro-me particularmente de Eric Wolf, Guerras Camponesas do Século XX. Na introdução, ele se demora falando da ignorância que levou os Estados Unidos à invasão do Vietnã. Até hoje me lembro do que ele diz: a ignorância é irmã gêmea da desgraça. Sei que é. Quem não sabe? Mas eu acrescentaria que a desatenção produz ainda mais desgraças. Ele mostrava como a arrogância fruto da ignorância havia levado os americanos tão longe na sua auto-destruição e na do povo vietnamita. Ele se repete a pergunta que os americanos se fizeram por um tempo: como aqueles bastardos subnutridos de roupas listadas conseguiram vencer o maior e mais bem tecnologicamente preparado exército do mundo? Se tivessem respondido a questão provavelmente não teriam também invadido o Iraque. Mas essa é uma longa conversa e quero voltar ao que a motivou.

Eu, Kel e Maria saímos de Riverside às 9:30, rumo à Pasadena, para encontrar um velho amigo da Maria, do seu tempo de Cal Arts, Steve M. Adoro os caminhos de vales e montanhas que nos separam de Pasadena. Fizemos o clássico 60 Oeste – 57 Norte – 10 W – 210. Gosto especialmente das curvas da 57: os limites, as sombras, as luzes, o vale extenso... as montanhas. Maria, que é tão perfeita mas é viciada em café, pára num Starbucks do caminho. Compro o LA Times. Raquel vai comprar um donut. Troco duas ou três sentenças com um mendigo encostado na coluna da varanda do pequeno shopping. Maria lhe dá um dólar. Ele sorri, feliz.

Chegamos na Lake Av., em Pasadena, próximo da hora marcada, mas Maria acabou se enrolando e, afinal, chegamos ao escritório de Steve às 11:15, alguns minutos atrasadas. Fomos ao banheiro e eu não parava de dizer besteiras e rir com a Maria... Acho que era um jeito de fugir da tensão que me dominava. O conhecimento adquirido na Law Library (biblioteca municipal de Direito de Riverside) nos afastava um pouco da ignorância absoluta, mas não nos tranquilizava ainda. Era como se tivéssemos apenas vislumbrado a ponta do iceberg. É um escritório de três advogados: amplo, claro, protestantemente elegante. Maria nos apresenta a Steve e Raquel conta a sua história. Ele a interrompe várias vezes para pedir mais detalhes. Afinal, perguntamos quanto. Três mil para defendê-la no tribunal. E entre dois e cinco mil para refazer o pedido do waiver que ela precisa para outra vez iniciar o processo de mudança de visto. Perguntamos-lhe sobre as consequências de ela voltar imediatamente para o Brasil. Ele explica que ela já está sem documentos (ilegal) desde o dia em que o seu pedido foi negado (meados de janeiro) e que a seis meses de permanência ilegal corresponde a pena de três anos proibida de entrar aqui. É meio doido isto porque um dos motivos porque ela permaneceu foi justamente o processo que a impedia de sair. Ou seja, se não pode sair porque está respondendo o processo por que tal tempo contaria contra ela? Além disso, levantou a possibilidade de o desemprego atual do Nick prejudicar o pedido do green card. Sentimos firmeza nas atitudes dele, mas acho que, no final, ficamos ainda mais intranquilas do que antes. Explicamos que no dia seguinte estávamos indo para mais duas entrevistas com advogados em LA e que, depois de tudo, entraríamos em contato com ele, caso decidíssemos em seu favor.

Almoçamos todos juntos num restaurante indiano e lá, eu e Kel escutamos as histórias que os dois contavam dos tempos em que moraram juntos. Eu paguei a conta. Já havia combinado isto com a Maria. Depois íamos para Sherman Oaks, para uma consulta que eu queria fazer com o Tim, o quiropata da Maria. Ele tem um papagaio cor de rosa que deve ter trazido de alguma floresta tropical e que se transformou num bicho de estimação... Não sei se pode ser papagaio com aquela penugem branca/rosa, mas fala/grita como papagaio... Um saco. Respondi aqueles questionários intermináveis que os quiropatas fazem. Ele deu uma olhada: articulações dos dedos inchadas, doloridas, alguns meses de pressão alta, pedras nos rins... Disse que todos esses problemas eram fruto da minha desidratação. Preciso tomar de dois a três litros de água por dia. Me apertou um pouco para por os ossos no lugar, deu umas massagens pontuais e pronto. A Kel achou aquilo tudo uma enrolação e não entendeu como eu tinha coragem de pagar 90 dólares. Noventa dólares pro cara dizer que tudo precisa tomar água? Ah, mãe...

Passamos numa loja de produtos naturais, a Whole Foods, porque eu queria comprar um bolo de cenoura. Gosto muito de um bolo de cenoura que o Trader Joes vendia, mas faz anos que não encontro mais. Prefiro ao do Whole Foods. Enfim, compramos e fomos para um café. Somente lá vi que o bolo havia sido feito há cinco dias. Estava dentro do prazo de validade, mas estava meio seco. Todas concordaram e, depois do café, fomos devolver o bolo com cerca de 1/8 comido. Expliquei para o vendedor e ele me deu o dinheiro de volta. Entramos na freeway para a viagem de volta. Importante: disse viagem, mas ninguém aqui considera ir para Los Angeles, Pasadena, Beverly Hills, Santa Monica viagens... Na vida de muitos esses são trajetos cotidianos de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Surpreendentemente, àquela hora, 5 da tarde, a freeway estava livre. Sempre há engarrafamentos entre 3 da tarde e 7 da noite na direção oeste-leste... Em todas as direções, na verdade. Maria conjecturou que poderia ser já consequência das demissões do Schwarzenegger. Como se a crise atual não fosse bastante, ele anunciou o corte de cerca de 10 mil empregados do Estado e redução do salário dos que permanecem... Atinge mais o pessoal que trabalha meio expediente (part-time workers)... Várias protestos estão sendo feitos

Estávamos meio frustradas quando voltamos para casa. Mas eu já estava convencida de que precisávamos de um advogado. Não imaginava que teria que pagar tanto, mas, enfim, fazer o quê? Contamos um pouco o que havíamos aprendido com Steve para o Nick e sua família... Mas insistimos que só poderíamos tomar alguma decisão depois das entrevistas em LA, as de hoje.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Perdi o vôo...

Perdi o vôo, mas não a esperança... Mas me assustei um pouco. Não com o fato em si, mas imaginando o que seria dirigir uma hora até o aeroporto (LAX) e ao chegar lá descobrir que meu vôo havia partido há quase 24 horas! Considerando a possibilidade de tal pesadelo, saber, via telefone, que perdi o vôo não é grande coisa. Perdi e dou graças a Deus por isto: precisava de mais uns dias por aqui.

Ontem, na festa de despedida na casa de Armando, Maria praticamente me forçou a ligar para a Delta para ver a disponibilidade de vôos para daqui a uma semana, valor da multa, etc. Com o desemprego crescente, sempre há vagas. E a multa não é tão absurda assim: duzentos e cinquenta contos americanos. Engraçado é que eu e a funcionária nos demoramos na conversa e nenhuma se deu conta que àquela hora eu já deveria estar fazendo o check-in. Foi somente hoje, quando liguei para adiar, que soube que meu vôo já havia partido. Parece excesso de desatenção, mas não foi. Eu sairia de LA para Atlanta à 0:55 do dia 8. Horário ardiloso. Tinha que chegar ao aeroporto ainda no dia 7 e foi essa besteira que me pegou. A Circe, amiga minha, me contou outro dia que aconteceu a mesma coisa com seu filho que mora aqui, em San Diego. Não imaginei que cairia na mesma armadilha. Há outras consequências, além dos 250 contos: uma semana de atraso nos meus cursos. Uma palestra para escrever para o encontro internacional de capoeira em Jericoacoara... Um monte de coisas, sem dúvida. Mas voltar assim, nessa correria, sem tempo de respirar direito... Eu já sei que eu sou assim: gosto de ir ficando onde está bom. Mas não é só isto: quero mesmo ficar mais uns dias com a Kel. E encontrar melhor a Maria, a Jeannie e a Adriana. Nem sonho agora em rever outros amigos que poderia... Se o Paul souber que fiquei aqui todos esses dias e sequer lhe telefonei... Sem contar que é mais difícil ir encontrá-lo em Santa Bárbara... Mas foi tudo tão corrido que nem o oceano Pacífico vi. E os “meus” brasileiros de Chino, como estão? O clube das brasileiras, a Ivênia, a lua crescente lindíssima em Hollywood Hills?

A verdade é que somente terça-feira, depois do encontro com os advogados de Los Angeles, começamos a respirar direito. Até lá a tônica era o dueto ignorância, tensão e as suas consequências... Anteontem, enquanto jantávamos no tailandês amigo dela, do Towne Center, Maria me sugeriu ficar um pouco mais. Tudo ficou corrido demais nos últimos dias... Sem falar no outro pesadelo: o de conseguir um cartão emergencial do Banco do Brasil (visa). Melhor assim: me despedir de todo mundo homeopaticamente.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Paul Auster, o mago: primeiros encontros

a Muad'Dib

Uma das tantas conclusões de Blanchot (O Espaço Literário) é que a literatura finalmente se realiza quando a solidão do autor se encontra com a do leitor. Mais poeticamente: a literatura nasce do encontro de duas solidões: a do autor e a do leitor. Foi assim que me senti quando li A invenção da solidão, de Paul Auster. Claro que vivi tal encontro muitas outras vezes, mas é o Paul Auster que me inspira a falar sobre isso agora.

Passeei com ele pelos quartos e corredores da memória criada pela morte do pai. Vi sua mãe se olhando no espelho; esperando um carinho de um pai perdido em si mesmo e na sua própria idéia de retidão. Apaixonei-me por aquele texto escorrendo pelas páginas com a leveza do pensamento. Um achado. Fiquei aliviada quando vi na amazon.com que ele havia já escrito muitos livros. A minha alienação do mundo à minha volta me protege e também me embrutece. Claro, nada é de graça. Por que escolhi [na vida] caminhos que só me permitiram me encontrar com Paul Auster ali, em Chicago, no meio de tantas coisas urgentes para fazer? Resolvi brindar minha primeira semana destas férias com a leitura Mr. Vertigo. Os outros livros dele que havia comprado ainda em Chicago haviam sido guardados aqui, neste mesmo quarto que estou hospedada agora. Deixei-os porque havia coisa mais urgente para levar pro Brasil e também porque já tinha coisa demais pra fazer. Agora não, lê-lo é mais urgente.

Foi meio por acaso que me entreguei ao Mr. Vertigo nestas férias. Os cupins me fizeram tirar todos os livros do lugar. Na arrumação, encontrei Mr. Vertigo. Não me atraiu o titulo, mas eu pensei, vambora, tudo bem, é Paul Auster, vamos ver se se garante também como ficcionista. Acho que na terceira página já estava envolvida: adoro narrativas em primeira pessoa porque me levam mais rápido à solidão do autor. Uma armadilha muito eficiente para atrair leitores como eu.

Walt, narrador/personagem principal, já nos seus sessenta e tantos anos, resolve contar a extraordinária história do seu encontro com o Mestre Yehudi e a sua metamorfose num grande fenômeno, o primeiro menino voador. Prestes a conquistar a Big Apple, uma revelação cruel que não posso adiantar aqui porque a Marcionília me mataria. O esforço da empreitada e os detalhes da conquista, incluindo o sofrimento profundo e consequente transformação do “herói”me levaram a esquecer completamente o absurdo que é acreditar que um ser humano pode realmente voar. Um mago, este tal de Paul Auster. E prossegue contando a dureza que era ser pobre, índio, negro e judeu naqueles Estados Unidos do início do século passado...

Só acredito em romances onde autor, personagens e leitor se metamorfoseiam. Mr. Vertigo me surpreendeu, me encantou, me comoveu. Extraordinário. Quando estava já na metade do livro, Camila, aluna de antropologia do corpo no semestre passado, foi almoçar comigo e eu lhe falei de Walt. Estava mais envolvida nos dramas dele do que nos da Kel. Vivia uma situação difícil, que jamais havia experimentado: estava louca para terminar de ler, mas morrendo de pena de acabar a leitura... um affair, quase. Fui lendo cada dia mais devagar... Cada dia arranjava coisas “importantes” para fazer para me demorar mais acompanhando a busca/encontro de Paul Auster consigo mesmo através daquele menino pássaro, anjo, demônio... Mas não resisti e, mesmo homeopaticamente, terminei.

Quando soube que vinha visitar a Kel, aproveitei para pedir todos os seus livros. Logo que cheguei li um, infantil, Auggie Wren’s Christmas Story (A História de Natal de Auggie Wren). Não gostei muito, achei meio besta. Resolvi iniciar City of Glass. Uma história de detetive louquíssima, surreal, cujo cenário mais amplo é NY. Meio autobiográfica... Acho que a relação dele com o seu pai aparece em tudo que escreve... Não sei. Fora isto ele me lembra o realismo mágico latinoamericano. Surreal, do jeito de Garcia Marquez, mas ao invés de romântico como este, é pragmático, simples e direto como Borges. Uma combinação perfeita... Conto mais depois.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

As Ruas de Riverside



As ruas de Riverside
não querem saber dos meus papos zen
ou da poesia concreta dos guerrilheiros de Chiapas
só querem desembocar no mar de freeways que levam

a Los Angeles
e a lugar nenhum

as ruas de Riverside
não querem ver a cor do meu baton
não querem ouvir os coyotes de Jeannie
nem sentir o cheiro do café de Maria
por que dariam conta da ansiedade aristocrática
nos jantares elegantes de Alena?

as ruas de Riverside
não vêem nada - não querem ver nada
não sentem nada - não querem sentir nada
não escutam nada - não querem escutar nada

as ruas de Riverside
indiferentes, serenas
nem parece que sabem que
amanhã ou depois
desaparecerão
com o terremoto que transformará a Califórnia noutra ilha


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Do terror doméstico II



Vim e continuo me sentindo tão impotente quanto no Brasil. A diferença é que tenho agora a sensação de estar, como previu Sérgio, dando um apoio mais efetivo à Kel. Bom encontrá-la, abraçá-la, tê-la por perto depois de uma ano inteiro de separação... Planejei ficar um pouco na casa da Jeannie, mas não consegui: quero ficar por perto da Kel o tempo inteiro.

Hoje estou me sentindo melhor do que ontem. Talvez tenha sido o encontro com a Susan, amiga que também fez o doutorado em antropologia na UCR. Ela é a mulher mais falante que eu conheço. Nunca vi sair de uma mesma boca tantas palavras... Por muito tempo ela foi o meu termômetro da minha ignorância do idioma. Geralmente acontecia uma das duas coisas nas nossas conversas: ou eu desistia de tentar entendê-la e me desligava ou a interrompia várias vezes para perguntar o significado das palavras que dizia.
São muitas histórias com as minhas amigas daqui. É engraçado que nos meus 16 anos de Fortaleza eu não tenha conseguido fazer amigos com quem me sinta tão à vontade como me sinto com a Jeannie e a Maria. É especialmente a disponibilidade delas que me comove. Eu brincava com Jeannie dizendo que me sentia mais à vontade na sua casa do que na minha. A Susan me anima porque está, como eu, sempre com alguma novidade. Um livro que leu. Uma dieta nova. Uma nova forma de ganhar dinheiro com a antropologia. Quando editava uma coleção especial de antropologia na Europa, me convidou para dar parecer dos manuscritos que recebia em português. Tudo que sei sobre a antropologia portuguesa foi através dessa conexão estabelecida por ela.

Cheguei na sua casa morrendo de fome e ela me deu uns pedaços de pizza que haviam sobrado do almoço. Havia combinado de passar lá depois do almoço, mas de última hora mudei de idéia porque achava que se comesse aqui desistiria de ir, como aconteceu ontem. Comi enquanto contava pra ela e pro Markus, seu marido, o problema da Kel. Mas não passava a fome e ela fez um café gelado supergostoso e me deu uma barrinha de granola e depois já foi me levando para conhecer a casa que acabou de comprar e para a qual se mudará proximamente. Há uns três anos, quando começou a pesquisar o mercado imobiliário de Riverside/Los Angeles, Susan já previa a crise atual e já tinha um plano bastante inteligente para comprar a sua. A casa que afinal comprou chegou a custar 450 mil dólares há um ano, pouco antes do início da crise imobiliária. Ela comprou há uns dois meses por 290. Cerca de 40% menos. Sugiro que ela escreva um livro sobre isto. Na verdade, ela já oferece este e outros serviços no seu blog Small Signs and Omens (http://indiciaconsulting.blogspot.com/).
A casa é linda. Construída nos anos 1950, com piscina, jardim enorme e todos os cômodos que ela precisa, inclusive quarto de hóspede. Perto do rio que dá nome à cidade: Riverside. Numa rua que não é de passagem para ninguém, a não ser os próprios moradores. Acho que o título do Manual dela seria: Antes de comprar uma casa, preste atenção no seguinte. Aproveito o ensejo para sonhar com um mundo onde os manuais escritos para as mulheres que querem casar tivessem títulos como Você tem mesmo certeza de que quer casar com ele? Ao invés do besteirol comum: Como conquistar o seu homem em duas semanas, Cinco conselhos para não espantar seu homem, Plásticas e exercícios que precisa fazer antes de começar a procurar seu homem, etc.

Depois da visita à casa nova fomos para o Panera, para mais café e mais comida. Ah, agora estou entendendo de onde vem a disposição que estou sentindo agora: de tanto café! Só pode ser isto. Ontem eu estava tão cansada que adormeci umas oito horas, ainda estava claro. Muito sol e muito calor na piscina da Jeannie. E também um pouco o sentimento de impotência diante do caso da Kel.

Mas não podemos dizer que não progredimos. Ao contrário, progredimos bastante. O que ainda não consigo me acostumar é à idéia de que devamos ficar com medo porque a Kel está ameaçada de deportação em consequência de erros do escritório de advocacia que contratou e do próprio Serviço de Imigração. Até agora, todos os meus amigos sugerem que contratemos um advogado. Todos concordam que o caso é simples, mas insistem que tudo pode se tornar muito complicado porque todos os serviços ligados à imigração foram “politizados” demais. A sensação que me dá é a de que não há mais bom-senso e tudo se tornou subjetivo demais. Depende do funcionário de plantão. Do juiz de plantão. De gostar ou não de você. E eles dizem isto claramente na pesquisa que fizemos sobre a lei de imigração e o que se prevê nas várias situações. Na verdade, eles não enganam ninguém e já nos advertem sobre isto logo que começamos a pensar em vir para cá. Nas instruções de pedido de visto avisam com todas as letras que a concessão do visto nos consulados americanos não garante a entrada do portador. Exatamente. A entrada será finalmente determinada pelo funcionário de plantão do Serviço de Imigração: aquele que confere o seu passaporte/visto. Pode acontecer de não gostar da sua cara e lhe mandar de volta do aeroporto. Coisas de regime de exceção. Qualquer funcionário da burocracia pode ter mais poder do que indivíduos hierarquicamente superiores a eles, mas residentes de outros países. Outro dia vi o caso de um padre que teve o seu visto negado pelo consulado do México, no Rio. Isto acontece com qualquer burocracia em tempos de exceção. Pelo menos ninguém é deportado sem julgamento: isto ainda é coisa de democracia. Daí a importância do advogado: ele conhece a lei e os seus detalhes e está preparado para defender o cliente de alguma decisão discriminatória. É isto que todos temem: que o juiz não preste atenção no caso, na defesa do cliente e julgue baseado no preconceito.

Elizabeth Ruiz, a sogra da Kel, insiste que as coisas não estão tão ruins assim. Que esse terror é mais fruto da propaganda dos “irresponsáveis” dos democratas do que propriamente da realidade. Para ela, os democratas são responsáveis por todas as desgraças vividas hoje no país. "Óbvio que não acreditam na justiça que eles mesmos criaram". Toda a imprensa é democrata, insiste, daí a desesperança reinante. Diferentemente dos meus amigos socialistas/comunistas que votam nos democratas, ela confia nas instituições que sustentam a democracia americana. Diferentemente dos meus amigos socialistas/comunistas/democratas, ela sempre apresenta longa lista de fatos para demonstrar seus argumentos. Engraçado é que é verdade: eles têm um medo difuso e vago e se baseiam em experiências particulares. Generalizam suas experiências. Ela, embora não tenha diploma do ensino superior, parece mais convincente. Difícil é aguentar o seu discurso patriótico, incondicionalmente favorável a Bush e à política dos republicanos. Eu a escuto sempre com grande atenção e paciência, mas não consigo deixar de expressar a minha discordância.

Amanhã consultaremos o primeiro dos três advogados com quem marcamos entrevistas. Ele é amigo da Maria. Ela também acha que independentemente de culpado ou não, o acusado precisa de advogado. Eu e a Kel já estamos bastante sabidas sobre a sua situação e inclusive sobre que aspectos levar em consideração antes de contratar um advogado. Vambora ver o que aprenderemos no encontro de amanhã, em Pasadena. Na terça, vamos para as entrevistas em Los Angeles... e aproveitaremos para olhar o Pacífico.

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