(publicado originalmente no jornal O Povo, em 18 de setembro de 2005. Republicado no Cronópios, em 24 de setembro de 2005 http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=591)
Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente dar atenção à conversa: por que alimentaria pensamentos sobre destruição e morte se era início da primavera e tudo era sol, flores e alegria? Adorei Nova Orleans e senti-me em casa de um jeito que jamais me sentira em Los Angeles, Chicago ou Nova York. Nem em Miami, que é considerada mais latina do que americana, senti-me tão à vontade. Confirmei com os meus sentidos a hipótese de García Márquez de que a agroindústria açucareira, com os seus escravos e grandes propriedades, produziu uma cultura muito semelhante em três regiões da América: o nordeste do Brasil, Caribe e sul dos Estados Unidos. De fato, Salvador, São Domingos (República Dominicana) e Nova Orleans me pareceram semelhantes até no lixo e na mendicância. Lá até o inglês tem mais ginga: é mais macio e sedutor do que o falado em Nova York e Los Angeles. Mas Nova Orleans é mesmo uma cidade americana muito especial. Fundada em 1718, por um canadense de origem francesa, somente em 1803, depois de ter sido colônia da França, Espanha e, depois, França outra vez, foi comprada pelos Estados Unidos. O glamour que atrai a Nova Orleans cerca de 10 milhões de turistas anualmente é fruto dessa história distinta. O carnaval (que lá se chama Mardis Gras), o jazz, os negros (que representam 67% da população), a comida e a música cajun, a alegria, a simpatia e o calor dos seus habitantes fazem de Nova Orleans uma cidade que pouca semelhança tem com a frieza através da qual nos acostumamos a ver os Estados Unidos e os americanos. Nos meus cinco dias de visita, não vi muito além do que vêem os turistas: fiquei hospedada nas imediações do French Quarter (quarteirão francês) e, para além dos seus limites, contemplei apenas o que havia no percurso do bondinho que me levava até a Tulane University. Ali, nas imediações do Audubon Park, erguem-se as mansões burguesas: elegantes, tristes e silenciosas. O oposto do barulho, alegria, sujeira e permissividade da Bourbon Street. Gostei de tudo, mas fiquei muito intrigada com a mendicância e o lixo. Acho que mais pessoas me pediram esmola nas imediações do French Quarter, do que geralmente pedem aqui, na Beira-Mar. Ou talvez lá eu tenha ficado mais atenta para isto porque era um fato inusitado na minha experiência de Estados Unidos.
Se Nova Orleans não fosse tão peculiar talvez se aplicasse o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal, não são apenas os desabrigados do furacão Katrina que vivem a agonia das suas conseqüências. O governo Bush e a democracia americana também. Assim, para além dos prejuízos materiais e emocionais de mais de um milhão de pessoas, o desastre de Nova Orleans representa o colapso de uma idéia de Estados Unidos enraizada no mundo inteiro: o país mais poderoso do planeta nem é tão branco e nem tão democrático quanto nos fez crer. Pelo menos foram essas as duas questões em que insistiam alunos e colegas com quem conversei sobre o assunto nos últimos dias: ''mas professora, eu não sabia que havia pessoas tão pobres nos Estados Unidos, pensei que fosse mais igual... sei lá, pela pobreza e pela cor das pessoas nas reportagens, o cenário da tragédia parecia mais africano do que americano''. Mas os alunos e colegas daqui, que nunca foram aos Estados Unidos, não eram os únicos a se surpreender com a caixa de Pandora em que o Katrina havia transformado Nova Orleans. Jornais e revistas do mundo inteiro, e também dos Estados Unidos, comentavam as mesmas coisas. O sentimento geral era de que a nudez do rei havia finalmente sido revelada. Assim, o primeiro mito que a catástrofe destruiu é o de que americano é igual a branco, anglo-saxão e protestante: em Nova Orleans, Atlanta e outras cidades do sul dos Estados Unidos são os negros que preponderam, assim como em Miami e em várias cidades do Texas e da Califórnia são os chamados latinos (= cubanos, mexicanos, porto-riquenhos, colombianos, brasileiros, etc). Mas preponderam apenas do ponto de vista numérico, uma vez que depois de mais de dois séculos de integração os negros continuam excluídos da idéia de americanidade. Mas se o racismo é uma variável fundamental na compreensão dos Estados Unidos, a outra, sempre posta de lado pela sociologia americana, é a exploração entre as classes sociais. Uma observação mais cuidadosa mostra que mais do que apenas negros, são os negros pobres as principais vítimas do desastre. Outro mito cai e os Estados Unidos se aproximam da África e da América Latina não apenas em função da origem étnica de significativos contingentes da sua população, mas também da miséria socioeconômica: o american way of life não é uma garantia para todos os cidadãos americanos. Então, que democracia é a que os Estados Unidos querem impor ao mundo inteiro e em nome da qual invadiram o Iraque e outras tantas nações ao longo da sua história? O fato é que as principais vítimas da catástrofe do Katrina haviam sido atingidas antes pela dinâmica da democracia americana. Quer dizer, não eram apenas vítimas da vontade de Deus, do racismo e da incompetência (propositada, alguns dizem) na organização da operação de resgate. As políticas econômicas dos últimos governos, especialmente do Governo Bush, têm permitido que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. No ano passado, pela quarta vez consecutiva e apesar do crescimento econômico de 3,8%, o índice de pobreza nos Estados Unidos subiu para 12,7%, o que significa que havia 37 milhões de americanos vivendo abaixo da linha de pobreza. Mas a pobreza lá, como aqui, não é igualmente dividida entre as regiões, raças e etnias. O sul, particularmente os estados de Alabama, Louisiana e Mississippi, tinham as rendas médias mais baixas e, entre os grupos étnicos e raciais, eram os negros os mais pobres. Apesar disso, Bush se esforça para aumentar os cortes de impostos de ganhos de capital e convencer os americanos da importância da privatização da previdência social e da manutenção do salário mínimo em 5,15 dólares a hora, apesar da inflação anual média de 3% desde o período em que este valor foi estabelecido, em 1997. Para além do aprendizado específico sobre a sociedade americana, a tragédia de Nova Orleans demonstra que se há qualquer conteúdo democrático nas políticas capitalistas neoliberais é o de que elas não poupam sequer o seu mais importante porta voz e porto seguro, os Estados Unidos. Atingem todas as nações, raças e etnias e criam miséria e distância social tanto nas periferias quantos nos centros de poder, mas não indistintamente. Seletivas e hierárquicas justificam a acusação de racista e classista que o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, e outras lideranças negras fizeram contra o governo Bush. Assim, tão grave e dramático quanto os ataques de 11 de setembro de 2001, o choque provocado pelo Katrina atinge a sociedade americana de forma completamente diferente. Enquanto a intimidação do inimigo externo solidificava a idéia de nação e justificava a promoção da guerra contra os que a ameaçam, o Katrina revela exatamente o oposto, isto é, que a nação americana está cada dia mais ameaçada, mas não por Osama bin Laden ou Saddam Hussein: pela extrema concentração de renda e tratamento desigual dos seus cidadãos. Para os americanos vítimas das políticas neoliberais, fica cada dia mais evidente que o inimigo não está do outro lado do mundo, nem mesmo do outro lado da fronteira, mas ali, do lado, na Casa Branca.
BERNADETE BESERRA é professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Observatório das Nacionalidades
terça-feira, 17 de junho de 2008
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Um comentário:
essa é a etnografia que tu falou, né?
ah, então eu posso me postar como observador participante..
ficou massa, berna..
um beijo!
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