O Evolucionismo do Século XIX e a Antropologia(1)
Bernadete Beserra
O evolucionismo do século XIX é o resultado de um processo social-histórico que vinha se gestando mais claramente desde as grandes descobertas marítimas do século XV. O sucesso do emprendimento Europeu de conquistar o mundo, associado com as questões filosóficas e morais que vinham sendo postas como resultado da convivência dos Europeus colonizadores com os povos colonizados cria o ambiente apropriado para a manifestação do que estamos considerando aqui evolucionismo do século XIX.
Interessa-nos aqui, sobretudo, explorar os movimentos da ciência nesse século e o lugar específico da antropologia, assim como o seu legado. A despeito dos debates entre ciência e fé serem pelo menos dois séculos anteriores ao século XIX, o estudo do homem e da sociedade não tinham ainda conquistado o estatuto dos estudos sobre a natureza, os quais, desde Bacon (1561-1626) e Descartes (1596-1650) começam a se orientar pelas regras do que chamamos hoje ciência moderna.
Essa ciência em gestação propõe-se a substituir o princípio de autoridade da fé e aceitar, como fonte de connhecimento, a experiência e a razão. Seria, portanto, através da observação que o cientista iria descobrir relações de causa e efeito entre os fenômenos sob observação. Através do estabelecimentos de relações mais complexas entre os fenômenos o cientista estaria pronto para formular hipóteses, leis e teorias científicas. Dessas generalizações são deduzidas consequências lógicas as quais são submetidas aos rigorosos testes experimentais. Se estes testes não confirmam a verdade contida nas proposições, novas observações são requeridas para se saber o que aconteceu de errado em qualquer fase da pesquisa. Ou seja, além de buscar as leis que estariam na base de todos os fenômenos, essa ciência tinha que produzir provas empíricas da sua explicação. Contra o caráter de certeza do pensamento religioso, esse novo tipo de conhecimento afirma ser mantido pela dúvida. Teses permanecem teses enquanto puderem ser verificadas como tal. Mas essa idéia de ciência estará ainda muito distante da afirmação de Popper de que o conhecimento cientifico é por natureza hipotético. Mas entre Bacon e Popper por quantas mudanças sociais e por quantos filósofos da ciência não passamos?
Até o século XIX esse conhecimento e as suas regras eram aplicados ao estudo de fenômenos físicos e naturais. O homem e a sociedade eram ainda objeto da especulação moral ou filosófica ou dos dogmas religiosos. Embora seja razoável observar que desde o século XVII, aqueles que se tornaram conhecidos com os iluministas, incluindo o próprio Descartes, começam a buscar explicações naturais sobre os fenômenos sociais. Não é demais lembrar que estudos tais como o de Locke, Rousseau, Hobbes, Montesquieu são até hoje referências de estudos contemporâneos e não apenas do ponto de vista histórico, ou seja, eles contêm elementos cujo alcance teórico chega até nós. Não é à toa, por exemplo, que Levi-Strauss elege Rousseau o pai das ciências sociais. E Evans-Pritchard e Raymond Aron elegem Montesquieu como um dos primeiros filósofos a racionarem sociologicamente. Esses filósofos estavam interessados basicamente nas mesmas questões que até hoje nos interessam. Eles estavam, por exemplo, tão interessados em entender as bases do poder quanto as da própria vida social. Eles também estavam interessados em compreender as diferenças entre os homens e o seu estatuto.
Fruto dessas circunstâncias que lhe antecederam, o século XIX anuncia sob diversos aspectos uma das vitórias mais definitivas do homem sobre Deus. Contra os desígnios de Deus, embora ainda em seu nome, o homem (europeu) conquistou os mares, expandiu seu império, fundou a indústria moderna.
É claro, como lembram os “ladrões” de Dickens e Swift ou as condições subhumanas de existência das classes trabalhadoras de Marx ou os suicidas de Durkheim, que as sociedades européia e americana do século passado não eram só esperança num futuro triunfante do homem, como Morgan em geral supunha. Ao contrário, serão justamente os problemas dessa sociedade que permitirão ou inspirarão a criação de explicações tais como a de Marx, Durkheim, Weber, Pareto, só para citar alguns dos nomes mais importantes. Parece-me (e a Aron, por exemplo) que os problemas mais que os triunfos levaram muitos desses filósofos a se dedicarem ao estudo das suas sociedades. Mas quando falamos em antropologia, ou nos seus primeiros fundadores, observamos que esses problemas não têm o mesmo peso que tem para aqueles cujo objeto de estudo é a própria sociedade. Os estudiosos que hoje estão relacionados à história da antropologia eram aqueles cujo interesse estava voltado para a compreensão de outras expressões da família humana (para usar uma expressao de Morgan). Usando como referência as suas sociedades e valorizando especialmente a tecnologia que teria levado ao conhecimento de outros povos e terras ( assim como à sua dominação), Morgan, Tylor, Bastian, McLennan e outros evolucionistas não tinham dúvidas de que a sociedade da qual eles observavam as outras estaria anos-luz distante daquelas.(2)
Como explicar tal situação? Ou seja como explicar que em sendo todos humanos sejamos tão diferentes? O desafio (como sugere Kaplan & Manners, 1966) não é simplesmente explicar tais diferenças, mas explicá-las buscando suas causas naturais, ou seja, saindo do domínio de Deus. É nesse contexto, cujos contornos todos nao podemos delinear em tao pouco tempo, que surge o evolucionismo.
Contra as garantias da religião que prega que as coisas são como são por vontade divina, os evolucionistas observam não apenas que as coisas não permanecem iguais para sempre, mas que elas são produzidas pelos homens nas suas relaçòes sociais e politicas. Mas, como o homem chegou a ser o que é?
Essa questão, naturalmente, já vinha sendo indagada desde as primeiras descobertas quando os descobridores observaram, contra as suas expectativas, que, pelo menos fisicamente, os homens eram bem semelhantes. Ou seja, os rabos, chifres e outros estranhezas que se esperava encontrar não foram encontrados. Em lugar disto, entretanto, era evidente a diferença entre esse homem recém-descoberto e os seus descobridores. Eles tinham outros hábitos, religiões, morais, etc. Embora os descobridores nunca vissem isto, ou seja, não observando comportamento semelhantes aos seus eles simplesmente afirmavam que esse homem diferente faltava uma filosofia, moral, etc. O fato é que essas famílias eram diferentes. Tal diferença, em função das circunstâncias da necessidade Européia de explorar e escravizar esse homem, foi interpretada como inferioridade e a questão, então, era explicar porque eles – os Europeus – eram superiores e os Outros – inferiores?
Refutando as explicações religiosas, os filósofos buscavam uma explicação natural para a história do homem. A questão era, entao, explicar, por intermédio da razão e das provas empíricas, como o homem alcançou a civilização. Como responder tal questão sem a ajuda de Deus? Noutras palavras, de que método científico necessitamos ?
Sem dúvida a noção de evolução foi de uma oportunidade decisiva. Como diz Mercier (1966) não há noção mais importante para a fundação da antropologia que a noção de evolução. Em outras palavras, a noção de evolução associada a dados etnográficos de primeira ou segunda mão e a sua utilização como provas empíricas é tudo que a antropologia necessita para começar a se estabelecer como uma ciência. Um objeto especifico: O estudo da evolução da humanidade. Uma teoria própria: As diferenças observáveis refletem diferentes momentos na escala da evolução humana. Um método próprio: a coleta e a classificação de costumes fora dos seus contextos.
A ordem era entender a historia da diversidade de diversos costumes, como fizeram, por exemplo, Buchofen e Morgan, em relação à origem da família. Ou Tylor (e depois Frazer) em relação à religião.
Vamos nos deter no caso de Morgan por considerarmos, como o Prof. Gene Anderson, que, entre os “old anthropologists” Morgan foi aquele cujo legado foi mais decisivo para a história da nossa disciplina. Vejamos porque.
Podemos começar dizendo que Morgan foi o mais pretensioso. Ao invés de procurar a evolução ou origem de um só costume, ele percebeu que o progresso da humanidade requer mais do que apenas inovações tecnológicas. Ou seja, embora ele tenha largamente relacionado evolução ou progresso com o desenvolvimento das “artes de subsistência”, ele tinha consciência de que todos os outros fatores que ele estudou em Ancient Society, quais sejam, diferentes tipos de família, governo e propriedade, estavam intrinsecamente relacionados uns com os outros. Em outras palavras: o progresso seria uma função de um desenvolvimento geral o qual atingia diversas instituições simultaneamente. Como ele diz claramente quando se refere à civilização: não é somente o alfabeto fonético que caracteriza os inicios da civilizaçào, precisamos entender o alfabeto fonético como fruto de idéias diversas e relacionadas. Tal perspectiva tem sido considerada holística por não reduzir a explicação de um processo a apenas uma causa. Foi certamente essa perspectiva holística associada ao seu materialismo – que o teria levado a observar a evolução da humanidade a partir das “artes da subsistência” – que teria levado sua obra a despertar tanto o interesse de Marx, e inclusive, a ser usada por Engels como provas empíricas das suas argumentações sobre as origens da família, do Estado e da propriedade privada.
Vejamos agora quais os postulados gerais assim como as explicações que Morgan propôs para entender a história do progresso da humanidade. Na introdução de Ancient Society, Morgan apresenta os postulados da sua teoria afirmando que, em geral, apesar das diferenças observadas nas diversas familias humanas, a historia da humanidade é a mesma em experiência, em progresso e em origem. Sua carreira tem sido essencialmente uma, embora transitando em diferentes mas uniformes canais em todos os continentes. Eis aqui a razão de se classificar o evolucionismo de Morgan como unilinear. Ele não apenas acreditava na idéia de unidade psíquica da humanidade, como ele também acreditava numa única carreira para todos. As diferenças observadas, portanto, entre as “famílias humanas” são, portanto, simplesmente explicadas pelo eixo temporal, como produto do progresso da história. “Eu sou hoje o que você será amanhã”
De que metodologias os evolucionistas lançaram mão para basearem esses postulados? Ou verificarem suas teorias?
O método evolucionista tornou-se conhecido como método comparativo. Após definirem através da observação das sociedades conhecidas em geral, mas especialmente a sociedade capitalista européia e/ou americana, que o elemento-chave ou a substância da evolução das sociedades humanas é a tecnologia, o método comparativo foi usado para comparar elementos tecnológicos entre diversas sociedades. Separados dos contextos em que eram produzidos, elementos ou costumes isolados eram comparados e classificados de acordo com as hipóteses dos pesquisadores como sobrevivências do passado, ou, simplesmente como manifestação da origem dos costumes presentes.
Essa idéia de sobrevivência, elaborada por Tylor, foi certamente uma das mais profícuas nas explicações evolucionistas. Tanto que depois, os funcionalistas, criticarão com um cuidado especial tal artifício teórico. (survivals)
Conduzido pela idéia de que as sociedades conservam sobrevivencias de suas formas passadas, Morgan, por exemplo, observando diferenças entre sistemas de parentesco classificatórios e descritivos, foi levado a inferir que, do ponto de vista do casamento, as sociedades “primitivas”eram promíscuas.
Mas, de um modo geral, todos os evolucionistas explicaram como falta o que era simplesmente diferente. Em geral, eles compararam todos os “bens”da civilização com a sua falta nas ditas sociedades primitivas. Deste modo, e novamente no caso de Morgan, é interessante ver como no seu esquema evolucionário “as famílias humanas” superam gradativamente suas faltas na medida em que passam de um estágio mais inferior para um imediatamente superior. Isto é, em geral eles passam do simples ao complexo, do indeterminado ao determinado, do confuso ao claro, etc. Obviamente, o complexo, o determinado e o claro eram os costumes tal como dados na civilização, ou seja, na sociedade do observador. Morgan classificou em três os estágios pelos quais a humanidade passaria: o primitivismo, a barbárie e, finalmente, a civilização. Os dois primeiros estágios contendo subdivisões as quais eram expressas pelas palavras alto, médio e baixo designando a passagem de níveis mais elementares para níveis mais complexos.
Acho que essas são, mui resumidadmente, as principais idéias relacionadas ao evolucionismo. Além disto, em em relação a Morgan especifivamente, eu poderia acrescentar que embora ele tenha se tornado conhecido pelo esquema de evolução proposto em Ancient Society (3) , seu legado para a antropologia está mais relacionado com a sua descoberta de que os sistemas de classificação de parentesco representam uma das formas mais efetivas de se entender as relacoes sociais especialmente no caso das sociedades primitivas. Ele fez tal descoberta quando estudando os iroqueses entre os quais viveu certos períodos da sua vida e dos quais era também advogado para defendê-los sobre questões de território. Dessas observações, ele também produziu uma das primeiras monografias fruto da observação direta de uma sociedade não européia.
Poderia acrescentar que a despeito da crítica, o evolucionismo foi o grande pontapé que as ciências humanas e sociais precisavam para começar a se estabelecerem como ciência. Referência indipensavel de toda a produção cientifica posterior, o evolucionismo definitivamente ganhou o primeiro “round” contra a fé: 1. Provou que os fenômenos sociais podem ser estudados de modo naturalista e 2. Criou o método comparativo como substituto para as técnicas experimental e de laboratório das ciências sociais. No caso específico da antropologia, o evolucionismo introduziu também a idéia, depois exaustivamente explorada pelos funcionalistas, do trabalho de campo. Além de que, uma parte considerável da nomenclatura e conceitos antropológicos foi produzida aí.
(1)Uma primeira versão deste texto foi apresentado à disciplina Antropologia I, no programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade da Califórnia, Riverside, em setembro de 1997.
(2)Lembro aqui o que Lowie’s History of Ethnology diz sobre esses filósofos que eram também médicos e advogados entre outras profissões. Olhando suas obras mais de perto, Lowie observa que todos eles de uma forma mais ou menos evidente estavam atentos para a compreensão de cada sociedade como um todo, ou seja, eles sabiam que aqueles fatos que eles separavam dos seus contextos só poderiam ser compreendidos verdadeiramente dentro dos seus contextos. Embora eles tivessem essa percepção, eles, de fato, não estavam interessados em compreende-los contextualmente mas como elementos parte de uma evolução histórica e geral.
(3) Lowie atribui isto aos usos de Ancient Society por Marx e Engels e sua consequente difusão nos países socialistas
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
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