terça-feira, 20 de maio de 2008

Uma Viagem ao South Chicago Blues

(Publicado primeiro em 14/12/2007 no Portal de Literatura e Arte Cronópios)(http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=2932)

Volto à noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006, quando iniciei minha aventura de conhecer o blues para além das mais comerciais e turísticas Houses of Blues, que têm sucursais em todas as grandes cidades americanas. Sei que não estou aqui pelo blues e que o desejo de ver mais de perto esse mundo veio de entusiasmada conversa sobre o tema que tive há alguns dias com Lia, a filha de Pedro. Fiquei, desde então, meio me sentindo em dívida comigo em relação a esse aspecto tão importante da minha atração por Chicago e que eu não estava dando atenção porque completamente dedicada à missão de estudar músicos e outros artistas brasileiros que trabalham com cultura brasileira (samba, bossa-nova e capoeira). Lembrei-me que o Brian Drell, amigo judeu nascido aqui, havia me prometido uma visita a uma dessas casas clássicas de blues, localizada nas próprias neigborhoods (vizinhanças) que o produzem.
Depois de una parrillada argentina acompañada de cerveza (Buenos Aires Forever, na 939 N Ashland Av) seguimos para a zona sul de Chicago. A zona sul é a zona negra e eu não sei ainda como se distribui nela a riqueza e a miséria. Mas os negros moram, em geral, no sudoeste. Sul e oeste são quase sinônimos de negros, latinos e pobres em Chicago, com pequenas exceções. Nós moramos no Logan Square, noroeste, região em processo de valorização (gentrification). É uma mixed neigborhood (vizinhança misturada): poloneses e outros europeus do leste mais ao norte, brancos no boulevard e arredores próximos e, mais ao sudoeste, latinos de todos os tipos: porto-riquenhos, cubanos, mexicanos, brasileiros, etc).
Depois de cerca de meia hora de viagem por freeways e ruas e avenidas, finalmente chegamos na 7401 South Chicago, endereço do Lee`s Unleaded Blues, bar de blues, onde uma amiga nossa, brasileira, havia comemorado o seu último aniversário. Alguns minutos antes, já observávamos que tudo que havia ao nosso redor era negro. Meu corpo não reage à negritude americana como observo as reações dos daqui... Não incorporei ainda o medo que vem junto com a história e as ideologias que se divulgam desde o jardim da infância... Quando saímos da freeway para pegarmos a South Chicago, Brian ficou meio perdido e paramos para nos orientar com alguns jovens que estavam conversando na frente de um bar. Percebo certo receio de Brian e quero entender melhor seus sentimentos: é perigoso, ele explica. Talvez seja mesmo, mas eu não sei ainda.
Estacionamos do lado oposto ao do clube e cruzamos a larga South Chicago correndo. Estava meio friozinho e eu estava vestida meio sexy, mas não tão aconchegante... Calça jeans, blusa de malha preta de mangas compridas colada no corpo e um casaco de couro meio hippie e meio sexy, que comprei em Los Angeles na minha última viagem, e que sempre faz o maior sucesso. Ainda bem que não me vesti mais aconchegante do que isto porque o que não faltou foi aconchego e calor humano e aqui preciso repetir o que vivo dizendo: a salvação do ocidente é a sua parte cativa, explorada, sacaneada e, originalmente, não-ocidental. O que seria da história americana se não fossem os negros? Acho que todos esses brancos já teriam se suicidado de tanto tédio! Preciso confessar a minha atração pela cultura negra. Digo que é a alegria que me intriga e atrai, mas sei que não é só isto. São também outras afinidades: a dor exposta, certo descaso pela etiqueta francesa, desejo também exposto, enfim, paixão. Vejo os negros pulsando num ritmo mais vivo, mais intenso, mais desesperado e tudo isto me atrai demais.
Eu e Brian éramos os únicos forasteiros. Quando entramos tocava um rap alto na vitrola e a banda da noite, o Super Percy, estava no seu intervalo. Todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas, inclusive as do bar. Estava muito cheio e me senti meio desconfortável no início por não saber onde ir ou o que fazer. Mas logo apareceu uma cadeira no bar e uma mulher jovem (35-40?) e gorda me convidou para sentar. Senti grande carinho no seu olhar e imediatamente aceitei o convite. Talvez menos de um minuto depois o Brian já me chamava para dizer que havia encontrado uma mesa de dois lugares. Todos os frequentadores daquela noite eram negros, nas suas várias tonalidades. Fiquei já meio impressionada constatando que praticamente todas as mulheres eram gordas. Gordas e bonitas com seus penteados extremamente criativos, variando do liso aos mais diversos dreadlocks. Todas as paredes e o teto do Lee’s são pintados de preto e o piso é coberto por um carpete vermelho. Os avisos e propagandas também são vermelhos. Me senti em casa, com tudo lembrando a Paraíba e a bandeira do Nego. Estava feliz e excitada por estar finalmente conhecendo uma casa de blues numa neigborhood. Do lado esquerdo da porta da entrada fica o bar estreito e comprido, com cadeiras altas ao longo de toda a sua extensão. As mesas redondas, também altas, talvez um pouco mais altas do que o bar ficam distribuídas entre o bar e o palco, do lado direito. Na frente do palco há várias mesas – altura normal – coladas uma na outra, como se fosse um balcão em frente ao palco. Há, entre essas mesas coladas e o palco, pequeno espaço que permite à garçonete ir e vir. Enfim, sentamos.
Do nosso lado esquerdo, havia um casal, um cara jovem (30-35) gordíssimo, ar de mafioso. Mas mafioso simples, sem pulseiras ou colares. A sua namorada com cabelos lisos estava do meu lado. Do meu lado direito estava Brian e em seguida Brown Sugar. Achei Brown Sugar a maior figura da noite. Ela nos contou que estava já celebrando o seu aniversário de 52 anos que seria no dia seguinte, no sábado, ali mesmo, no Lee’s. Aquela sexta era apenas um ensaio. Brown Sugar já estava meio bêbada e contava, satisfeita, que eram 52 anos e 27 netos que ela comemorava. Eu disse: eta Brown Sugar, esses seus filhos gostam de sexo, né? Ela pôs a mão na boca fingindo surpresa e “terror” com a minha pergunta e, depois, riu. O seu sorriso me lembrou o da minha amiga Socorro Carvalho.
Brown Sugar é da minha altura (1,64m) e tem os cabelos pretos muito lisos e a combinação com a pele morena me lembra um tipo comum no nordeste brasileiro, mais indígena do que negro. Uma índia de pele escura. Vestia uma blusa clara, de alça, meio sexy, que não escondia as gorduras sobrando e a barriga. Conversava com um chiclete na boca (que me ofereceu e eu aceitei) e a voz meio enrolada de semi-embriagada. Quando o Super Percy começou a tocar ela se levantou e pegou a minha mão e a do Brian sugerindo que nos levantássemos para dançar com ela. Eu disse no seu ouvido: Brown Sugar, please don’t do that to me... I’m shy (Brown Sugar, por favor não faça isto comigo, eu fico encabulada). E ela respeitou e continuou dançando entre as mesas, estilo femme fatale, e indo em direção ao palco. Apareceu diante do palco com o microfone na mão e começou a cantar sob assobios e aplausos. Mal cantou o primeiro verso da canção e se virou para a banda reclamando que o acompanhamento não estava bom... Mais aplausos, gargalhadas e assobios. O seu jeito me lembrou os de Marinês e Elba Ramalho se comunicando com as suas bandas: intimidade e camaradagem. O Super Percy acertou o tom e Brown Sugar deu um show lindo. Foi ali que percebi que lhe faltavam alguns dentes... da frente. Mas isto não arranhava em nada o seu talento. Fico impressionada como, mesmo depois de cinco anos de convivência com o inglês, não entendo quase nada do que os cantores de blues cantam. Mas, como sempre, senti que tinha dor e profundidade. O blues sempre tem esses dois ingredientes. Enquanto cantava, ela caminhava entre as mesas e recolhia o dinheiro que lhe davam: várias notas de um dólar. É um lugar rico de blues e pobre de dólares. As doações eram todas de um dólar. Tanto as feitas a ela quanto as feitas ao Super Percy. Várias notas de um dólar.
Saiu Brown Sugar e um negro, de muletas, de uns 50-60 anos, se encostou no palco, pegou o microfone e cantou ainda mais triste e mais lindo do que ela. Ele também não tinha os dentes da frente e aquilo me angustiava do mesmo jeito que me angustia no Brasil. A música que o cara cantava era acompanhada por todo mundo, principalmente o refrão: let’s straighten up (vambora consertar isto!)... Música de sofrimento de amor. Sempre. Ou de sofrimentos com a pobreza e o racismo. O tecladista parecia um Gandhi com o espírito do Antônio Nóbrega. Baixo, magrinho, óculos de aro redondo e um cavanhaque todo branco contrastando com o seu rosto magro e negro. Movia as pernas com a mesma agilidade com que movia os dedos. O baixista era mais parado, mais forte, mais alto, óculos escuros. O baterista também cantava quando os cantores espontâneos não pegavam o microfone. Somente o guitarrista era branco: italiano, grego, qualquer coisa neste mundo global tão misturado e só claramente separado para os americanos. Cabelos longos, cortados num estilo nobreza francesa, mas também comum no mundo do rock, blues, country... O vocalista, “Super” Percy, é a própria figura do malandro: alto, negro, vestido de amarelo, pulseiras, colares, brinco e óculos escuros... Raramente subia ao palco e quando o fazia, cantava dramático, como os outros, mas também contava histórias e piadas. Eu queria ficar lá a noite inteira de tão agradável que é e de tão em casa que me senti. Mil vezes mais simpático e aconchegante do que o Ñ, onde toca o Bossa 3. Provavelmente porque no Lee’s todo mundo se conhece e tudo é muito mais vivo, real e integrado. Enquanto escrevo isto, me lembro de Caio, meu filho, e como, quando morávamos na California, ele sempre dizia para o Silas, um dos seus amigos brancos: “ei Silas, tu é branco, velho, para com essa história de achar que é negro!” Silas, branco, vivia uma permanente crise de identidade. Se via e se comportava como negro, mas não era negro. Eu me senti, ali, um pouco como o Silas: morrendo de vontade de ser negra. Como se somente a pele negra me permitisse experimentar aquele tipo de sentimento que aqueles músicos e aquelas pessoas todas expressavam com tanta propriedade. Vi, depois, no google, que o Lee’s Unleaded Blues tem em torno de 30 anos de existência e atrai, além do pessoal da vizinhança que faz blues, muitos outros chicagoanos e viajantes internacionais amantes da música. É talvez um dos clubes mais tradicionais da cidade. Tomara que eu consiga arranjar tempo para ir lá muitas outras vezes...

3 comentários:

josé leite netto disse...

berna adorei esse texto eu já o havia lido na cronopios. muito bom

parabens e aqui nos sites blogger é por onde vomitamos nossas poéticas hurbanizadas enfeitiçadas de alegria e marginalidade. Opa! perdão vc é academica. riiis

Bruxa disse...

Berna querida: Esse texto é maravilhoso e merecia estar nos melhores livros de crônicas. Você, alem de escrever muito bem, expõe seus sentimentos com riqueza de detalhes. Li mais de uma vez e parecía-me estar vendo aquelas pessoas. Até a fumaça dos cigarros (da qual não falas) dentro do bar eu percebi. Sua descrição é tão perfeita que fecho os olhos e visualizo os movimentos e ações que descreves. Parabéns não apenas pelo texto primoroso, mas pelos sentimentos que expressas, que deixas extravasar de teu coração sensível e amoroso com os seres humanos. Tive uma experiência parecida - longe da riqueza desta que descreves - em Nova Orleans, nos anos 60, no Latin Square de lá. Fico imaginando como estará isso agora depois do Catrina, mas acredito que um povo, apesar de pobre, mas criativo e alegre como o povo de lá, já tenha se recomposto e não tenha perdido sua natural alegria e seu maravilhoso dom para a música. Desejaria poder viver momentos como este novamente. Obrigada pelo texto. Considero um presente

Suellen disse...

Oi Bernadete, meu nome é Suellen e eu sou cunhada do Cezanne, seu aluno.
Foi ele quem me falou da sua viagem a Chicago e do seu post.
Fiquei com certa inveja (boa é claro), sou adoradora do Blues e um dos meus maiores sonhos é poder sentar a mesa de um Bar de Blues em Chicago e sentir, mais do que já sinto, esse estilo maravilhoso de origem negra e tão intenso!
Adorei seu texto e se eu tivesse colocado uma trilha sonora em quanto lia-o pode ter certeza que seria como viver o momento! Enquanto não realizo meu sonho, vou curtindo o Blues aqui em Fortaleza mesmo, nas casas de Blues e bares com os "bluseiros cearenses" super acolhedores!
Abraço!