quinta-feira, 31 de julho de 2008

Apocalíptica Califórnia




Riverside, Califórnia, 30 de julho de 2008
São 11:27. Estou no Roasters Coffee, o famoso café onde geralmente encontrava colegas e professores nos meus tempo de doutoranda aqui, na Universidade da Califórnia, Riverside. Lembro-me que ele tinha um outro nome e mudou depois que mudou de dono. Prefiro este café a qualquer Starbucks que tenha entrado aqui ou em qualquer cidade. A música, sempre jazz, é baixa e agradável. Muito diferente do Starbucks do Logan Boulevard (Chicago), que era uma barulheira danada e eu passava mais tempo pedindo para baixar o som do que concentrada no que queria fazer.

Vim aqui para me encontrar com Alfredo M, professor da UCR, advogado, que, em 1998, defendeu meu caríssimo filho Caio Brito contra a Sra. Tena Petix, diretora da Highland Elementary School. Ela o acusava de portar armas perigosas e sugeria que ele fosse expulso da escola. A arma perigosa era uma laminazinha de apontador que ele havia desparafusado da parte plástica e que mantinha escondida na sua carteira até que Tony, um colega de classe, o viu com ela e se motivou a também trazer uma lâmina para a escola. Excitado com o novo brinquedo, Tony cortava tudo ao seu redor e acabou por também se cortar. Foi o sangue dele que chamou a atenção da professora para a “arma”. Tony, não suportando o problema sozinho, denunciou Caio: ele também possuía uma lâmina. Foi aí que tudo começou. Na verdade, de acordo com Caio, “tudo começou com um apontador azul...” (it all started with a blue pencil sharpener). Em apenas duas ou três semanas descobrimos mais sobre a cultura e o sistema legal californiano do que ao longo dos primeiros quatro anos. A diretora, após acusar Caio e Tony de portarem armas perigosas, sugeria que os dois fossem expulsos do sistema de escola pública de Riverside. Não era apenas a expulsão daquela escola, mas de qualquer outra escola pública do município.

Alfredo M, amigo de Adriana, outra amiga, defendeu o Caio. Foi nessa circunstância que nos conhecemos. Eu gostava de várias coisas nele: a simplicidade, primeiro. Ele não parecia o homem importante que era. Conversava com Caio como se os dois fossem da mesma idade e, principalmente, parecia se divertir muito com toda a história, o que nos tranquilizava bastante. Havia uma superioridade intransponível na sua aparente simplicidade. É assim que o enxergo até hoje, mas hoje vejo muito mais. Depois do caso do Caio encontrei-o uma ou duas vezes, casualmente. Lembro-me que eu e Jeannie o convidamos para a minha festa de despedida, em 2000, quando eu estava voltando para o Brasil. Ele não foi. Uns dois anos depois, outra amiga, Maria Talamantes, contou-me que ele também havia defendido seu filho.

Ano passado, quando vim para o casamento da Kel, precisei consultá-lo a respeito de dúvidas sobre a ajustes no status de imigrante dela. Encontramo-nos aqui neste mesmo café. Ele me contou um pouco de si, do que andava fazendo, escrevendo, pensando. Eu também falei sobre mim e os meus planos próximos. Mas a nossa conversa girou mais em torno do tema da escrita: acadêmica e literária. Ele falava de si como se de uma personagem da sua fantasia. De um jeito que me do fluxo das minhas próprias etnografias ou diários de viagens. Ele me contava que estava escrevendo um livro sobre os casos mais interessantes e absurdos que defendeu e achava que o caso do Caio merecia um espaço nele. Pediu-me para ajudá-lo a lembrar dos detalhes do caso. Eu me lembrava de pouca coisa, mas lembrava de algo importante: que imediatamente após o julgamento, eu, Sérgio e Adriana, nossa amiga, entrevistamos o Caio sobre todos os detalhes possíveis do caso. Prometi-lhe que transcreveria a fita e lhe enviaria o texto.

Trocamos alguns emails sobre o caso porque eu havia encontrado anotações interessantes sobre ele no meu próprio diário. As cobranças da vida no Brasil me fizeram rapidamente esquecer a promessa feita até que há uns dois ou três meses precisei dele outra vez porque Kel estava tendo problemas com o processo do seu pedido de greencard.

Escrevi-lhe um email em que falava dos problemas da Kel e me desculpava pela promessa não cumprida. Mas insistia que, então, cumpriria. A promessa foi refeita no mesmo período em que os cupins começaram a comer meus livros. Tudo estava desarrumado e era difícil encontrar seja lá o que fosse. Procurei a tal da fita da entrevista em tudo que era buraco possível e não encontrei. Há umas três semanas, finalmente encontrei a pasta onde havia arquivado os principais documentos do processo do Caio. Foi extraordinário porque havia vários depoimentos e tanta coisa... Copiei um dos depoimentos do Caio e enviei para ele com cópia para todos os envolvidos, Sérgio, Lucas, Kel e o próprio Caio. Aquele depoimento do Caio nos levava a revisitar instantes importantes da nossa vida familiar aqui, em Riverside.

Alfredo não respondeu esse email com o depoimento que eu achara tão precioso. Reenviei, insistindo numa resposta para a consulta que fizera sobre o problema da Kel e chamando a atenção para o depoimento que ele não havia comentado. Ele respondeu a questão que eu fizera sobre Kel e continuou alheio ao material “literário” que eu lhe havia enviado. Fiquei meio chateada, mas não exatamente numa posição em que podia reclamar da sua falta de atenção, afinal, eu estava outra vez lhe pedindo favores. Sim, claro, ele jamais cobrou nada pela defesa do Caio. Fazia parte do seu ativismo de “latino”.

Deixei para lá a minha comunicação com ele e fui me concentrar no meu cotidiano de final de férias. Tanta coisa para fazer: o livro da pesquisa de Chicago para o qual eu tinha finalmente encontrado um caminho; a minha vida de blogueira que começava a frutificar e outras “viagens” em que eu me envolvia naqueles dias. Estava já meio perdida no meu “egoísmo produtivo” quando Sérgio me convocou para uma missão: visitar a Kel. Usei os argumentos que podia contra a idéia, mas o mais importante parecia mesmo o preço das passagens. No mínimo 40% mais caras do que em baixa estação. Eu poderia vir em setembro, depois das conferências em Jericoacoara e Florianópolis. Mas Sérgio insistia que a Kel precisava de ajuda agora e arranjou um argumento difícil de derrubar: ele pagaria as passagens. Eu não podia fazer outra coisa que não fosse arrumar as malas. Assim, depois de três conexões e trinta e duas horas de viagem, cheguei exausta, mas feliz, em Riverside, minha “pátria chica”, como diz o meu amigo, Jan Rus.
Volto a Alfredo M. Quando cheguei aqui ele já me esperava. Achei-o muito mais jovem do que das outras vezes e, antes mesmo de nos cumprimentarmos com o abraço americano e os beijinhos brasileiros de praxe, fui dizendo: “Alfredo, nunca o vi tão jovem!”

Acho que foi o meu excesso que o levou a buscar explicações para a sua aparência atual. Diz-me que está de fato mais magro e nunca esteve em tão boa forma. Aproveito e lhe pergunto se é casado. Na verdade, quero perguntar se ele continua casado. Ele responde que sim, mas não acha que é uma boa resposta. Acha que a minha pergunta tem mil sentidos. Que quando responde “sim, sou casado” está construindo uma barreira entre nós que, de fato, não existe. Então, corrige: “sou casado, mas sou um homem livre.” E esclarece que não se refere a liberdade sexual ou coisa do tipo: é algo mais vasto. E conta como chegou aos sentimentos e impressões de agora. Me adverte para o fato de que é possível que eu o tome como louco, uma vez que o que me conta não é usual.

(São já duas horas da tarde e me dou conta de que estou aqui há quase seis horas: escrevendo estas anotações, dando telefonemas, respondendo emails... As mesas e poltronas que estavam vazias quando cheguei, estão agora todas ocupadas. Queria entender melhor a economia desses cafés. Como será que sobrevivem? Eu, por exemplo, estou aqui por quase seis horas, pedi um copo de água com gelo, que é de graça, estou com o meu computador ligado na tomada deles, usando a internet, fui ao banheiro umas quatro ou cinco vezes e paguei apenas por dois café e dois cookies, que custaram todos uns 5 dólares).

Acho nossas conversas sempre muito agradáveis e engraçadas. Encanta-me que com tanto livro escrito mantenha a mesma simplicidade e espontaneidade de onze anos atrás. Mas tenta me convencer de que estou errada: o que tenho diante de mim é outro homem: mais jovem, mais sábio. Um homem que enxerga para além dos olhares e palavras. Enxerga tudo com uma clarividência de fazer inveja aos profetas. E conta-me uma das suas últimas epifanias. Há uns dois ou três meses, ficou insone. As vitaminas e outros energéticos superaram o poder dos exercícios relaxantes e outros calmantes e ele não conseguiu dormir. Ficou acordado por mais de 24 horas e foi nessa longa vigília que redescobriu o mundo e a clareza com que enxerga a si próprio e a tudo à sua volta. A vigília o fez viver a realidade em câmera lenta, como se tivesse fumado maconha. Tudo se separava, se dividia para se fazer mais inteligível. Até as cores se subdividiam em outras e mais outras numa cornucópia interminal de sensações e prazeres. Tudo se dividia, mas simultaneamente tudo também se completava, se unia e, como num juizo final privado, tudo se revelava.

Tinha uma reunião importante pouco depois de completadas as primeiras 24 horas de insônia. Pensou em desmarcar, mas achou desnecessário. Foi para a reunião. O caminho até a universidade, velho conhecido, apresentava mil e uma novidades. Precisava de uma atenção quintuplicada para dar conta de tudo que seus sentidos captavam Na reunião todos se mostraram óbvios demais. Antes de falarem já sabia tudo que seria dito, sentido, pensado. Consciente de si e dos seus limites e poderes não era absurdo se transformar numa ponte para o outro. A reunião, que podia ser uma armadilha, foi um laboratório de humanidade.

Meio matreiro, meio hesitante, meio enigmático e principalmente meio encabulado, contava-me que sua mente nunca estivera tão clara, tão limpa. Percebe hoje o mundo com uma clareza que chega a doer. Como se, ao se perceber, fosse capaz de também perceber ao mundo inteiro.
Lembrei-me do que me dissera uma vez Dedé (Aderson), amigo de Sérgio dos primeiros tempos do nosso casamento: “Berna, detesto falar contigo... A tua atenção me constrange... Sinto-me desnudado, transparente. Horrível!”

Alfredo continuava falando daquele “ele” guru, sábio, como se fosse de uma personagem. Quem estava diante de mim era tão vulnerável e limitado quanto eu. Não me senti nenhum pouco desnudada. Ou simplesmente não temi expor o que havia dentro de mim.

Benvinda à Califórnia - Welcome to California

http://www.cnn.com/2008/US/07/29/earthquake.ca/index.html#cnnSTCVideo
Riverside, Califórnia, 29 de julho de 2008
Finalmente cheguei na Califórnia. São meio-dia e catorze minutos no tempo daqui e cheguei há quase quatro dias, mas foi somente agora que aterrisei verdadeiramente, com todas as boas vindas que mereço. Estava conversando ao telefone com meu amigo Armando Gonzalez-Caban quando senti a casa inteira balançando. Estava numa local e numa posição privilegiada: sentada num sofá na sala de estar da casa de Liz (sogra da Kel). Daqui, pela janela da esquerda, vejo as Box Spring Mountains... e vejo também outras janelas e outras portas: a da cozinha para o quintal. A sensação que tive desta vez foi a de que um enorme trem estava passando por baixo dos meus pés. Tudo tremeu e não desapareceu num piscar de olhos. Depois tremeu e balançou de novo. Janelas, luminárias, móveis. Nada caiu no chão. Eu e Armando rapidamente conscientes do que se passava à nossa volta não tínhamos nada a fazer a não ser rir. Claro que se o chão tivesse se aberto diante de mim eu não riria. Mas também não tenho idéia do que faria. Mas, assim, o terremoto é apenas um lembrete. Nick, marido da Kel, me disse agora que a magnitude foi de 5.8 na escala Richter. Agora todos já estão comentando sobre o assunto, inclusive a CNN: um forte terremoto atingiu o centro de Los Angeles... tão grande que foi sentido até em Las Vegas... Depois conto mais deste encontro com a Kel e com Riverside.

domingo, 27 de julho de 2008

Ainda sobre solidão & literatura

Um dos comentários à minha crônica “A Solidão do Blog” veio do Zé Netto. Ele disse mais ou menos assim: “é isso mesmo, você queria o quê? Só há escrita se houver solidão.” Ele fala claramente da solidão como recolhimento. Se o escritor não fechar as portas do mundo para ouvir ou observar o que há dentro de si, ele não produzirá nada. Verdade. Este é o primeiro passo: abre-se mão da companhia dos homens para se entregar a companhia ainda mais imprevisível, a da palavra. Silencia o mundo lá fora para dar espaço ao que sobrou dentro. Tentei conversar sobre isto com o Caio, mas ele não teve paciência para as minhas filosofações. Mas eu queria conversar mais sobre a minha dependência da palavra escrita; do ter que escrever todo dia pelo menos uma anotação no diário. Uma carta. Um poema. Um artigo de opinião. Um email. Qualquer coisa. É como se não houvesse espaço para a existência não intermediada pela palavra. Nesse sentido, escrever é praticamente sinônimo de existir. Não é vaidade, é necessidade. Uma questão de vida ou morte, como diz Cecília Meireles em Traduzir-se.
Blanchot (O espaço literário, p 12) concorda que a “obra” é solitária, mas (insiste que) “isso não significa que ela seja incomunicável, que lhe fale o leitor”. O que eu tentava dizer pro Caio era algo relacionado com as duas afirmações, algo meio paradoxal: é através da sua solidão inscrita na palavra que o escritor se comunica com o mundo. Aqui, o que parece distanciar aproxima. A solidão que “priva” o escritor do mundo produz depois a reaproximação através da obra.
A pergunta que faço a seguir é a que sempre me fizeram: por que o sacrifício? Ou seja, por que renunciar ao mundo? “Por que você não deixa esses livros pra lá e vai ‘viver’”? Como assim “viver” se pra mim o espaço existencial por excelência era o do silêncio, aconchego e agonia da “obra”? Pra mim, viver era ler; ler era viver. Depois, aos poucos, fui experimentando o mundo de que todos gostavam tanto. Permiti-me também arrebatar por ele: amigos, amores, diplomas, filhos e outros desejos. Mas, de algum modo, através da ciência ou da literatura, sempre mantinha minha fidelidade ao mundo da palavra. Indomável como é, a palavra era o meu porto seguro. Faltava namorado, amigo, pai, mãe, irmão, filho, mas a palavra estava sempre lá, quase como Deus. Não, vejo agora que a palavra não era quase como Deus, era, de fato, a sua mais legítima expressão, era Deus. No sentido cristão-ocidental: me abrigando às vezes, me chicoteando outras. As vezes doía mais a intraduzibilidade da dor em palavra do que a dor em si.
Até aqui não toquei no outro sentido de solidão que Blanchot explora na obra citada acima. Ele fala de algo que experimentei apenas superficialmente e não sei se terei coragem de fazê-lo mais intensamente: a entrega do Eu ao Ele. Blanchot, parafraseando Kafka, afirma que só há literatura quando o EU abdica de si para metamorfosear-se n’ELE. É nessa metamorfose que o autor experimenta a solidão no sentido mais usual: o de abandono. O autor não mais falará de si (EU), mas d’ELE. É nessa circunstância, dizem tanto Blanchot quanto Canetti, que surge a necessidade do diário; espaço onde o escritor ainda fala de si, do EU. Submete-se ao tempo dos homens. Confere a hora, o calendário: hoje é sexta-feira, 25 de julho. Enquanto me deixo levar por essas conjecturas de vôo, lembro-me que meus amigos dos Poemas Violados estão se preparando para entrar em cena: cumprir a programação do Dia do Escritor. Lembro-me também que Caio está entrando em sala de aula. Pronto. Estou ligada com o mundo. Esta é uma referência de realidade uma vez que metamorfoseado n’ELE, o EU entrega-se ao fascínio da ausência de tempo. Foi sobre isto que conversei com Regina, minha comadre, no nosso último encontro. Ela me dizia que não tinha condições de se dividir entre as funções de mãe, esposa e funcionária pública e a de artista. Toda vez que entra em contato com a arte teme perder a referência do mundo das obrigações domésticas, conjugais e profissionais. Eu disse pra ela que consigo conciliar as duas coisas. Mas não é verdade. Não creio que haja conciliação: vivo no limbo; não me entrego profundamente a nenhum dos dois mundos. Como seria a experiência de se entregar?

terça-feira, 22 de julho de 2008

De Rainhas e Desejos (um conto, porque a Marcionília pediu)

Não gosto de encontrá-la aqui, entre vozes, cheiros e peles itinerantes. Temo que ela se perca outra vez, antes que eu a tenha. Tê-la: páreo duro.

Não fosse o Rei (e todos esses olhares) a protegê-la da minha cobiça, já teria conquistado todos os recônditos do seu corpo. Ela me convida. Brinco com os seus lábios que se abrem devagar e deixam seus dentes afiados morderem a ponta dos meus dedos. Seguro-me forte para não me deixar levar pelos seus olhos enfeitiçados e sedentos. Mas a boca vermelha na minha pele devolve-me ao meu corpo e acorda instintos ancestrais: quero devorá-la toda.

Mas paro. Preciso começar de novo, nem que dure tudo e séculos e mais. Preciso não ceder à tentação imediata de seios que pulsam de desejo, que rogam pela minha boca, pelas minhas mãos e num descuido me carregam céleres pros quintos dos infernos. Quero ir onde quer que a nossa ânsia nos leve, mas homeopaticamente. Sem que eu perca do seu corpo nenhum espaço e deste encontro nenhum instante.

O Rei não desconfia que existo, não pressente o perigo.

Começamos tudo outra vez. Pelos pés, agora. Descalço-lhe a sandália de tirinhas pretas de couro e sinto-me como um pirata diante do seu tesouro: cada uma das pedras preciosas provoca prazer diverso e todas são fundamentais. Agora são os seus dedos que estão entre os meus dentes e este desejo de lambê-los devagarzinho, gostoso; depois ir mordendo cada vez mais forte até devorá-los. Daqui ela parece imensa, mas minhas mãos empreendem a caminhada pelas longas pernas, subindo ávidas pelas coxas. Ela se encolhe de prazer e suas coxas prendem minhas mãos, impedindo-as de ir além. Seus olhos sorriem com sua boca vermelha e sua pele vibra em uníssono me atraindo pra si. Nossos corações batem juntos, supersônicos.

O Rei sequer pressente a apoteose. Mantém-se como um Rei, impassível, confiante.
Minhas mãos se livram da armadilha das coxas e se lançam sôfregas numa guerra contra as vestes, guardiãs da sua castidade real. Nossos corpos convulsionados tremem e até a curta saia jeans parece intransponível. Os bicos dos seios, rígidos, ferem e queimam minha pele, meu rosto, minha boca. Minha ânsia não espera mais o zíper que emperra e das minhas entranhas eclode o grito primal.

Brindo silenciosamente: xeque-mate.


(Publicado na coletânea O Amor que move o Sol e outras Estrelas, Scortecci-Rebra, 2005)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Os vários mundos no meu mundo...

Estava há pouco escrevendo o meu diário que, de fato, já não mais merece esse nome porque está virando semanário, quinzenário... Mas hoje quis escrever um pouco. Mal comecei as primeiras sentenças e me dei conta de que o Caio estava na cozinha, preparando o seu café da manhã. Me perguntei se não deveria descer e ficar com ele... Aproveitar o privilégio da sua companhia. É nisto que tenho pensado ultimamente: a vida passando, meio que escorrendo entre os dedos, como água. Talvez a sabedoria seja não se angustiar com a água escorrendo, mas viver a sensação de tê-la passando entre os dedos... Sentir a sua temperatura, textura, cheiros... observar suas cores. Não adianta querer agarrá-la, prendê-la... Apenas me contentar em viver o seu fluxo. Mais ou menos isto. Acho que essa consciência da provisoriedade de tudo tornou-se mais pungente depois do casamento do Lucas. Observar, daqui da minha janela, o Lucas capinando sua horta era quase uma promessa de eternidade. Ele foi embora e eu, que já era atrapalhada, fiquei mais ainda. Mas até o galo, um símbolo de estabilidade, pirou e passou a cantar nas horas mais inesperadas e esquisitas, além de começar a fazer outras besteiras, como desafiar os cães e nos acompanhar de um lado pra outro, como um bezerro desmamado... Na verdade, a saída do Lucas encerra um ciclo. Era talvez a última conta que faltava no rosário da minha compreensão sobre a provisoriedade de tudo. Comecei a me concentrar no presente há exatos treze anos quando eu, Sérgio, Lucas, Raquel e Caio nos mudamos para Riverside, Califórnia, para o meu doutorado. Uns dois ou três meses antes da viagem comecei a prestar muita atenção em tudo que vivia e tinha em Fortaleza: as ruas tortas e esburacadas; as pessoas simpáticas, apressadas, mal-educadas; os amigos que eu ia sentir tanta falta, a Jane, o Antônio, as cores do céu do porto das Dunas, o cheiro e a brisa do mar, e Candy, a nossa cadelinha, que íamos “abandonar”. Nos meus primeiros meses em Riverside, eu vivia mais “aqui” do que lá. Somente muito aos poucos fui enxergando o lugar onde estava em carne e osso e me deixando envolver por ele. Mas foi uma luta isto. Como me envolver sem garantias? Como me “entregar” a um lugar que não era meu? Pra que gastar emoção com relações que eu já sabia limitadas, provisórias, com data marcada para acabar? Cinco anos depois, em 2000, eu vivia a situação oposta: sofria me despedindo dos amigos e paisagens conquistadas. Em cinco anos tinha me transformado noutra pessoa. Lembro-me que morria de medo de voltar para Fortaleza e perder a nova Bernadete, conquistada tão penosamente. Conversei com a minha terapeuta sobre aquele medo de voltar... especialmente de voltar a ser o que era... Ela me tranquilizou dizendo que aquele era um processo irreversível de “conversão”. E era. Eu era outra pessoa e começava a experimentar a vida de outros modos, embora me sentisse ainda meio emperrada no meu desejo de permanência de tudo. Mas não teve jeito, a minha vida não me deu trégua nos últimos treze anos... Durante esse tempo arrumei e desarrumei as malas e o coração muitas vezes... Descobri paisagens dentro e fora de mim que nem desconfiava que existissem. A vida parece mais curta agora e o mundo e os sentimentos mais vastos... Os cupins que andaram me aterrorizando nos últimos dias me levaram a descobrir que a minha casa é uma cornucópia... Um universo tão misterioso e tão profundo que eu precisaria de muitas férias como estas para desvendar... Missão impossível, quase. Muito o que fazer: vou começar saindo da frente deste computador e indo tomar café com o Caio...

domingo, 13 de julho de 2008

A Solidão do Blog

Poucos dias depois que criei este blog já estava em crise sobre a minha vocação de blogueira. Primeiro: levei anos para me decidir a criá-lo. Passei mais um tempão atrás de alguém que me ensinasse ou fizesse por mim. Esses medos de tecnologia simples, facilmente desvendável, que os filhos dominam num piscar de olhos antes mesmo de nascerem. Acabei fazendo sozinha, seguindo as instruções de uma amiga. Segundo: o que eu quero com um blog? Nem tive tempo de sonhar com blog. Sonhei com outras coisas: em ter uma coluna semanal em algum diário local ou regional, mas nunca me empenhei nisto seriamente. O máximo que fiz foi escrever ocasionalmente artigos breves, de opinião, para o jornal O Povo, daqui de Fortaleza. Só ocasionalmente escrevi alguns mais longos, mais sociológicos, sobre os temas que estudo. Mas um dia vi a página do Rubem Alves na internet e fiquei pensando em fazer alguma coisa parecida. Queria então “um lugar meu” na internet para escrever crônicas ocasionais e para divulgar mais amplamente os artigos que geralmente publico em revistas especializadas. Queria, portanto, uma webpage e não um blog. A primeira tem uma dinâmica e uma simultaneidade que o segundo não tem. De experiência com blog tinha apenas a der ler o quixotesemrumo, do Lucas (http://quixotesemrumo.wordpress.com/). E outras passagens ocasionais e superficiais num blog ou noutro que me indicavam. Por outro lado, sempre me senti avessa à idéia de usar o blog como um diário de intimidades. Para mim, diário é diário e precisa ser “secreto” para se escrever como diário. Os blogs que revelam intimidades em geral reveladas apenas para os velhos diários são outra coisa, ou seja, são uma nova categoria de escrito. Seja lá o que for, não era isso que eu queria ou precisava. Terceiro: o que eu esperava de um blog? Eu imaginava um espaço de diálogo, mais dinâmico do que o jornal. Ou semelhante. Sempre recebi feedbacks dos artigos que publiquei em jornal. E também tinha a experiência de compartilhar minhas “etnografias de viagens” que provocavam respostas que muitas vezes rendiam muitos emails, muita conversa. Enfim criei o blog e avisei pros meus amigos, aqueles para quem em geral enviava minhas “etnografias de viagens” e pedi para eles comentarem os artigos que lessem. Ao invés de comentarem no blog, abaixo do artigo, comentaram via email. Pouquíssimos comentaram no blog e apenas um ou outro desconhecido encontrou o blog por acaso (?) e comentou. Tentei responder a alguns comentários mais instigantes, mais inspiradores e cliquei sobre o nome do comentador, mas aquele clique não me levava a lugar nenhum. Resolvi me consultar com o Lucas, único blogueiro das proximidades. E ele disse que era assim mesmo: não se responde aos comentários. Quer dizer, responde-se escrevendo mais, fazendo novas postagens. Fiquei meio perdida, meio sem saber o que fazer. Aí deu uma sensação enorme de solidão. Eu, num blog, falando pra ninguém? Email e orkut ou facebook são mais animados: eu escrevo, o outro responde, ou não responde. Mas sempre sei quem respondeu e quem não respondeu. Lá eu não sei quem viu, quem não viu... Aí? Fico eu escrevendo sem saber para quem? Como um soldado da rainha, devo ignorar quem me olha, quem me conta, quem me quer? Como se tudo isso fosse pouco, ainda esse nome horroroso: blogueira? Sei não...

terça-feira, 17 de junho de 2008

De brasileiros a latinos?!?

(publicado originalmente no jornal O Povo, em 30 de julho de 2005)


Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente. Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''. Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque era também latina? Não entendi imediatamente o que estava em jogo com a sua questão. Um ano depois, quando iniciei minha pesquisa de campo sobre brasileiros imigrantes em Los Angeles, ouvi de Telma, primeira entrevistada, a seguinte explicação: ''Após todos esses anos aqui, acabei aprendendo a ver as pessoas como os americanos: defino rapidamente o que elas são, a raça. Fico até meio envergonhada de dizer isto - e até nem acho que sou racista - mas não gosto quando as pessoas falam comigo em espanhol porque não quero que pensem que sou mexicana, ou da Guatemala, porque essas são raças que os americanos denigrem... Elas são... Como é que eu posso explicar? Os latinos são como uma classe inferior para os americanos''. As observações de Telma sobre a sua integração em Los Angeles levaram-me a também pensar sobre a minha. Eu jamais havia me sentido constrangida a esconder a minha latino-americanidade. Mas também não havia parado para pensar mais profundamente sobre o assunto: tinha certa consciência do racismo e colonialismo estruturando a vida e criando hierarquias de classe, cor, gênero e nação no mundo inteiro, mas, como estudante de pós-graduação, sentia-me beneficiada por ser da América Latina, especialmente no sentido da camaradagem com estudantes e professores oriundos ou interessados na região. Mas Telma nem estava usando a palavra ''latino'' como abreviação de latino-americano, como entendi a princípio, e nem no sentido mais comum no Brasil, de acordo com o qual latino inclui tudo que alude às conseqüências do imperialismo romano e refere-se tanto à América Latina como aos seus colonizadores europeus. Ela estava, ao contrário, evocando outro significado, o de posição social, racismo e discriminação. Por outro lado, ela não incluiu todas as nacionalidades latino-americanas na categoria latino. Especificou mexicanos e guatemaltecos como os latinos de quem ela queria se distinguir e explicou por que: Eles são como uma classe inferior para os americanos. Ora, eu também tinha colegas mexicanos na Universidade e não os relacionava com classe inferior. Por que, então, isto acontecia tão automaticamente na experiência dela? Quarenta e seis anos, morena escura, Telma imigrou para Los Angeles em 1975 e sempre trabalhou em empregos domésticos. Mas além de um emprego típico de imigrantes latinos, ela é fisicamente mais próxima do estereótipo do camponês mexicano do que do americano branco ou negro. Assim, quando ela afirma que os latinos são considerados uma classe inferior pelos americanos, ela está claramente afirmando que, na sua integração em Los Angeles, ser classificada como latina serve apenas para reforçar as desvantagens da sua posição social. Noutras palavras, ela está encarcerada na conotação negativa do rótulo: imigrantes pobres, trabalho desqualificado e status inferior. No meu caso, acho que o rótulo evoca o pertencimento geográfico primeiro, ou seja, quando afirmo que sou brasileira, os estadunidenses não me conectam imediatamente a um destino social nos Estados Unidos. Sou cidadã do Terceiro Mundo, o que, em termos gerais, também não é grande coisa, mas não sou latina em função da aparência e lugar no mercado de trabalho. É claro que por trás dos dois sentidos paira a crença colonialista e racista da superioridade dos Estados Unidos sobre os outros países e, conseqüentemente, do homem branco sobre outras expressões de humanidade. E, no final das contas, da perspectiva da geografia neo-colonial, o estereótipo de latino está irremediavelmente ligado à posição e status da América Latina na divisão internacional de trabalho. É exatamente esse status que é transferido aos imigrantes e que permitiu ao meu amigo me questionar sobre como eu estava experimentando a vida como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Do ponto de vista do colonizador, portanto, pouco importa a nacionalidade de cada ''latino''. Brasileiro, argentino, chileno, mexicano e dominicano são todos iguais. O problema, porém, é que a utilização dos critérios da aparência e lugar no mercado de trabalho na hierarquização social não é uma exclusividade da sociedade estadunidense. Ao contrário, esses critérios funcionam com a mesma eficácia em todas as sociedades atingidas pela expansão ocidental. E aqui, ao invés de buscar exemplos longínquos, aproveito para iluminar um pouco a nossa própria realidade: a discriminação contra o nordestino no Sul e Sudeste ou contra o sertanejo nas cidades litorâneas são expressões do mesmo racismo que é tão facilmente observável nos Estados Unidos contra os latinos. Em todos esses casos, como propõem Castles & Kosack (Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe. London: Oxford University Press 1973), a discriminação racista contra o imigrante deve ser interpretada como uma conseqüência da função que ele geralmente ocupa na estrutura social e não o contrário. Assim, cor e etnia não podem ser fatores determinantes da posição social do imigrante porque esta já é definida a priori, uma vez que a imigração é motivada para suprir demandas específicas de trabalho. Ou seja, a discriminação generalizada contra os imigrantes é comparável àquela contra as classes trabalhadoras e funciona como mais um elemento na hierarquia da exploração do trabalho. Porém, uma vez que o estereótipo é construído tendo como base certo grupo étnico ou racial, todos os indivíduos identificados com ele serão tratados semelhantemente, com exceção daqueles que possuem atributos que lhes permitem ''provar'' que são exemplares distintos do conjunto. Exemplo, os latinos cuja aparência permite vinculá-los a outros grupos raciais ou étnicos podem se utilizar deste atributo para negociar a sua ''latinidade'' em outras bases, ou mesmo passar por branco, negro ou o que for possível. Por outro lado, embora com uma aparência que os vincule ao estereótipo, os latinos pertencentes às elites também conseguem negociar a sua identidade mais favoravelmente. Moral da história: os povos, as regiões, as raças e os países são mais ou menos valorizados em função da distância em que se situam em relação aos modelos propostos pelos centros de poder. Desse modo, seja como latino, nos Estados Unidos, ou nordestino, em São Paulo, a vida é sempre mais fácil para os que têm pele mais clara e mais dinheiro. Bernadete Beserra é Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Califórnia, professora da Universidade Federal do Ceará.

Nova Orleans: glamour atingido

(publicado originalmente no jornal O Povo, em 18 de setembro de 2005. Republicado no Cronópios, em 24 de setembro de 2005 http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=591)

Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente dar atenção à conversa: por que alimentaria pensamentos sobre destruição e morte se era início da primavera e tudo era sol, flores e alegria? Adorei Nova Orleans e senti-me em casa de um jeito que jamais me sentira em Los Angeles, Chicago ou Nova York. Nem em Miami, que é considerada mais latina do que americana, senti-me tão à vontade. Confirmei com os meus sentidos a hipótese de García Márquez de que a agroindústria açucareira, com os seus escravos e grandes propriedades, produziu uma cultura muito semelhante em três regiões da América: o nordeste do Brasil, Caribe e sul dos Estados Unidos. De fato, Salvador, São Domingos (República Dominicana) e Nova Orleans me pareceram semelhantes até no lixo e na mendicância. Lá até o inglês tem mais ginga: é mais macio e sedutor do que o falado em Nova York e Los Angeles. Mas Nova Orleans é mesmo uma cidade americana muito especial. Fundada em 1718, por um canadense de origem francesa, somente em 1803, depois de ter sido colônia da França, Espanha e, depois, França outra vez, foi comprada pelos Estados Unidos. O glamour que atrai a Nova Orleans cerca de 10 milhões de turistas anualmente é fruto dessa história distinta. O carnaval (que lá se chama Mardis Gras), o jazz, os negros (que representam 67% da população), a comida e a música cajun, a alegria, a simpatia e o calor dos seus habitantes fazem de Nova Orleans uma cidade que pouca semelhança tem com a frieza através da qual nos acostumamos a ver os Estados Unidos e os americanos. Nos meus cinco dias de visita, não vi muito além do que vêem os turistas: fiquei hospedada nas imediações do French Quarter (quarteirão francês) e, para além dos seus limites, contemplei apenas o que havia no percurso do bondinho que me levava até a Tulane University. Ali, nas imediações do Audubon Park, erguem-se as mansões burguesas: elegantes, tristes e silenciosas. O oposto do barulho, alegria, sujeira e permissividade da Bourbon Street. Gostei de tudo, mas fiquei muito intrigada com a mendicância e o lixo. Acho que mais pessoas me pediram esmola nas imediações do French Quarter, do que geralmente pedem aqui, na Beira-Mar. Ou talvez lá eu tenha ficado mais atenta para isto porque era um fato inusitado na minha experiência de Estados Unidos.
Se Nova Orleans não fosse tão peculiar talvez se aplicasse o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal, não são apenas os desabrigados do furacão Katrina que vivem a agonia das suas conseqüências. O governo Bush e a democracia americana também. Assim, para além dos prejuízos materiais e emocionais de mais de um milhão de pessoas, o desastre de Nova Orleans representa o colapso de uma idéia de Estados Unidos enraizada no mundo inteiro: o país mais poderoso do planeta nem é tão branco e nem tão democrático quanto nos fez crer. Pelo menos foram essas as duas questões em que insistiam alunos e colegas com quem conversei sobre o assunto nos últimos dias: ''mas professora, eu não sabia que havia pessoas tão pobres nos Estados Unidos, pensei que fosse mais igual... sei lá, pela pobreza e pela cor das pessoas nas reportagens, o cenário da tragédia parecia mais africano do que americano''. Mas os alunos e colegas daqui, que nunca foram aos Estados Unidos, não eram os únicos a se surpreender com a caixa de Pandora em que o Katrina havia transformado Nova Orleans. Jornais e revistas do mundo inteiro, e também dos Estados Unidos, comentavam as mesmas coisas. O sentimento geral era de que a nudez do rei havia finalmente sido revelada. Assim, o primeiro mito que a catástrofe destruiu é o de que americano é igual a branco, anglo-saxão e protestante: em Nova Orleans, Atlanta e outras cidades do sul dos Estados Unidos são os negros que preponderam, assim como em Miami e em várias cidades do Texas e da Califórnia são os chamados latinos (= cubanos, mexicanos, porto-riquenhos, colombianos, brasileiros, etc). Mas preponderam apenas do ponto de vista numérico, uma vez que depois de mais de dois séculos de integração os negros continuam excluídos da idéia de americanidade. Mas se o racismo é uma variável fundamental na compreensão dos Estados Unidos, a outra, sempre posta de lado pela sociologia americana, é a exploração entre as classes sociais. Uma observação mais cuidadosa mostra que mais do que apenas negros, são os negros pobres as principais vítimas do desastre. Outro mito cai e os Estados Unidos se aproximam da África e da América Latina não apenas em função da origem étnica de significativos contingentes da sua população, mas também da miséria socioeconômica: o american way of life não é uma garantia para todos os cidadãos americanos. Então, que democracia é a que os Estados Unidos querem impor ao mundo inteiro e em nome da qual invadiram o Iraque e outras tantas nações ao longo da sua história? O fato é que as principais vítimas da catástrofe do Katrina haviam sido atingidas antes pela dinâmica da democracia americana. Quer dizer, não eram apenas vítimas da vontade de Deus, do racismo e da incompetência (propositada, alguns dizem) na organização da operação de resgate. As políticas econômicas dos últimos governos, especialmente do Governo Bush, têm permitido que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. No ano passado, pela quarta vez consecutiva e apesar do crescimento econômico de 3,8%, o índice de pobreza nos Estados Unidos subiu para 12,7%, o que significa que havia 37 milhões de americanos vivendo abaixo da linha de pobreza. Mas a pobreza lá, como aqui, não é igualmente dividida entre as regiões, raças e etnias. O sul, particularmente os estados de Alabama, Louisiana e Mississippi, tinham as rendas médias mais baixas e, entre os grupos étnicos e raciais, eram os negros os mais pobres. Apesar disso, Bush se esforça para aumentar os cortes de impostos de ganhos de capital e convencer os americanos da importância da privatização da previdência social e da manutenção do salário mínimo em 5,15 dólares a hora, apesar da inflação anual média de 3% desde o período em que este valor foi estabelecido, em 1997. Para além do aprendizado específico sobre a sociedade americana, a tragédia de Nova Orleans demonstra que se há qualquer conteúdo democrático nas políticas capitalistas neoliberais é o de que elas não poupam sequer o seu mais importante porta voz e porto seguro, os Estados Unidos. Atingem todas as nações, raças e etnias e criam miséria e distância social tanto nas periferias quantos nos centros de poder, mas não indistintamente. Seletivas e hierárquicas justificam a acusação de racista e classista que o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, e outras lideranças negras fizeram contra o governo Bush. Assim, tão grave e dramático quanto os ataques de 11 de setembro de 2001, o choque provocado pelo Katrina atinge a sociedade americana de forma completamente diferente. Enquanto a intimidação do inimigo externo solidificava a idéia de nação e justificava a promoção da guerra contra os que a ameaçam, o Katrina revela exatamente o oposto, isto é, que a nação americana está cada dia mais ameaçada, mas não por Osama bin Laden ou Saddam Hussein: pela extrema concentração de renda e tratamento desigual dos seus cidadãos. Para os americanos vítimas das políticas neoliberais, fica cada dia mais evidente que o inimigo não está do outro lado do mundo, nem mesmo do outro lado da fronteira, mas ali, do lado, na Casa Branca.
BERNADETE BESERRA é professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Observatório das Nacionalidades

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Réquiem ao menino do sinal

Nem era um menino. Era um homem. Um palhaço. Divertido, estava sempre fazendo gracinhas, caretas. Assustava um pouco, às vezes, porque era alto, magrelo, moreno, aquele cabelão desgrenhado que ele tentava arrumar com um boné que só conseguia cobrir a metade. Eu me irritava quando ele me assustava. Mas só me assustava naqueles dias em que eu estava perdida do mundo à minha volta. Era uma bênção voltar à realidade com o seu sorriso. Mas não tinha jeito, eu me irritava primeiro, por conta do susto, e depois ria. Ele limpava o meu pára-brisas e se ia sorrindo com as moedas conquistadas. Coisa pouca: 50 centavos. Às vezes um real e aí era uma festa, com benzeção e tudo. Antônio, o rapaz que trabalha aqui, me disse há uns dias que ele havia morrido. Há duas versões para a sua morte. Antônio disse que não-sei-quem ouviu no Barra Pesada e lhe contou. O que dizem é que morreu de overdose. Era meio desarrumado, meio sujo, provavelmente se drogava também, mas era atencioso e divertido. A outra versão é que levou um tiro na testa, mas não escorreu sangue nenhum porque ele não tinha mais sangue: somente a droga corria nas suas veias. Não sei o que aconteceu e nem me interessa investigar, mas fiquei meio triste de não saber o seu nome e de outros tantos “flanelinhas” que me cumprimentam todos os dias. Que, de graça, me sorriem e, de quebra, limpam o meu pára-brisas. Queria saber o nome, mas nem sei se isto importa tanto, acho que a troca diária de gentilezas importa mais e é isto que sobrevive em mim. Isto e as tantas coisas que aprendo com eles: apenas 10% das pessoas lhes oferecem alguma compensação pelo seu trabalho. É extraordinário que com um retorno tão limitado, eles continuem sorrindo e limpando pára-brisas. Meus amigos que têm medo de “flanelinhas” (e de tudo) nunca param para refletir sobre o fato de que, em princípio, eles não nos tiram nada, apenas dão.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Aos noivos:

Fortaleza, 19 de abril de 2008
Fiquei esses dias pensando sobre o que dizer a Lucas e a Marcionília hoje, dia em que celebram a decisão de
prosseguirem reinventando a vida juntos, como amigos, amantes, companheiros, marido e mulher... Como casamento sempre evoca amor... vou falar um pouquinho sobre amor. Mas vou falar do amor entre pais e filhos. Entre mãe e filho, no caso.
De todos os amores experimentados na minha existência, o que mais me comove é o amor que sinto pelos meus filhos. E foi com Lucas que tive o privilégio de experimentar pela primeira vez esse amor. Dizem que é um amor especial porque é imediato e incondicional, mas eu não concordo com isto. Na verdade, o amor materno é um amor difícil e cheio de expectativas como todos os outros, mas é diferente dos outros porque a relação mãe e filho é uma relação mais definitiva. Não tem ex-mãe ou ex-filho. O que pode ter é mãe carinhosa, generosa, mesquinha, presente, ausente, chata, agradável e assim por diante. Eu digo que é um amor difícil porque se mistura com deveres, obrigações, projeções, cobranças... Mas é um amor que dura a vida inteira e se transforma o tempo todo.
Primeiro, somos nós, mães, que damos o leite, o carinho, a atenção, o cuidado... e os nossos medos e inseguranças também. E eles nos premiam com seus sorrisos, primeiras palavras, primeiros passos, primeiros sustos. Me lembro de duas coisas que eu curtia demais nessa aventura de ser mãe: amamentar e ler historinhas... E, por incrível que pareça, também gostava de lavar fraldas. Quer dizer, não é exatamente que eu gostava... Mas quando tinha que lavar fralda eu me envolvia completamente nessa tarefa... e até hoje me lembro do cheiro gostoso das fraldas limpinhas, voando na direção do meu rosto enquanto eu as pendurava no varal... Aí os filhos vão crescendo... E vão crescendo tão rápido que leva um tempo até nos acostumarmos que cresceram, que são grandes, adultos e que fazem as suas próprias escolhas.
Eu acho que faz pelo menos uns 8 anos que o Lucas me diz que já é grande... e eu finjo que não vejo ou não escuto... Ele me deu muitas provas da sua maturidade, independência e responsabilidade, mas eu acho que só fui mesmo prestar atenção nisso tudo quando ele virou viajante, no ano passado. Acho que foi através das suas crônicas de viagem no blog quixotesemrumo que finalmente me dei conta de que ele havia crescido e agora não apenas era um homem, era também sábio, poeta, corajoso, aventureiro... As vezes eu ficava até meio insegura e pensava: e agora? Como será que é ser mãe de um filho com tantas qualidades? Pois é, mãe e filho se transformam e continuam sendo mãe e filho... Talvez, ao contrário dos tempos de infância, os filhos vão cada vez mais ensinando aos pais. Ensinando tudo: a ser pai, mãe, amigo... e também oferecendo outras formas de enxergar o mundo.
Aí chega também a hora em que os filhos querem a sua própria vida, o seu próprio lugar. Eu preciso dizer que vou sentir muita saudade do Lucas se acordando cedinho e indo cuidar da sua horta, do seu roçado, das suas galinhas. Vou sentir muita saudade da sua ironia carinhosa, da sua chatice, da sua segurança de si... Mas preciso também dizer que estou muito feliz que ele esteja casando com a Marcionília... E eu poderia começar tudo de novo apenas para falar do meu carinho, do meu amor pela Marcionília, mas acho que é suficiente dizer que me sinto tranquila em lhe dar a mão do Lucas em casamento.