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De brasileiros a latinos?!?

(publicado originalmente no jornal O Povo, em 30 de julho de 2005) Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente. Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''. Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque...

Nova Orleans: glamour atingido

(publicado originalmente no jornal O Povo, em 18 de setembro de 2005. Republicado no Cronópios, em 24 de setembro de 2005 http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=591 ) Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente ...

Réquiem ao menino do sinal

Nem era um menino. Era um homem. Um palhaço. Divertido, estava sempre fazendo gracinhas, caretas. Assustava um pouco, às vezes, porque era alto, magrelo, moreno, aquele cabelão desgrenhado que ele tentava arrumar com um boné que só conseguia cobrir a metade. Eu me irritava quando ele me assustava. Mas só me assustava naqueles dias em que eu estava perdida do mundo à minha volta. Era uma bênção voltar à realidade com o seu sorriso. Mas não tinha jeito, eu me irritava primeiro, por conta do susto, e depois ria. Ele limpava o meu pára-brisas e se ia sorrindo com as moedas conquistadas. Coisa pouca: 50 centavos. Às vezes um real e aí era uma festa, com benzeção e tudo. Antônio, o rapaz que trabalha aqui, me disse há uns dias que ele havia morrido. Há duas versões para a sua morte. Antônio disse que não-sei-quem ouviu no Barra Pesada e lhe contou. O que dizem é que morreu de overdose. Era meio desarrumado, meio sujo, provavelmente se drogava também, mas era atencioso e divertido. A outra ve...

Aos noivos:

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Fortaleza, 19 de abril de 2008 Fiquei esses dias pensando sobre o que dizer a Lucas e a Marcionília hoje, dia em que celebram a decisão de prosseguirem reinventando a vida juntos, como amigos, amantes, companheiros, marido e mulher... Como casamento sempre evoca amor... vou falar um pouquinho sobre amor. Mas vou falar do amor entre pais e filhos. Entre mãe e filho, no caso. De todos os amores experimentados na minha existência, o que mais me comove é o amor que sinto pelos meus filhos. E foi com Lucas que tive o privilégio de experimentar pela primeira vez esse amor. Dizem que é um amor especial porque é imediato e incondicional, mas eu não concordo com isto. Na verdade, o amor materno é um amor difícil e cheio de expectativas como todos os outros, mas é diferente dos outros porque a relação mãe e filho é uma relação mais definitiva. Não tem ex-mãe ou ex-filho. O que pode ter é mãe carinhosa, generosa, mesquinha, presente, ausente, chata, agradável e assim por diante. Eu digo que é um ...

Ala F (primeiro ensaio)

A travessia da ala F É uma viagem mais longa do que a da Patagônia ao Alaska Recosto-me num ombro imaginário E vejo tudo: O que vivi O que temi O que comi e não digeri Porque a dor não se digere assim Leva anos, séculos, Expressões inúteis Ladrilhos escorregadios Cacos de espelhos colados na parede Água gelada acordando meu corpo anestesiado A lucidez é um fiapo Que me envolve como uma sentença de morte Pulsos cortados presos à cama Enquanto a vida homeopaticamente se esvai pelas frestas da janela inexistente Sussurros de camudongos enchem meu peito de pavor Trazem fantasmas, sombras, medos Um dia entrarão e roerão tudo Teus olhos também Nada será poupado, nem a lembrança Fragmentos de sentidos se espalham no silêncio do poema O ruído: pesadelo semântico O ruído: avatar da miséria O ruído: corte na alma Para além do ruído, a palavra medrosa, o deserto O espelho descobrindo continentes esquecidos As montanhas longínquas do norte Emolduram fragmentos de desejo que rodopiam em volta de um...

Roteiro para o homem não se perder por atalhos

A Álvaro Inda num ponto Da ponta da faca Inda na feira dos mortos Inda num resto de fôlego O grito do ser.

Uma Viagem ao South Chicago Blues

(Publicado primeiro em 14/12/2007 no Portal de Literatura e Arte Cronópios)( http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=2932 ) Volto à noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006, quando iniciei minha aventura de conhecer o blues para além das mais comerciais e turísticas Houses of Blues, que têm sucursais em todas as grandes cidades americanas. Sei que não estou aqui pelo blues e que o desejo de ver mais de perto esse mundo veio de entusiasmada conversa sobre o tema que tive há alguns dias com Lia, a filha de Pedro. Fiquei, desde então, meio me sentindo em dívida comigo em relação a esse aspecto tão importante da minha atração por Chicago e que eu não estava dando atenção porque completamente dedicada à missão de estudar músicos e outros artistas brasileiros que trabalham com cultura brasileira (samba, bossa-nova e capoeira). Lembrei-me que o Brian Drell, amigo judeu nascido aqui, havia me prometido uma visita a uma dessas casas clássicas de blues, localizada nas próprias neigborh...