(publicado originalmente no jornal O Povo, em 30 de julho de 2005)
Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente. Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''. Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque era também latina? Não entendi imediatamente o que estava em jogo com a sua questão. Um ano depois, quando iniciei minha pesquisa de campo sobre brasileiros imigrantes em Los Angeles, ouvi de Telma, primeira entrevistada, a seguinte explicação: ''Após todos esses anos aqui, acabei aprendendo a ver as pessoas como os americanos: defino rapidamente o que elas são, a raça. Fico até meio envergonhada de dizer isto - e até nem acho que sou racista - mas não gosto quando as pessoas falam comigo em espanhol porque não quero que pensem que sou mexicana, ou da Guatemala, porque essas são raças que os americanos denigrem... Elas são... Como é que eu posso explicar? Os latinos são como uma classe inferior para os americanos''. As observações de Telma sobre a sua integração em Los Angeles levaram-me a também pensar sobre a minha. Eu jamais havia me sentido constrangida a esconder a minha latino-americanidade. Mas também não havia parado para pensar mais profundamente sobre o assunto: tinha certa consciência do racismo e colonialismo estruturando a vida e criando hierarquias de classe, cor, gênero e nação no mundo inteiro, mas, como estudante de pós-graduação, sentia-me beneficiada por ser da América Latina, especialmente no sentido da camaradagem com estudantes e professores oriundos ou interessados na região. Mas Telma nem estava usando a palavra ''latino'' como abreviação de latino-americano, como entendi a princípio, e nem no sentido mais comum no Brasil, de acordo com o qual latino inclui tudo que alude às conseqüências do imperialismo romano e refere-se tanto à América Latina como aos seus colonizadores europeus. Ela estava, ao contrário, evocando outro significado, o de posição social, racismo e discriminação. Por outro lado, ela não incluiu todas as nacionalidades latino-americanas na categoria latino. Especificou mexicanos e guatemaltecos como os latinos de quem ela queria se distinguir e explicou por que: Eles são como uma classe inferior para os americanos. Ora, eu também tinha colegas mexicanos na Universidade e não os relacionava com classe inferior. Por que, então, isto acontecia tão automaticamente na experiência dela? Quarenta e seis anos, morena escura, Telma imigrou para Los Angeles em 1975 e sempre trabalhou em empregos domésticos. Mas além de um emprego típico de imigrantes latinos, ela é fisicamente mais próxima do estereótipo do camponês mexicano do que do americano branco ou negro. Assim, quando ela afirma que os latinos são considerados uma classe inferior pelos americanos, ela está claramente afirmando que, na sua integração em Los Angeles, ser classificada como latina serve apenas para reforçar as desvantagens da sua posição social. Noutras palavras, ela está encarcerada na conotação negativa do rótulo: imigrantes pobres, trabalho desqualificado e status inferior. No meu caso, acho que o rótulo evoca o pertencimento geográfico primeiro, ou seja, quando afirmo que sou brasileira, os estadunidenses não me conectam imediatamente a um destino social nos Estados Unidos. Sou cidadã do Terceiro Mundo, o que, em termos gerais, também não é grande coisa, mas não sou latina em função da aparência e lugar no mercado de trabalho. É claro que por trás dos dois sentidos paira a crença colonialista e racista da superioridade dos Estados Unidos sobre os outros países e, conseqüentemente, do homem branco sobre outras expressões de humanidade. E, no final das contas, da perspectiva da geografia neo-colonial, o estereótipo de latino está irremediavelmente ligado à posição e status da América Latina na divisão internacional de trabalho. É exatamente esse status que é transferido aos imigrantes e que permitiu ao meu amigo me questionar sobre como eu estava experimentando a vida como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Do ponto de vista do colonizador, portanto, pouco importa a nacionalidade de cada ''latino''. Brasileiro, argentino, chileno, mexicano e dominicano são todos iguais. O problema, porém, é que a utilização dos critérios da aparência e lugar no mercado de trabalho na hierarquização social não é uma exclusividade da sociedade estadunidense. Ao contrário, esses critérios funcionam com a mesma eficácia em todas as sociedades atingidas pela expansão ocidental. E aqui, ao invés de buscar exemplos longínquos, aproveito para iluminar um pouco a nossa própria realidade: a discriminação contra o nordestino no Sul e Sudeste ou contra o sertanejo nas cidades litorâneas são expressões do mesmo racismo que é tão facilmente observável nos Estados Unidos contra os latinos. Em todos esses casos, como propõem Castles & Kosack (Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe. London: Oxford University Press 1973), a discriminação racista contra o imigrante deve ser interpretada como uma conseqüência da função que ele geralmente ocupa na estrutura social e não o contrário. Assim, cor e etnia não podem ser fatores determinantes da posição social do imigrante porque esta já é definida a priori, uma vez que a imigração é motivada para suprir demandas específicas de trabalho. Ou seja, a discriminação generalizada contra os imigrantes é comparável àquela contra as classes trabalhadoras e funciona como mais um elemento na hierarquia da exploração do trabalho. Porém, uma vez que o estereótipo é construído tendo como base certo grupo étnico ou racial, todos os indivíduos identificados com ele serão tratados semelhantemente, com exceção daqueles que possuem atributos que lhes permitem ''provar'' que são exemplares distintos do conjunto. Exemplo, os latinos cuja aparência permite vinculá-los a outros grupos raciais ou étnicos podem se utilizar deste atributo para negociar a sua ''latinidade'' em outras bases, ou mesmo passar por branco, negro ou o que for possível. Por outro lado, embora com uma aparência que os vincule ao estereótipo, os latinos pertencentes às elites também conseguem negociar a sua identidade mais favoravelmente. Moral da história: os povos, as regiões, as raças e os países são mais ou menos valorizados em função da distância em que se situam em relação aos modelos propostos pelos centros de poder. Desse modo, seja como latino, nos Estados Unidos, ou nordestino, em São Paulo, a vida é sempre mais fácil para os que têm pele mais clara e mais dinheiro. Bernadete Beserra é Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Califórnia, professora da Universidade Federal do Ceará.
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terça-feira, 17 de junho de 2008
terça-feira, 20 de maio de 2008
Uma Viagem ao South Chicago Blues
(Publicado primeiro em 14/12/2007 no Portal de Literatura e Arte Cronópios)(http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=2932)
Volto à noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006, quando iniciei minha aventura de conhecer o blues para além das mais comerciais e turísticas Houses of Blues, que têm sucursais em todas as grandes cidades americanas. Sei que não estou aqui pelo blues e que o desejo de ver mais de perto esse mundo veio de entusiasmada conversa sobre o tema que tive há alguns dias com Lia, a filha de Pedro. Fiquei, desde então, meio me sentindo em dívida comigo em relação a esse aspecto tão importante da minha atração por Chicago e que eu não estava dando atenção porque completamente dedicada à missão de estudar músicos e outros artistas brasileiros que trabalham com cultura brasileira (samba, bossa-nova e capoeira). Lembrei-me que o Brian Drell, amigo judeu nascido aqui, havia me prometido uma visita a uma dessas casas clássicas de blues, localizada nas próprias neigborhoods (vizinhanças) que o produzem.
Depois de una parrillada argentina acompañada de cerveza (Buenos Aires Forever, na 939 N Ashland Av) seguimos para a zona sul de Chicago. A zona sul é a zona negra e eu não sei ainda como se distribui nela a riqueza e a miséria. Mas os negros moram, em geral, no sudoeste. Sul e oeste são quase sinônimos de negros, latinos e pobres em Chicago, com pequenas exceções. Nós moramos no Logan Square, noroeste, região em processo de valorização (gentrification). É uma mixed neigborhood (vizinhança misturada): poloneses e outros europeus do leste mais ao norte, brancos no boulevard e arredores próximos e, mais ao sudoeste, latinos de todos os tipos: porto-riquenhos, cubanos, mexicanos, brasileiros, etc).
Depois de cerca de meia hora de viagem por freeways e ruas e avenidas, finalmente chegamos na 7401 South Chicago, endereço do Lee`s Unleaded Blues, bar de blues, onde uma amiga nossa, brasileira, havia comemorado o seu último aniversário. Alguns minutos antes, já observávamos que tudo que havia ao nosso redor era negro. Meu corpo não reage à negritude americana como observo as reações dos daqui... Não incorporei ainda o medo que vem junto com a história e as ideologias que se divulgam desde o jardim da infância... Quando saímos da freeway para pegarmos a South Chicago, Brian ficou meio perdido e paramos para nos orientar com alguns jovens que estavam conversando na frente de um bar. Percebo certo receio de Brian e quero entender melhor seus sentimentos: é perigoso, ele explica. Talvez seja mesmo, mas eu não sei ainda.
Estacionamos do lado oposto ao do clube e cruzamos a larga South Chicago correndo. Estava meio friozinho e eu estava vestida meio sexy, mas não tão aconchegante... Calça jeans, blusa de malha preta de mangas compridas colada no corpo e um casaco de couro meio hippie e meio sexy, que comprei em Los Angeles na minha última viagem, e que sempre faz o maior sucesso. Ainda bem que não me vesti mais aconchegante do que isto porque o que não faltou foi aconchego e calor humano e aqui preciso repetir o que vivo dizendo: a salvação do ocidente é a sua parte cativa, explorada, sacaneada e, originalmente, não-ocidental. O que seria da história americana se não fossem os negros? Acho que todos esses brancos já teriam se suicidado de tanto tédio! Preciso confessar a minha atração pela cultura negra. Digo que é a alegria que me intriga e atrai, mas sei que não é só isto. São também outras afinidades: a dor exposta, certo descaso pela etiqueta francesa, desejo também exposto, enfim, paixão. Vejo os negros pulsando num ritmo mais vivo, mais intenso, mais desesperado e tudo isto me atrai demais.
Eu e Brian éramos os únicos forasteiros. Quando entramos tocava um rap alto na vitrola e a banda da noite, o Super Percy, estava no seu intervalo. Todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas, inclusive as do bar. Estava muito cheio e me senti meio desconfortável no início por não saber onde ir ou o que fazer. Mas logo apareceu uma cadeira no bar e uma mulher jovem (35-40?) e gorda me convidou para sentar. Senti grande carinho no seu olhar e imediatamente aceitei o convite. Talvez menos de um minuto depois o Brian já me chamava para dizer que havia encontrado uma mesa de dois lugares. Todos os frequentadores daquela noite eram negros, nas suas várias tonalidades. Fiquei já meio impressionada constatando que praticamente todas as mulheres eram gordas. Gordas e bonitas com seus penteados extremamente criativos, variando do liso aos mais diversos dreadlocks. Todas as paredes e o teto do Lee’s são pintados de preto e o piso é coberto por um carpete vermelho. Os avisos e propagandas também são vermelhos. Me senti em casa, com tudo lembrando a Paraíba e a bandeira do Nego. Estava feliz e excitada por estar finalmente conhecendo uma casa de blues numa neigborhood. Do lado esquerdo da porta da entrada fica o bar estreito e comprido, com cadeiras altas ao longo de toda a sua extensão. As mesas redondas, também altas, talvez um pouco mais altas do que o bar ficam distribuídas entre o bar e o palco, do lado direito. Na frente do palco há várias mesas – altura normal – coladas uma na outra, como se fosse um balcão em frente ao palco. Há, entre essas mesas coladas e o palco, pequeno espaço que permite à garçonete ir e vir. Enfim, sentamos.
Do nosso lado esquerdo, havia um casal, um cara jovem (30-35) gordíssimo, ar de mafioso. Mas mafioso simples, sem pulseiras ou colares. A sua namorada com cabelos lisos estava do meu lado. Do meu lado direito estava Brian e em seguida Brown Sugar. Achei Brown Sugar a maior figura da noite. Ela nos contou que estava já celebrando o seu aniversário de 52 anos que seria no dia seguinte, no sábado, ali mesmo, no Lee’s. Aquela sexta era apenas um ensaio. Brown Sugar já estava meio bêbada e contava, satisfeita, que eram 52 anos e 27 netos que ela comemorava. Eu disse: eta Brown Sugar, esses seus filhos gostam de sexo, né? Ela pôs a mão na boca fingindo surpresa e “terror” com a minha pergunta e, depois, riu. O seu sorriso me lembrou o da minha amiga Socorro Carvalho.
Brown Sugar é da minha altura (1,64m) e tem os cabelos pretos muito lisos e a combinação com a pele morena me lembra um tipo comum no nordeste brasileiro, mais indígena do que negro. Uma índia de pele escura. Vestia uma blusa clara, de alça, meio sexy, que não escondia as gorduras sobrando e a barriga. Conversava com um chiclete na boca (que me ofereceu e eu aceitei) e a voz meio enrolada de semi-embriagada. Quando o Super Percy começou a tocar ela se levantou e pegou a minha mão e a do Brian sugerindo que nos levantássemos para dançar com ela. Eu disse no seu ouvido: Brown Sugar, please don’t do that to me... I’m shy (Brown Sugar, por favor não faça isto comigo, eu fico encabulada). E ela respeitou e continuou dançando entre as mesas, estilo femme fatale, e indo em direção ao palco. Apareceu diante do palco com o microfone na mão e começou a cantar sob assobios e aplausos. Mal cantou o primeiro verso da canção e se virou para a banda reclamando que o acompanhamento não estava bom... Mais aplausos, gargalhadas e assobios. O seu jeito me lembrou os de Marinês e Elba Ramalho se comunicando com as suas bandas: intimidade e camaradagem. O Super Percy acertou o tom e Brown Sugar deu um show lindo. Foi ali que percebi que lhe faltavam alguns dentes... da frente. Mas isto não arranhava em nada o seu talento. Fico impressionada como, mesmo depois de cinco anos de convivência com o inglês, não entendo quase nada do que os cantores de blues cantam. Mas, como sempre, senti que tinha dor e profundidade. O blues sempre tem esses dois ingredientes. Enquanto cantava, ela caminhava entre as mesas e recolhia o dinheiro que lhe davam: várias notas de um dólar. É um lugar rico de blues e pobre de dólares. As doações eram todas de um dólar. Tanto as feitas a ela quanto as feitas ao Super Percy. Várias notas de um dólar.
Saiu Brown Sugar e um negro, de muletas, de uns 50-60 anos, se encostou no palco, pegou o microfone e cantou ainda mais triste e mais lindo do que ela. Ele também não tinha os dentes da frente e aquilo me angustiava do mesmo jeito que me angustia no Brasil. A música que o cara cantava era acompanhada por todo mundo, principalmente o refrão: let’s straighten up (vambora consertar isto!)... Música de sofrimento de amor. Sempre. Ou de sofrimentos com a pobreza e o racismo. O tecladista parecia um Gandhi com o espírito do Antônio Nóbrega. Baixo, magrinho, óculos de aro redondo e um cavanhaque todo branco contrastando com o seu rosto magro e negro. Movia as pernas com a mesma agilidade com que movia os dedos. O baixista era mais parado, mais forte, mais alto, óculos escuros. O baterista também cantava quando os cantores espontâneos não pegavam o microfone. Somente o guitarrista era branco: italiano, grego, qualquer coisa neste mundo global tão misturado e só claramente separado para os americanos. Cabelos longos, cortados num estilo nobreza francesa, mas também comum no mundo do rock, blues, country... O vocalista, “Super” Percy, é a própria figura do malandro: alto, negro, vestido de amarelo, pulseiras, colares, brinco e óculos escuros... Raramente subia ao palco e quando o fazia, cantava dramático, como os outros, mas também contava histórias e piadas. Eu queria ficar lá a noite inteira de tão agradável que é e de tão em casa que me senti. Mil vezes mais simpático e aconchegante do que o Ñ, onde toca o Bossa 3. Provavelmente porque no Lee’s todo mundo se conhece e tudo é muito mais vivo, real e integrado. Enquanto escrevo isto, me lembro de Caio, meu filho, e como, quando morávamos na California, ele sempre dizia para o Silas, um dos seus amigos brancos: “ei Silas, tu é branco, velho, para com essa história de achar que é negro!” Silas, branco, vivia uma permanente crise de identidade. Se via e se comportava como negro, mas não era negro. Eu me senti, ali, um pouco como o Silas: morrendo de vontade de ser negra. Como se somente a pele negra me permitisse experimentar aquele tipo de sentimento que aqueles músicos e aquelas pessoas todas expressavam com tanta propriedade. Vi, depois, no google, que o Lee’s Unleaded Blues tem em torno de 30 anos de existência e atrai, além do pessoal da vizinhança que faz blues, muitos outros chicagoanos e viajantes internacionais amantes da música. É talvez um dos clubes mais tradicionais da cidade. Tomara que eu consiga arranjar tempo para ir lá muitas outras vezes...
Volto à noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006, quando iniciei minha aventura de conhecer o blues para além das mais comerciais e turísticas Houses of Blues, que têm sucursais em todas as grandes cidades americanas. Sei que não estou aqui pelo blues e que o desejo de ver mais de perto esse mundo veio de entusiasmada conversa sobre o tema que tive há alguns dias com Lia, a filha de Pedro. Fiquei, desde então, meio me sentindo em dívida comigo em relação a esse aspecto tão importante da minha atração por Chicago e que eu não estava dando atenção porque completamente dedicada à missão de estudar músicos e outros artistas brasileiros que trabalham com cultura brasileira (samba, bossa-nova e capoeira). Lembrei-me que o Brian Drell, amigo judeu nascido aqui, havia me prometido uma visita a uma dessas casas clássicas de blues, localizada nas próprias neigborhoods (vizinhanças) que o produzem.
Depois de una parrillada argentina acompañada de cerveza (Buenos Aires Forever, na 939 N Ashland Av) seguimos para a zona sul de Chicago. A zona sul é a zona negra e eu não sei ainda como se distribui nela a riqueza e a miséria. Mas os negros moram, em geral, no sudoeste. Sul e oeste são quase sinônimos de negros, latinos e pobres em Chicago, com pequenas exceções. Nós moramos no Logan Square, noroeste, região em processo de valorização (gentrification). É uma mixed neigborhood (vizinhança misturada): poloneses e outros europeus do leste mais ao norte, brancos no boulevard e arredores próximos e, mais ao sudoeste, latinos de todos os tipos: porto-riquenhos, cubanos, mexicanos, brasileiros, etc).
Depois de cerca de meia hora de viagem por freeways e ruas e avenidas, finalmente chegamos na 7401 South Chicago, endereço do Lee`s Unleaded Blues, bar de blues, onde uma amiga nossa, brasileira, havia comemorado o seu último aniversário. Alguns minutos antes, já observávamos que tudo que havia ao nosso redor era negro. Meu corpo não reage à negritude americana como observo as reações dos daqui... Não incorporei ainda o medo que vem junto com a história e as ideologias que se divulgam desde o jardim da infância... Quando saímos da freeway para pegarmos a South Chicago, Brian ficou meio perdido e paramos para nos orientar com alguns jovens que estavam conversando na frente de um bar. Percebo certo receio de Brian e quero entender melhor seus sentimentos: é perigoso, ele explica. Talvez seja mesmo, mas eu não sei ainda.
Estacionamos do lado oposto ao do clube e cruzamos a larga South Chicago correndo. Estava meio friozinho e eu estava vestida meio sexy, mas não tão aconchegante... Calça jeans, blusa de malha preta de mangas compridas colada no corpo e um casaco de couro meio hippie e meio sexy, que comprei em Los Angeles na minha última viagem, e que sempre faz o maior sucesso. Ainda bem que não me vesti mais aconchegante do que isto porque o que não faltou foi aconchego e calor humano e aqui preciso repetir o que vivo dizendo: a salvação do ocidente é a sua parte cativa, explorada, sacaneada e, originalmente, não-ocidental. O que seria da história americana se não fossem os negros? Acho que todos esses brancos já teriam se suicidado de tanto tédio! Preciso confessar a minha atração pela cultura negra. Digo que é a alegria que me intriga e atrai, mas sei que não é só isto. São também outras afinidades: a dor exposta, certo descaso pela etiqueta francesa, desejo também exposto, enfim, paixão. Vejo os negros pulsando num ritmo mais vivo, mais intenso, mais desesperado e tudo isto me atrai demais.
Eu e Brian éramos os únicos forasteiros. Quando entramos tocava um rap alto na vitrola e a banda da noite, o Super Percy, estava no seu intervalo. Todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas, inclusive as do bar. Estava muito cheio e me senti meio desconfortável no início por não saber onde ir ou o que fazer. Mas logo apareceu uma cadeira no bar e uma mulher jovem (35-40?) e gorda me convidou para sentar. Senti grande carinho no seu olhar e imediatamente aceitei o convite. Talvez menos de um minuto depois o Brian já me chamava para dizer que havia encontrado uma mesa de dois lugares. Todos os frequentadores daquela noite eram negros, nas suas várias tonalidades. Fiquei já meio impressionada constatando que praticamente todas as mulheres eram gordas. Gordas e bonitas com seus penteados extremamente criativos, variando do liso aos mais diversos dreadlocks. Todas as paredes e o teto do Lee’s são pintados de preto e o piso é coberto por um carpete vermelho. Os avisos e propagandas também são vermelhos. Me senti em casa, com tudo lembrando a Paraíba e a bandeira do Nego. Estava feliz e excitada por estar finalmente conhecendo uma casa de blues numa neigborhood. Do lado esquerdo da porta da entrada fica o bar estreito e comprido, com cadeiras altas ao longo de toda a sua extensão. As mesas redondas, também altas, talvez um pouco mais altas do que o bar ficam distribuídas entre o bar e o palco, do lado direito. Na frente do palco há várias mesas – altura normal – coladas uma na outra, como se fosse um balcão em frente ao palco. Há, entre essas mesas coladas e o palco, pequeno espaço que permite à garçonete ir e vir. Enfim, sentamos.
Do nosso lado esquerdo, havia um casal, um cara jovem (30-35) gordíssimo, ar de mafioso. Mas mafioso simples, sem pulseiras ou colares. A sua namorada com cabelos lisos estava do meu lado. Do meu lado direito estava Brian e em seguida Brown Sugar. Achei Brown Sugar a maior figura da noite. Ela nos contou que estava já celebrando o seu aniversário de 52 anos que seria no dia seguinte, no sábado, ali mesmo, no Lee’s. Aquela sexta era apenas um ensaio. Brown Sugar já estava meio bêbada e contava, satisfeita, que eram 52 anos e 27 netos que ela comemorava. Eu disse: eta Brown Sugar, esses seus filhos gostam de sexo, né? Ela pôs a mão na boca fingindo surpresa e “terror” com a minha pergunta e, depois, riu. O seu sorriso me lembrou o da minha amiga Socorro Carvalho.
Brown Sugar é da minha altura (1,64m) e tem os cabelos pretos muito lisos e a combinação com a pele morena me lembra um tipo comum no nordeste brasileiro, mais indígena do que negro. Uma índia de pele escura. Vestia uma blusa clara, de alça, meio sexy, que não escondia as gorduras sobrando e a barriga. Conversava com um chiclete na boca (que me ofereceu e eu aceitei) e a voz meio enrolada de semi-embriagada. Quando o Super Percy começou a tocar ela se levantou e pegou a minha mão e a do Brian sugerindo que nos levantássemos para dançar com ela. Eu disse no seu ouvido: Brown Sugar, please don’t do that to me... I’m shy (Brown Sugar, por favor não faça isto comigo, eu fico encabulada). E ela respeitou e continuou dançando entre as mesas, estilo femme fatale, e indo em direção ao palco. Apareceu diante do palco com o microfone na mão e começou a cantar sob assobios e aplausos. Mal cantou o primeiro verso da canção e se virou para a banda reclamando que o acompanhamento não estava bom... Mais aplausos, gargalhadas e assobios. O seu jeito me lembrou os de Marinês e Elba Ramalho se comunicando com as suas bandas: intimidade e camaradagem. O Super Percy acertou o tom e Brown Sugar deu um show lindo. Foi ali que percebi que lhe faltavam alguns dentes... da frente. Mas isto não arranhava em nada o seu talento. Fico impressionada como, mesmo depois de cinco anos de convivência com o inglês, não entendo quase nada do que os cantores de blues cantam. Mas, como sempre, senti que tinha dor e profundidade. O blues sempre tem esses dois ingredientes. Enquanto cantava, ela caminhava entre as mesas e recolhia o dinheiro que lhe davam: várias notas de um dólar. É um lugar rico de blues e pobre de dólares. As doações eram todas de um dólar. Tanto as feitas a ela quanto as feitas ao Super Percy. Várias notas de um dólar.
Saiu Brown Sugar e um negro, de muletas, de uns 50-60 anos, se encostou no palco, pegou o microfone e cantou ainda mais triste e mais lindo do que ela. Ele também não tinha os dentes da frente e aquilo me angustiava do mesmo jeito que me angustia no Brasil. A música que o cara cantava era acompanhada por todo mundo, principalmente o refrão: let’s straighten up (vambora consertar isto!)... Música de sofrimento de amor. Sempre. Ou de sofrimentos com a pobreza e o racismo. O tecladista parecia um Gandhi com o espírito do Antônio Nóbrega. Baixo, magrinho, óculos de aro redondo e um cavanhaque todo branco contrastando com o seu rosto magro e negro. Movia as pernas com a mesma agilidade com que movia os dedos. O baixista era mais parado, mais forte, mais alto, óculos escuros. O baterista também cantava quando os cantores espontâneos não pegavam o microfone. Somente o guitarrista era branco: italiano, grego, qualquer coisa neste mundo global tão misturado e só claramente separado para os americanos. Cabelos longos, cortados num estilo nobreza francesa, mas também comum no mundo do rock, blues, country... O vocalista, “Super” Percy, é a própria figura do malandro: alto, negro, vestido de amarelo, pulseiras, colares, brinco e óculos escuros... Raramente subia ao palco e quando o fazia, cantava dramático, como os outros, mas também contava histórias e piadas. Eu queria ficar lá a noite inteira de tão agradável que é e de tão em casa que me senti. Mil vezes mais simpático e aconchegante do que o Ñ, onde toca o Bossa 3. Provavelmente porque no Lee’s todo mundo se conhece e tudo é muito mais vivo, real e integrado. Enquanto escrevo isto, me lembro de Caio, meu filho, e como, quando morávamos na California, ele sempre dizia para o Silas, um dos seus amigos brancos: “ei Silas, tu é branco, velho, para com essa história de achar que é negro!” Silas, branco, vivia uma permanente crise de identidade. Se via e se comportava como negro, mas não era negro. Eu me senti, ali, um pouco como o Silas: morrendo de vontade de ser negra. Como se somente a pele negra me permitisse experimentar aquele tipo de sentimento que aqueles músicos e aquelas pessoas todas expressavam com tanta propriedade. Vi, depois, no google, que o Lee’s Unleaded Blues tem em torno de 30 anos de existência e atrai, além do pessoal da vizinhança que faz blues, muitos outros chicagoanos e viajantes internacionais amantes da música. É talvez um dos clubes mais tradicionais da cidade. Tomara que eu consiga arranjar tempo para ir lá muitas outras vezes...
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