(publicado originalmente no jornal O Povo, em 30 de julho de 2005)
Entre as várias surpresas que a vida nos Estados Unidos reserva aos brasileiros imigrantes, a da nossa transformação em ''latinos'' é, sem dúvida, uma das que mais incitam a reflexão sobre o que somos e em que podemos nos transformar circunstancialmente. Descobri a minha identidade ''latina'' logo após o início do doutorado na Universidade da Califórnia, Riverside, em 1995: um amigo americano (branco) perguntou-me como estava me sentindo como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Surpreendi-me com a pergunta porque minha cor jamais havia sido posta em questão no Brasil. Achando que ele estava brincando, respondi-lhe com outra pergunta: ''O que você quer dizer com mulher de cor? Que cor é a minha?''. Ele respondeu: ''Por mim, você pode até passar por branca, mas não lhe disseram ainda que você é latina?''. Eu era branca, mas não podia reivindicar isto porque era também latina? Não entendi imediatamente o que estava em jogo com a sua questão. Um ano depois, quando iniciei minha pesquisa de campo sobre brasileiros imigrantes em Los Angeles, ouvi de Telma, primeira entrevistada, a seguinte explicação: ''Após todos esses anos aqui, acabei aprendendo a ver as pessoas como os americanos: defino rapidamente o que elas são, a raça. Fico até meio envergonhada de dizer isto - e até nem acho que sou racista - mas não gosto quando as pessoas falam comigo em espanhol porque não quero que pensem que sou mexicana, ou da Guatemala, porque essas são raças que os americanos denigrem... Elas são... Como é que eu posso explicar? Os latinos são como uma classe inferior para os americanos''. As observações de Telma sobre a sua integração em Los Angeles levaram-me a também pensar sobre a minha. Eu jamais havia me sentido constrangida a esconder a minha latino-americanidade. Mas também não havia parado para pensar mais profundamente sobre o assunto: tinha certa consciência do racismo e colonialismo estruturando a vida e criando hierarquias de classe, cor, gênero e nação no mundo inteiro, mas, como estudante de pós-graduação, sentia-me beneficiada por ser da América Latina, especialmente no sentido da camaradagem com estudantes e professores oriundos ou interessados na região. Mas Telma nem estava usando a palavra ''latino'' como abreviação de latino-americano, como entendi a princípio, e nem no sentido mais comum no Brasil, de acordo com o qual latino inclui tudo que alude às conseqüências do imperialismo romano e refere-se tanto à América Latina como aos seus colonizadores europeus. Ela estava, ao contrário, evocando outro significado, o de posição social, racismo e discriminação. Por outro lado, ela não incluiu todas as nacionalidades latino-americanas na categoria latino. Especificou mexicanos e guatemaltecos como os latinos de quem ela queria se distinguir e explicou por que: Eles são como uma classe inferior para os americanos. Ora, eu também tinha colegas mexicanos na Universidade e não os relacionava com classe inferior. Por que, então, isto acontecia tão automaticamente na experiência dela? Quarenta e seis anos, morena escura, Telma imigrou para Los Angeles em 1975 e sempre trabalhou em empregos domésticos. Mas além de um emprego típico de imigrantes latinos, ela é fisicamente mais próxima do estereótipo do camponês mexicano do que do americano branco ou negro. Assim, quando ela afirma que os latinos são considerados uma classe inferior pelos americanos, ela está claramente afirmando que, na sua integração em Los Angeles, ser classificada como latina serve apenas para reforçar as desvantagens da sua posição social. Noutras palavras, ela está encarcerada na conotação negativa do rótulo: imigrantes pobres, trabalho desqualificado e status inferior. No meu caso, acho que o rótulo evoca o pertencimento geográfico primeiro, ou seja, quando afirmo que sou brasileira, os estadunidenses não me conectam imediatamente a um destino social nos Estados Unidos. Sou cidadã do Terceiro Mundo, o que, em termos gerais, também não é grande coisa, mas não sou latina em função da aparência e lugar no mercado de trabalho. É claro que por trás dos dois sentidos paira a crença colonialista e racista da superioridade dos Estados Unidos sobre os outros países e, conseqüentemente, do homem branco sobre outras expressões de humanidade. E, no final das contas, da perspectiva da geografia neo-colonial, o estereótipo de latino está irremediavelmente ligado à posição e status da América Latina na divisão internacional de trabalho. É exatamente esse status que é transferido aos imigrantes e que permitiu ao meu amigo me questionar sobre como eu estava experimentando a vida como uma mulher de cor nos Estados Unidos. Do ponto de vista do colonizador, portanto, pouco importa a nacionalidade de cada ''latino''. Brasileiro, argentino, chileno, mexicano e dominicano são todos iguais. O problema, porém, é que a utilização dos critérios da aparência e lugar no mercado de trabalho na hierarquização social não é uma exclusividade da sociedade estadunidense. Ao contrário, esses critérios funcionam com a mesma eficácia em todas as sociedades atingidas pela expansão ocidental. E aqui, ao invés de buscar exemplos longínquos, aproveito para iluminar um pouco a nossa própria realidade: a discriminação contra o nordestino no Sul e Sudeste ou contra o sertanejo nas cidades litorâneas são expressões do mesmo racismo que é tão facilmente observável nos Estados Unidos contra os latinos. Em todos esses casos, como propõem Castles & Kosack (Immigrant Workers and Class Structure in Western Europe. London: Oxford University Press 1973), a discriminação racista contra o imigrante deve ser interpretada como uma conseqüência da função que ele geralmente ocupa na estrutura social e não o contrário. Assim, cor e etnia não podem ser fatores determinantes da posição social do imigrante porque esta já é definida a priori, uma vez que a imigração é motivada para suprir demandas específicas de trabalho. Ou seja, a discriminação generalizada contra os imigrantes é comparável àquela contra as classes trabalhadoras e funciona como mais um elemento na hierarquia da exploração do trabalho. Porém, uma vez que o estereótipo é construído tendo como base certo grupo étnico ou racial, todos os indivíduos identificados com ele serão tratados semelhantemente, com exceção daqueles que possuem atributos que lhes permitem ''provar'' que são exemplares distintos do conjunto. Exemplo, os latinos cuja aparência permite vinculá-los a outros grupos raciais ou étnicos podem se utilizar deste atributo para negociar a sua ''latinidade'' em outras bases, ou mesmo passar por branco, negro ou o que for possível. Por outro lado, embora com uma aparência que os vincule ao estereótipo, os latinos pertencentes às elites também conseguem negociar a sua identidade mais favoravelmente. Moral da história: os povos, as regiões, as raças e os países são mais ou menos valorizados em função da distância em que se situam em relação aos modelos propostos pelos centros de poder. Desse modo, seja como latino, nos Estados Unidos, ou nordestino, em São Paulo, a vida é sempre mais fácil para os que têm pele mais clara e mais dinheiro. Bernadete Beserra é Ph.D. em Antropologia pela Universidade da Califórnia, professora da Universidade Federal do Ceará.
terça-feira, 17 de junho de 2008
Nova Orleans: glamour atingido
(publicado originalmente no jornal O Povo, em 18 de setembro de 2005. Republicado no Cronópios, em 24 de setembro de 2005 http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=591)
Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente dar atenção à conversa: por que alimentaria pensamentos sobre destruição e morte se era início da primavera e tudo era sol, flores e alegria? Adorei Nova Orleans e senti-me em casa de um jeito que jamais me sentira em Los Angeles, Chicago ou Nova York. Nem em Miami, que é considerada mais latina do que americana, senti-me tão à vontade. Confirmei com os meus sentidos a hipótese de García Márquez de que a agroindústria açucareira, com os seus escravos e grandes propriedades, produziu uma cultura muito semelhante em três regiões da América: o nordeste do Brasil, Caribe e sul dos Estados Unidos. De fato, Salvador, São Domingos (República Dominicana) e Nova Orleans me pareceram semelhantes até no lixo e na mendicância. Lá até o inglês tem mais ginga: é mais macio e sedutor do que o falado em Nova York e Los Angeles. Mas Nova Orleans é mesmo uma cidade americana muito especial. Fundada em 1718, por um canadense de origem francesa, somente em 1803, depois de ter sido colônia da França, Espanha e, depois, França outra vez, foi comprada pelos Estados Unidos. O glamour que atrai a Nova Orleans cerca de 10 milhões de turistas anualmente é fruto dessa história distinta. O carnaval (que lá se chama Mardis Gras), o jazz, os negros (que representam 67% da população), a comida e a música cajun, a alegria, a simpatia e o calor dos seus habitantes fazem de Nova Orleans uma cidade que pouca semelhança tem com a frieza através da qual nos acostumamos a ver os Estados Unidos e os americanos. Nos meus cinco dias de visita, não vi muito além do que vêem os turistas: fiquei hospedada nas imediações do French Quarter (quarteirão francês) e, para além dos seus limites, contemplei apenas o que havia no percurso do bondinho que me levava até a Tulane University. Ali, nas imediações do Audubon Park, erguem-se as mansões burguesas: elegantes, tristes e silenciosas. O oposto do barulho, alegria, sujeira e permissividade da Bourbon Street. Gostei de tudo, mas fiquei muito intrigada com a mendicância e o lixo. Acho que mais pessoas me pediram esmola nas imediações do French Quarter, do que geralmente pedem aqui, na Beira-Mar. Ou talvez lá eu tenha ficado mais atenta para isto porque era um fato inusitado na minha experiência de Estados Unidos.
Se Nova Orleans não fosse tão peculiar talvez se aplicasse o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal, não são apenas os desabrigados do furacão Katrina que vivem a agonia das suas conseqüências. O governo Bush e a democracia americana também. Assim, para além dos prejuízos materiais e emocionais de mais de um milhão de pessoas, o desastre de Nova Orleans representa o colapso de uma idéia de Estados Unidos enraizada no mundo inteiro: o país mais poderoso do planeta nem é tão branco e nem tão democrático quanto nos fez crer. Pelo menos foram essas as duas questões em que insistiam alunos e colegas com quem conversei sobre o assunto nos últimos dias: ''mas professora, eu não sabia que havia pessoas tão pobres nos Estados Unidos, pensei que fosse mais igual... sei lá, pela pobreza e pela cor das pessoas nas reportagens, o cenário da tragédia parecia mais africano do que americano''. Mas os alunos e colegas daqui, que nunca foram aos Estados Unidos, não eram os únicos a se surpreender com a caixa de Pandora em que o Katrina havia transformado Nova Orleans. Jornais e revistas do mundo inteiro, e também dos Estados Unidos, comentavam as mesmas coisas. O sentimento geral era de que a nudez do rei havia finalmente sido revelada. Assim, o primeiro mito que a catástrofe destruiu é o de que americano é igual a branco, anglo-saxão e protestante: em Nova Orleans, Atlanta e outras cidades do sul dos Estados Unidos são os negros que preponderam, assim como em Miami e em várias cidades do Texas e da Califórnia são os chamados latinos (= cubanos, mexicanos, porto-riquenhos, colombianos, brasileiros, etc). Mas preponderam apenas do ponto de vista numérico, uma vez que depois de mais de dois séculos de integração os negros continuam excluídos da idéia de americanidade. Mas se o racismo é uma variável fundamental na compreensão dos Estados Unidos, a outra, sempre posta de lado pela sociologia americana, é a exploração entre as classes sociais. Uma observação mais cuidadosa mostra que mais do que apenas negros, são os negros pobres as principais vítimas do desastre. Outro mito cai e os Estados Unidos se aproximam da África e da América Latina não apenas em função da origem étnica de significativos contingentes da sua população, mas também da miséria socioeconômica: o american way of life não é uma garantia para todos os cidadãos americanos. Então, que democracia é a que os Estados Unidos querem impor ao mundo inteiro e em nome da qual invadiram o Iraque e outras tantas nações ao longo da sua história? O fato é que as principais vítimas da catástrofe do Katrina haviam sido atingidas antes pela dinâmica da democracia americana. Quer dizer, não eram apenas vítimas da vontade de Deus, do racismo e da incompetência (propositada, alguns dizem) na organização da operação de resgate. As políticas econômicas dos últimos governos, especialmente do Governo Bush, têm permitido que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. No ano passado, pela quarta vez consecutiva e apesar do crescimento econômico de 3,8%, o índice de pobreza nos Estados Unidos subiu para 12,7%, o que significa que havia 37 milhões de americanos vivendo abaixo da linha de pobreza. Mas a pobreza lá, como aqui, não é igualmente dividida entre as regiões, raças e etnias. O sul, particularmente os estados de Alabama, Louisiana e Mississippi, tinham as rendas médias mais baixas e, entre os grupos étnicos e raciais, eram os negros os mais pobres. Apesar disso, Bush se esforça para aumentar os cortes de impostos de ganhos de capital e convencer os americanos da importância da privatização da previdência social e da manutenção do salário mínimo em 5,15 dólares a hora, apesar da inflação anual média de 3% desde o período em que este valor foi estabelecido, em 1997. Para além do aprendizado específico sobre a sociedade americana, a tragédia de Nova Orleans demonstra que se há qualquer conteúdo democrático nas políticas capitalistas neoliberais é o de que elas não poupam sequer o seu mais importante porta voz e porto seguro, os Estados Unidos. Atingem todas as nações, raças e etnias e criam miséria e distância social tanto nas periferias quantos nos centros de poder, mas não indistintamente. Seletivas e hierárquicas justificam a acusação de racista e classista que o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, e outras lideranças negras fizeram contra o governo Bush. Assim, tão grave e dramático quanto os ataques de 11 de setembro de 2001, o choque provocado pelo Katrina atinge a sociedade americana de forma completamente diferente. Enquanto a intimidação do inimigo externo solidificava a idéia de nação e justificava a promoção da guerra contra os que a ameaçam, o Katrina revela exatamente o oposto, isto é, que a nação americana está cada dia mais ameaçada, mas não por Osama bin Laden ou Saddam Hussein: pela extrema concentração de renda e tratamento desigual dos seus cidadãos. Para os americanos vítimas das políticas neoliberais, fica cada dia mais evidente que o inimigo não está do outro lado do mundo, nem mesmo do outro lado da fronteira, mas ali, do lado, na Casa Branca.
BERNADETE BESERRA é professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Observatório das Nacionalidades
Quando visitei Nova Orleans em março deste ano, um morador simpático e atencioso falou-me detalhadamente sobre as possíveis conseqüências da passagem de um furacão pela cidade. Lembrei-me, na ocasião, das inúmeras vezes que ouvi explicações semelhantes sobre terremotos quando morava em Los Angeles. Minha fé e romantismo nunca me permitiram pensar no assunto por mais de alguns instantes, mesmo naqueles dias em que os tremores me deixavam mais apreensiva e com vontade de voltar correndo para Fortaleza. Mas na Califórnia não apenas se vive com a possibilidade de terremotos: todos sabem que é possível que, algum dia, aconteça um bem maior, the big one, que a separe do continente. Os habitantes de Nova Orleans e o governo americano também sabiam do risco de inundação. Mas eu, turista aprendiz, não precisava realmente dar atenção à conversa: por que alimentaria pensamentos sobre destruição e morte se era início da primavera e tudo era sol, flores e alegria? Adorei Nova Orleans e senti-me em casa de um jeito que jamais me sentira em Los Angeles, Chicago ou Nova York. Nem em Miami, que é considerada mais latina do que americana, senti-me tão à vontade. Confirmei com os meus sentidos a hipótese de García Márquez de que a agroindústria açucareira, com os seus escravos e grandes propriedades, produziu uma cultura muito semelhante em três regiões da América: o nordeste do Brasil, Caribe e sul dos Estados Unidos. De fato, Salvador, São Domingos (República Dominicana) e Nova Orleans me pareceram semelhantes até no lixo e na mendicância. Lá até o inglês tem mais ginga: é mais macio e sedutor do que o falado em Nova York e Los Angeles. Mas Nova Orleans é mesmo uma cidade americana muito especial. Fundada em 1718, por um canadense de origem francesa, somente em 1803, depois de ter sido colônia da França, Espanha e, depois, França outra vez, foi comprada pelos Estados Unidos. O glamour que atrai a Nova Orleans cerca de 10 milhões de turistas anualmente é fruto dessa história distinta. O carnaval (que lá se chama Mardis Gras), o jazz, os negros (que representam 67% da população), a comida e a música cajun, a alegria, a simpatia e o calor dos seus habitantes fazem de Nova Orleans uma cidade que pouca semelhança tem com a frieza através da qual nos acostumamos a ver os Estados Unidos e os americanos. Nos meus cinco dias de visita, não vi muito além do que vêem os turistas: fiquei hospedada nas imediações do French Quarter (quarteirão francês) e, para além dos seus limites, contemplei apenas o que havia no percurso do bondinho que me levava até a Tulane University. Ali, nas imediações do Audubon Park, erguem-se as mansões burguesas: elegantes, tristes e silenciosas. O oposto do barulho, alegria, sujeira e permissividade da Bourbon Street. Gostei de tudo, mas fiquei muito intrigada com a mendicância e o lixo. Acho que mais pessoas me pediram esmola nas imediações do French Quarter, do que geralmente pedem aqui, na Beira-Mar. Ou talvez lá eu tenha ficado mais atenta para isto porque era um fato inusitado na minha experiência de Estados Unidos.
Se Nova Orleans não fosse tão peculiar talvez se aplicasse o ditado de que Deus escreve certo por linhas tortas. Afinal, não são apenas os desabrigados do furacão Katrina que vivem a agonia das suas conseqüências. O governo Bush e a democracia americana também. Assim, para além dos prejuízos materiais e emocionais de mais de um milhão de pessoas, o desastre de Nova Orleans representa o colapso de uma idéia de Estados Unidos enraizada no mundo inteiro: o país mais poderoso do planeta nem é tão branco e nem tão democrático quanto nos fez crer. Pelo menos foram essas as duas questões em que insistiam alunos e colegas com quem conversei sobre o assunto nos últimos dias: ''mas professora, eu não sabia que havia pessoas tão pobres nos Estados Unidos, pensei que fosse mais igual... sei lá, pela pobreza e pela cor das pessoas nas reportagens, o cenário da tragédia parecia mais africano do que americano''. Mas os alunos e colegas daqui, que nunca foram aos Estados Unidos, não eram os únicos a se surpreender com a caixa de Pandora em que o Katrina havia transformado Nova Orleans. Jornais e revistas do mundo inteiro, e também dos Estados Unidos, comentavam as mesmas coisas. O sentimento geral era de que a nudez do rei havia finalmente sido revelada. Assim, o primeiro mito que a catástrofe destruiu é o de que americano é igual a branco, anglo-saxão e protestante: em Nova Orleans, Atlanta e outras cidades do sul dos Estados Unidos são os negros que preponderam, assim como em Miami e em várias cidades do Texas e da Califórnia são os chamados latinos (= cubanos, mexicanos, porto-riquenhos, colombianos, brasileiros, etc). Mas preponderam apenas do ponto de vista numérico, uma vez que depois de mais de dois séculos de integração os negros continuam excluídos da idéia de americanidade. Mas se o racismo é uma variável fundamental na compreensão dos Estados Unidos, a outra, sempre posta de lado pela sociologia americana, é a exploração entre as classes sociais. Uma observação mais cuidadosa mostra que mais do que apenas negros, são os negros pobres as principais vítimas do desastre. Outro mito cai e os Estados Unidos se aproximam da África e da América Latina não apenas em função da origem étnica de significativos contingentes da sua população, mas também da miséria socioeconômica: o american way of life não é uma garantia para todos os cidadãos americanos. Então, que democracia é a que os Estados Unidos querem impor ao mundo inteiro e em nome da qual invadiram o Iraque e outras tantas nações ao longo da sua história? O fato é que as principais vítimas da catástrofe do Katrina haviam sido atingidas antes pela dinâmica da democracia americana. Quer dizer, não eram apenas vítimas da vontade de Deus, do racismo e da incompetência (propositada, alguns dizem) na organização da operação de resgate. As políticas econômicas dos últimos governos, especialmente do Governo Bush, têm permitido que os ricos fiquem cada vez mais ricos e os pobres mais pobres. No ano passado, pela quarta vez consecutiva e apesar do crescimento econômico de 3,8%, o índice de pobreza nos Estados Unidos subiu para 12,7%, o que significa que havia 37 milhões de americanos vivendo abaixo da linha de pobreza. Mas a pobreza lá, como aqui, não é igualmente dividida entre as regiões, raças e etnias. O sul, particularmente os estados de Alabama, Louisiana e Mississippi, tinham as rendas médias mais baixas e, entre os grupos étnicos e raciais, eram os negros os mais pobres. Apesar disso, Bush se esforça para aumentar os cortes de impostos de ganhos de capital e convencer os americanos da importância da privatização da previdência social e da manutenção do salário mínimo em 5,15 dólares a hora, apesar da inflação anual média de 3% desde o período em que este valor foi estabelecido, em 1997. Para além do aprendizado específico sobre a sociedade americana, a tragédia de Nova Orleans demonstra que se há qualquer conteúdo democrático nas políticas capitalistas neoliberais é o de que elas não poupam sequer o seu mais importante porta voz e porto seguro, os Estados Unidos. Atingem todas as nações, raças e etnias e criam miséria e distância social tanto nas periferias quantos nos centros de poder, mas não indistintamente. Seletivas e hierárquicas justificam a acusação de racista e classista que o prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, e outras lideranças negras fizeram contra o governo Bush. Assim, tão grave e dramático quanto os ataques de 11 de setembro de 2001, o choque provocado pelo Katrina atinge a sociedade americana de forma completamente diferente. Enquanto a intimidação do inimigo externo solidificava a idéia de nação e justificava a promoção da guerra contra os que a ameaçam, o Katrina revela exatamente o oposto, isto é, que a nação americana está cada dia mais ameaçada, mas não por Osama bin Laden ou Saddam Hussein: pela extrema concentração de renda e tratamento desigual dos seus cidadãos. Para os americanos vítimas das políticas neoliberais, fica cada dia mais evidente que o inimigo não está do outro lado do mundo, nem mesmo do outro lado da fronteira, mas ali, do lado, na Casa Branca.
BERNADETE BESERRA é professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do Observatório das Nacionalidades
sexta-feira, 30 de maio de 2008
Réquiem ao menino do sinal
Nem era um menino. Era um homem. Um palhaço. Divertido, estava sempre fazendo gracinhas, caretas. Assustava um pouco, às vezes, porque era alto, magrelo, moreno, aquele cabelão desgrenhado que ele tentava arrumar com um boné que só conseguia cobrir a metade. Eu me irritava quando ele me assustava. Mas só me assustava naqueles dias em que eu estava perdida do mundo à minha volta. Era uma bênção voltar à realidade com o seu sorriso. Mas não tinha jeito, eu me irritava primeiro, por conta do susto, e depois ria. Ele limpava o meu pára-brisas e se ia sorrindo com as moedas conquistadas. Coisa pouca: 50 centavos. Às vezes um real e aí era uma festa, com benzeção e tudo. Antônio, o rapaz que trabalha aqui, me disse há uns dias que ele havia morrido. Há duas versões para a sua morte. Antônio disse que não-sei-quem ouviu no Barra Pesada e lhe contou. O que dizem é que morreu de overdose. Era meio desarrumado, meio sujo, provavelmente se drogava também, mas era atencioso e divertido. A outra versão é que levou um tiro na testa, mas não escorreu sangue nenhum porque ele não tinha mais sangue: somente a droga corria nas suas veias. Não sei o que aconteceu e nem me interessa investigar, mas fiquei meio triste de não saber o seu nome e de outros tantos “flanelinhas” que me cumprimentam todos os dias. Que, de graça, me sorriem e, de quebra, limpam o meu pára-brisas. Queria saber o nome, mas nem sei se isto importa tanto, acho que a troca diária de gentilezas importa mais e é isto que sobrevive em mim. Isto e as tantas coisas que aprendo com eles: apenas 10% das pessoas lhes oferecem alguma compensação pelo seu trabalho. É extraordinário que com um retorno tão limitado, eles continuem sorrindo e limpando pára-brisas. Meus amigos que têm medo de “flanelinhas” (e de tudo) nunca param para refletir sobre o fato de que, em princípio, eles não nos tiram nada, apenas dão.
quinta-feira, 22 de maio de 2008
Aos noivos:
Fortaleza, 19 de abril de 2008
Fiquei esses dias pensando sobre o que dizer a Lucas e a Marcionília hoje, dia em que celebram a decisão de
prosseguirem reinventando a vida juntos, como amigos, amantes, companheiros, marido e mulher... Como casamento sempre evoca amor... vou falar um pouquinho sobre amor. Mas vou falar do amor entre pais e filhos. Entre mãe e filho, no caso.
De todos os amores experimentados na minha existência, o que mais me comove é o amor que sinto pelos meus filhos. E foi com Lucas que tive o privilégio de experimentar pela primeira vez esse amor. Dizem que é um amor especial porque é imediato e incondicional, mas eu não concordo com isto. Na verdade, o amor materno é um amor difícil e cheio de expectativas como todos os outros, mas é diferente dos outros porque a relação mãe e filho é uma relação mais definitiva. Não tem ex-mãe ou ex-filho. O que pode ter é mãe carinhosa, generosa, mesquinha, presente, ausente, chata, agradável e assim por diante. Eu digo que é um amor difícil porque se mistura com deveres, obrigações, projeções, cobranças... Mas é um amor que dura a vida inteira e se transforma o tempo todo.
Primeiro, somos nós, mães, que damos o leite, o carinho, a atenção, o cuidado... e os nossos medos e inseguranças também. E eles nos premiam com seus sorrisos, primeiras palavras, primeiros passos, primeiros sustos. Me lembro de duas coisas que eu curtia demais nessa aventura de ser mãe: amamentar e ler historinhas... E, por incrível que pareça, também gostava de lavar fraldas. Quer dizer, não é exatamente que eu gostava... Mas quando tinha que lavar fralda eu me envolvia completamente nessa tarefa... e até hoje me lembro do cheiro gostoso das fraldas limpinhas, voando na direção do meu rosto enquanto eu as pendurava no varal... Aí os filhos vão crescendo... E vão crescendo tão rápido que leva um tempo até nos acostumarmos que cresceram, que são grandes, adultos e que fazem as suas próprias escolhas.
Eu acho que faz pelo menos uns 8 anos que o Lucas me diz que já é grande... e eu finjo que não vejo ou não escuto... Ele me deu muitas provas da sua maturidade, independência e responsabilidade, mas eu acho que só fui mesmo prestar atenção nisso tudo quando ele virou viajante, no ano passado. Acho que foi através das suas crônicas de viagem no blog quixotesemrumo que finalmente me dei conta de que ele havia crescido e agora não apenas era um homem, era também sábio, poeta, corajoso, aventureiro... As vezes eu ficava até meio insegura e pensava: e agora? Como será que é ser mãe de um filho com tantas qualidades? Pois é, mãe e filho se transformam e continuam sendo mãe e filho... Talvez, ao contrário dos tempos de infância, os filhos vão cada vez mais ensinando aos pais. Ensinando tudo: a ser pai, mãe, amigo... e também oferecendo outras formas de enxergar o mundo.
Aí chega também a hora em que os filhos querem a sua própria vida, o seu próprio lugar. Eu preciso dizer que vou sentir muita saudade do Lucas se acordando cedinho e indo cuidar da sua horta, do seu roçado, das suas galinhas. Vou sentir muita saudade da sua ironia carinhosa, da sua chatice, da sua segurança de si... Mas preciso também dizer que estou muito feliz que ele esteja casando com a Marcionília... E eu poderia começar tudo de novo apenas para falar do meu carinho, do meu amor pela Marcionília, mas acho que é suficiente dizer que me sinto tranquila em lhe dar a mão do Lucas em casamento.
Fiquei esses dias pensando sobre o que dizer a Lucas e a Marcionília hoje, dia em que celebram a decisão de
prosseguirem reinventando a vida juntos, como amigos, amantes, companheiros, marido e mulher... Como casamento sempre evoca amor... vou falar um pouquinho sobre amor. Mas vou falar do amor entre pais e filhos. Entre mãe e filho, no caso.
De todos os amores experimentados na minha existência, o que mais me comove é o amor que sinto pelos meus filhos. E foi com Lucas que tive o privilégio de experimentar pela primeira vez esse amor. Dizem que é um amor especial porque é imediato e incondicional, mas eu não concordo com isto. Na verdade, o amor materno é um amor difícil e cheio de expectativas como todos os outros, mas é diferente dos outros porque a relação mãe e filho é uma relação mais definitiva. Não tem ex-mãe ou ex-filho. O que pode ter é mãe carinhosa, generosa, mesquinha, presente, ausente, chata, agradável e assim por diante. Eu digo que é um amor difícil porque se mistura com deveres, obrigações, projeções, cobranças... Mas é um amor que dura a vida inteira e se transforma o tempo todo.
Primeiro, somos nós, mães, que damos o leite, o carinho, a atenção, o cuidado... e os nossos medos e inseguranças também. E eles nos premiam com seus sorrisos, primeiras palavras, primeiros passos, primeiros sustos. Me lembro de duas coisas que eu curtia demais nessa aventura de ser mãe: amamentar e ler historinhas... E, por incrível que pareça, também gostava de lavar fraldas. Quer dizer, não é exatamente que eu gostava... Mas quando tinha que lavar fralda eu me envolvia completamente nessa tarefa... e até hoje me lembro do cheiro gostoso das fraldas limpinhas, voando na direção do meu rosto enquanto eu as pendurava no varal... Aí os filhos vão crescendo... E vão crescendo tão rápido que leva um tempo até nos acostumarmos que cresceram, que são grandes, adultos e que fazem as suas próprias escolhas.
Eu acho que faz pelo menos uns 8 anos que o Lucas me diz que já é grande... e eu finjo que não vejo ou não escuto... Ele me deu muitas provas da sua maturidade, independência e responsabilidade, mas eu acho que só fui mesmo prestar atenção nisso tudo quando ele virou viajante, no ano passado. Acho que foi através das suas crônicas de viagem no blog quixotesemrumo que finalmente me dei conta de que ele havia crescido e agora não apenas era um homem, era também sábio, poeta, corajoso, aventureiro... As vezes eu ficava até meio insegura e pensava: e agora? Como será que é ser mãe de um filho com tantas qualidades? Pois é, mãe e filho se transformam e continuam sendo mãe e filho... Talvez, ao contrário dos tempos de infância, os filhos vão cada vez mais ensinando aos pais. Ensinando tudo: a ser pai, mãe, amigo... e também oferecendo outras formas de enxergar o mundo.
Aí chega também a hora em que os filhos querem a sua própria vida, o seu próprio lugar. Eu preciso dizer que vou sentir muita saudade do Lucas se acordando cedinho e indo cuidar da sua horta, do seu roçado, das suas galinhas. Vou sentir muita saudade da sua ironia carinhosa, da sua chatice, da sua segurança de si... Mas preciso também dizer que estou muito feliz que ele esteja casando com a Marcionília... E eu poderia começar tudo de novo apenas para falar do meu carinho, do meu amor pela Marcionília, mas acho que é suficiente dizer que me sinto tranquila em lhe dar a mão do Lucas em casamento.
quarta-feira, 21 de maio de 2008
Ala F (primeiro ensaio)
A travessia da ala F
É uma viagem mais longa do que a da Patagônia ao Alaska
Recosto-me num ombro imaginário
E vejo tudo:
O que vivi
O que temi
O que comi e não digeri
Porque a dor não se digere assim
Leva anos, séculos,
Expressões inúteis
Ladrilhos escorregadios
Cacos de espelhos colados na parede
Água gelada acordando meu corpo anestesiado
A lucidez é um fiapo
Que me envolve como uma sentença de morte
Pulsos cortados presos à cama
Enquanto a vida homeopaticamente se esvai pelas frestas da janela inexistente
Sussurros de camudongos enchem meu peito de pavor
Trazem fantasmas, sombras, medos
Um dia entrarão e roerão tudo
Teus olhos também
Nada será poupado, nem a lembrança
Fragmentos de sentidos se espalham no silêncio do poema
O ruído: pesadelo semântico
O ruído: avatar da miséria
O ruído: corte na alma
Para além do ruído, a palavra medrosa, o deserto
O espelho descobrindo continentes esquecidos
As montanhas longínquas do norte
Emolduram fragmentos de desejo
que rodopiam em volta de uma promessa não cumprida
os dedos de A. se enrodilham nos meus cabelos soltos
Caminho pelas minhas veredas inúteis
E vejo que não há onde se esconder
Todos os cômodos estão tomados de dor
De escuridão
Nenhum vagalume... E eu prossigo
Nenhuma esperança ao redor: apenas sangue
O quarto inteiro cheio de sangue
e borboletas
É uma viagem mais longa do que a da Patagônia ao Alaska
Recosto-me num ombro imaginário
E vejo tudo:
O que vivi
O que temi
O que comi e não digeri
Porque a dor não se digere assim
Leva anos, séculos,
Expressões inúteis
Ladrilhos escorregadios
Cacos de espelhos colados na parede
Água gelada acordando meu corpo anestesiado
A lucidez é um fiapo
Que me envolve como uma sentença de morte
Pulsos cortados presos à cama
Enquanto a vida homeopaticamente se esvai pelas frestas da janela inexistente
Sussurros de camudongos enchem meu peito de pavor
Trazem fantasmas, sombras, medos
Um dia entrarão e roerão tudo
Teus olhos também
Nada será poupado, nem a lembrança
Fragmentos de sentidos se espalham no silêncio do poema
O ruído: pesadelo semântico
O ruído: avatar da miséria
O ruído: corte na alma
Para além do ruído, a palavra medrosa, o deserto
O espelho descobrindo continentes esquecidos
As montanhas longínquas do norte
Emolduram fragmentos de desejo
que rodopiam em volta de uma promessa não cumprida
os dedos de A. se enrodilham nos meus cabelos soltos
Caminho pelas minhas veredas inúteis
E vejo que não há onde se esconder
Todos os cômodos estão tomados de dor
De escuridão
Nenhum vagalume... E eu prossigo
Nenhuma esperança ao redor: apenas sangue
O quarto inteiro cheio de sangue
e borboletas
Roteiro para o homem não se perder por atalhos
A Álvaro
Inda num ponto
Da ponta da faca
Inda na feira dos mortos
Inda num resto de fôlego
O grito do ser.
terça-feira, 20 de maio de 2008
Uma Viagem ao South Chicago Blues
(Publicado primeiro em 14/12/2007 no Portal de Literatura e Arte Cronópios)(http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=2932)
Volto à noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006, quando iniciei minha aventura de conhecer o blues para além das mais comerciais e turísticas Houses of Blues, que têm sucursais em todas as grandes cidades americanas. Sei que não estou aqui pelo blues e que o desejo de ver mais de perto esse mundo veio de entusiasmada conversa sobre o tema que tive há alguns dias com Lia, a filha de Pedro. Fiquei, desde então, meio me sentindo em dívida comigo em relação a esse aspecto tão importante da minha atração por Chicago e que eu não estava dando atenção porque completamente dedicada à missão de estudar músicos e outros artistas brasileiros que trabalham com cultura brasileira (samba, bossa-nova e capoeira). Lembrei-me que o Brian Drell, amigo judeu nascido aqui, havia me prometido uma visita a uma dessas casas clássicas de blues, localizada nas próprias neigborhoods (vizinhanças) que o produzem.
Depois de una parrillada argentina acompañada de cerveza (Buenos Aires Forever, na 939 N Ashland Av) seguimos para a zona sul de Chicago. A zona sul é a zona negra e eu não sei ainda como se distribui nela a riqueza e a miséria. Mas os negros moram, em geral, no sudoeste. Sul e oeste são quase sinônimos de negros, latinos e pobres em Chicago, com pequenas exceções. Nós moramos no Logan Square, noroeste, região em processo de valorização (gentrification). É uma mixed neigborhood (vizinhança misturada): poloneses e outros europeus do leste mais ao norte, brancos no boulevard e arredores próximos e, mais ao sudoeste, latinos de todos os tipos: porto-riquenhos, cubanos, mexicanos, brasileiros, etc).
Depois de cerca de meia hora de viagem por freeways e ruas e avenidas, finalmente chegamos na 7401 South Chicago, endereço do Lee`s Unleaded Blues, bar de blues, onde uma amiga nossa, brasileira, havia comemorado o seu último aniversário. Alguns minutos antes, já observávamos que tudo que havia ao nosso redor era negro. Meu corpo não reage à negritude americana como observo as reações dos daqui... Não incorporei ainda o medo que vem junto com a história e as ideologias que se divulgam desde o jardim da infância... Quando saímos da freeway para pegarmos a South Chicago, Brian ficou meio perdido e paramos para nos orientar com alguns jovens que estavam conversando na frente de um bar. Percebo certo receio de Brian e quero entender melhor seus sentimentos: é perigoso, ele explica. Talvez seja mesmo, mas eu não sei ainda.
Estacionamos do lado oposto ao do clube e cruzamos a larga South Chicago correndo. Estava meio friozinho e eu estava vestida meio sexy, mas não tão aconchegante... Calça jeans, blusa de malha preta de mangas compridas colada no corpo e um casaco de couro meio hippie e meio sexy, que comprei em Los Angeles na minha última viagem, e que sempre faz o maior sucesso. Ainda bem que não me vesti mais aconchegante do que isto porque o que não faltou foi aconchego e calor humano e aqui preciso repetir o que vivo dizendo: a salvação do ocidente é a sua parte cativa, explorada, sacaneada e, originalmente, não-ocidental. O que seria da história americana se não fossem os negros? Acho que todos esses brancos já teriam se suicidado de tanto tédio! Preciso confessar a minha atração pela cultura negra. Digo que é a alegria que me intriga e atrai, mas sei que não é só isto. São também outras afinidades: a dor exposta, certo descaso pela etiqueta francesa, desejo também exposto, enfim, paixão. Vejo os negros pulsando num ritmo mais vivo, mais intenso, mais desesperado e tudo isto me atrai demais.
Eu e Brian éramos os únicos forasteiros. Quando entramos tocava um rap alto na vitrola e a banda da noite, o Super Percy, estava no seu intervalo. Todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas, inclusive as do bar. Estava muito cheio e me senti meio desconfortável no início por não saber onde ir ou o que fazer. Mas logo apareceu uma cadeira no bar e uma mulher jovem (35-40?) e gorda me convidou para sentar. Senti grande carinho no seu olhar e imediatamente aceitei o convite. Talvez menos de um minuto depois o Brian já me chamava para dizer que havia encontrado uma mesa de dois lugares. Todos os frequentadores daquela noite eram negros, nas suas várias tonalidades. Fiquei já meio impressionada constatando que praticamente todas as mulheres eram gordas. Gordas e bonitas com seus penteados extremamente criativos, variando do liso aos mais diversos dreadlocks. Todas as paredes e o teto do Lee’s são pintados de preto e o piso é coberto por um carpete vermelho. Os avisos e propagandas também são vermelhos. Me senti em casa, com tudo lembrando a Paraíba e a bandeira do Nego. Estava feliz e excitada por estar finalmente conhecendo uma casa de blues numa neigborhood. Do lado esquerdo da porta da entrada fica o bar estreito e comprido, com cadeiras altas ao longo de toda a sua extensão. As mesas redondas, também altas, talvez um pouco mais altas do que o bar ficam distribuídas entre o bar e o palco, do lado direito. Na frente do palco há várias mesas – altura normal – coladas uma na outra, como se fosse um balcão em frente ao palco. Há, entre essas mesas coladas e o palco, pequeno espaço que permite à garçonete ir e vir. Enfim, sentamos.
Do nosso lado esquerdo, havia um casal, um cara jovem (30-35) gordíssimo, ar de mafioso. Mas mafioso simples, sem pulseiras ou colares. A sua namorada com cabelos lisos estava do meu lado. Do meu lado direito estava Brian e em seguida Brown Sugar. Achei Brown Sugar a maior figura da noite. Ela nos contou que estava já celebrando o seu aniversário de 52 anos que seria no dia seguinte, no sábado, ali mesmo, no Lee’s. Aquela sexta era apenas um ensaio. Brown Sugar já estava meio bêbada e contava, satisfeita, que eram 52 anos e 27 netos que ela comemorava. Eu disse: eta Brown Sugar, esses seus filhos gostam de sexo, né? Ela pôs a mão na boca fingindo surpresa e “terror” com a minha pergunta e, depois, riu. O seu sorriso me lembrou o da minha amiga Socorro Carvalho.
Brown Sugar é da minha altura (1,64m) e tem os cabelos pretos muito lisos e a combinação com a pele morena me lembra um tipo comum no nordeste brasileiro, mais indígena do que negro. Uma índia de pele escura. Vestia uma blusa clara, de alça, meio sexy, que não escondia as gorduras sobrando e a barriga. Conversava com um chiclete na boca (que me ofereceu e eu aceitei) e a voz meio enrolada de semi-embriagada. Quando o Super Percy começou a tocar ela se levantou e pegou a minha mão e a do Brian sugerindo que nos levantássemos para dançar com ela. Eu disse no seu ouvido: Brown Sugar, please don’t do that to me... I’m shy (Brown Sugar, por favor não faça isto comigo, eu fico encabulada). E ela respeitou e continuou dançando entre as mesas, estilo femme fatale, e indo em direção ao palco. Apareceu diante do palco com o microfone na mão e começou a cantar sob assobios e aplausos. Mal cantou o primeiro verso da canção e se virou para a banda reclamando que o acompanhamento não estava bom... Mais aplausos, gargalhadas e assobios. O seu jeito me lembrou os de Marinês e Elba Ramalho se comunicando com as suas bandas: intimidade e camaradagem. O Super Percy acertou o tom e Brown Sugar deu um show lindo. Foi ali que percebi que lhe faltavam alguns dentes... da frente. Mas isto não arranhava em nada o seu talento. Fico impressionada como, mesmo depois de cinco anos de convivência com o inglês, não entendo quase nada do que os cantores de blues cantam. Mas, como sempre, senti que tinha dor e profundidade. O blues sempre tem esses dois ingredientes. Enquanto cantava, ela caminhava entre as mesas e recolhia o dinheiro que lhe davam: várias notas de um dólar. É um lugar rico de blues e pobre de dólares. As doações eram todas de um dólar. Tanto as feitas a ela quanto as feitas ao Super Percy. Várias notas de um dólar.
Saiu Brown Sugar e um negro, de muletas, de uns 50-60 anos, se encostou no palco, pegou o microfone e cantou ainda mais triste e mais lindo do que ela. Ele também não tinha os dentes da frente e aquilo me angustiava do mesmo jeito que me angustia no Brasil. A música que o cara cantava era acompanhada por todo mundo, principalmente o refrão: let’s straighten up (vambora consertar isto!)... Música de sofrimento de amor. Sempre. Ou de sofrimentos com a pobreza e o racismo. O tecladista parecia um Gandhi com o espírito do Antônio Nóbrega. Baixo, magrinho, óculos de aro redondo e um cavanhaque todo branco contrastando com o seu rosto magro e negro. Movia as pernas com a mesma agilidade com que movia os dedos. O baixista era mais parado, mais forte, mais alto, óculos escuros. O baterista também cantava quando os cantores espontâneos não pegavam o microfone. Somente o guitarrista era branco: italiano, grego, qualquer coisa neste mundo global tão misturado e só claramente separado para os americanos. Cabelos longos, cortados num estilo nobreza francesa, mas também comum no mundo do rock, blues, country... O vocalista, “Super” Percy, é a própria figura do malandro: alto, negro, vestido de amarelo, pulseiras, colares, brinco e óculos escuros... Raramente subia ao palco e quando o fazia, cantava dramático, como os outros, mas também contava histórias e piadas. Eu queria ficar lá a noite inteira de tão agradável que é e de tão em casa que me senti. Mil vezes mais simpático e aconchegante do que o Ñ, onde toca o Bossa 3. Provavelmente porque no Lee’s todo mundo se conhece e tudo é muito mais vivo, real e integrado. Enquanto escrevo isto, me lembro de Caio, meu filho, e como, quando morávamos na California, ele sempre dizia para o Silas, um dos seus amigos brancos: “ei Silas, tu é branco, velho, para com essa história de achar que é negro!” Silas, branco, vivia uma permanente crise de identidade. Se via e se comportava como negro, mas não era negro. Eu me senti, ali, um pouco como o Silas: morrendo de vontade de ser negra. Como se somente a pele negra me permitisse experimentar aquele tipo de sentimento que aqueles músicos e aquelas pessoas todas expressavam com tanta propriedade. Vi, depois, no google, que o Lee’s Unleaded Blues tem em torno de 30 anos de existência e atrai, além do pessoal da vizinhança que faz blues, muitos outros chicagoanos e viajantes internacionais amantes da música. É talvez um dos clubes mais tradicionais da cidade. Tomara que eu consiga arranjar tempo para ir lá muitas outras vezes...
Volto à noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2006, quando iniciei minha aventura de conhecer o blues para além das mais comerciais e turísticas Houses of Blues, que têm sucursais em todas as grandes cidades americanas. Sei que não estou aqui pelo blues e que o desejo de ver mais de perto esse mundo veio de entusiasmada conversa sobre o tema que tive há alguns dias com Lia, a filha de Pedro. Fiquei, desde então, meio me sentindo em dívida comigo em relação a esse aspecto tão importante da minha atração por Chicago e que eu não estava dando atenção porque completamente dedicada à missão de estudar músicos e outros artistas brasileiros que trabalham com cultura brasileira (samba, bossa-nova e capoeira). Lembrei-me que o Brian Drell, amigo judeu nascido aqui, havia me prometido uma visita a uma dessas casas clássicas de blues, localizada nas próprias neigborhoods (vizinhanças) que o produzem.
Depois de una parrillada argentina acompañada de cerveza (Buenos Aires Forever, na 939 N Ashland Av) seguimos para a zona sul de Chicago. A zona sul é a zona negra e eu não sei ainda como se distribui nela a riqueza e a miséria. Mas os negros moram, em geral, no sudoeste. Sul e oeste são quase sinônimos de negros, latinos e pobres em Chicago, com pequenas exceções. Nós moramos no Logan Square, noroeste, região em processo de valorização (gentrification). É uma mixed neigborhood (vizinhança misturada): poloneses e outros europeus do leste mais ao norte, brancos no boulevard e arredores próximos e, mais ao sudoeste, latinos de todos os tipos: porto-riquenhos, cubanos, mexicanos, brasileiros, etc).
Depois de cerca de meia hora de viagem por freeways e ruas e avenidas, finalmente chegamos na 7401 South Chicago, endereço do Lee`s Unleaded Blues, bar de blues, onde uma amiga nossa, brasileira, havia comemorado o seu último aniversário. Alguns minutos antes, já observávamos que tudo que havia ao nosso redor era negro. Meu corpo não reage à negritude americana como observo as reações dos daqui... Não incorporei ainda o medo que vem junto com a história e as ideologias que se divulgam desde o jardim da infância... Quando saímos da freeway para pegarmos a South Chicago, Brian ficou meio perdido e paramos para nos orientar com alguns jovens que estavam conversando na frente de um bar. Percebo certo receio de Brian e quero entender melhor seus sentimentos: é perigoso, ele explica. Talvez seja mesmo, mas eu não sei ainda.
Estacionamos do lado oposto ao do clube e cruzamos a larga South Chicago correndo. Estava meio friozinho e eu estava vestida meio sexy, mas não tão aconchegante... Calça jeans, blusa de malha preta de mangas compridas colada no corpo e um casaco de couro meio hippie e meio sexy, que comprei em Los Angeles na minha última viagem, e que sempre faz o maior sucesso. Ainda bem que não me vesti mais aconchegante do que isto porque o que não faltou foi aconchego e calor humano e aqui preciso repetir o que vivo dizendo: a salvação do ocidente é a sua parte cativa, explorada, sacaneada e, originalmente, não-ocidental. O que seria da história americana se não fossem os negros? Acho que todos esses brancos já teriam se suicidado de tanto tédio! Preciso confessar a minha atração pela cultura negra. Digo que é a alegria que me intriga e atrai, mas sei que não é só isto. São também outras afinidades: a dor exposta, certo descaso pela etiqueta francesa, desejo também exposto, enfim, paixão. Vejo os negros pulsando num ritmo mais vivo, mais intenso, mais desesperado e tudo isto me atrai demais.
Eu e Brian éramos os únicos forasteiros. Quando entramos tocava um rap alto na vitrola e a banda da noite, o Super Percy, estava no seu intervalo. Todas as mesas e cadeiras estavam ocupadas, inclusive as do bar. Estava muito cheio e me senti meio desconfortável no início por não saber onde ir ou o que fazer. Mas logo apareceu uma cadeira no bar e uma mulher jovem (35-40?) e gorda me convidou para sentar. Senti grande carinho no seu olhar e imediatamente aceitei o convite. Talvez menos de um minuto depois o Brian já me chamava para dizer que havia encontrado uma mesa de dois lugares. Todos os frequentadores daquela noite eram negros, nas suas várias tonalidades. Fiquei já meio impressionada constatando que praticamente todas as mulheres eram gordas. Gordas e bonitas com seus penteados extremamente criativos, variando do liso aos mais diversos dreadlocks. Todas as paredes e o teto do Lee’s são pintados de preto e o piso é coberto por um carpete vermelho. Os avisos e propagandas também são vermelhos. Me senti em casa, com tudo lembrando a Paraíba e a bandeira do Nego. Estava feliz e excitada por estar finalmente conhecendo uma casa de blues numa neigborhood. Do lado esquerdo da porta da entrada fica o bar estreito e comprido, com cadeiras altas ao longo de toda a sua extensão. As mesas redondas, também altas, talvez um pouco mais altas do que o bar ficam distribuídas entre o bar e o palco, do lado direito. Na frente do palco há várias mesas – altura normal – coladas uma na outra, como se fosse um balcão em frente ao palco. Há, entre essas mesas coladas e o palco, pequeno espaço que permite à garçonete ir e vir. Enfim, sentamos.
Do nosso lado esquerdo, havia um casal, um cara jovem (30-35) gordíssimo, ar de mafioso. Mas mafioso simples, sem pulseiras ou colares. A sua namorada com cabelos lisos estava do meu lado. Do meu lado direito estava Brian e em seguida Brown Sugar. Achei Brown Sugar a maior figura da noite. Ela nos contou que estava já celebrando o seu aniversário de 52 anos que seria no dia seguinte, no sábado, ali mesmo, no Lee’s. Aquela sexta era apenas um ensaio. Brown Sugar já estava meio bêbada e contava, satisfeita, que eram 52 anos e 27 netos que ela comemorava. Eu disse: eta Brown Sugar, esses seus filhos gostam de sexo, né? Ela pôs a mão na boca fingindo surpresa e “terror” com a minha pergunta e, depois, riu. O seu sorriso me lembrou o da minha amiga Socorro Carvalho.
Brown Sugar é da minha altura (1,64m) e tem os cabelos pretos muito lisos e a combinação com a pele morena me lembra um tipo comum no nordeste brasileiro, mais indígena do que negro. Uma índia de pele escura. Vestia uma blusa clara, de alça, meio sexy, que não escondia as gorduras sobrando e a barriga. Conversava com um chiclete na boca (que me ofereceu e eu aceitei) e a voz meio enrolada de semi-embriagada. Quando o Super Percy começou a tocar ela se levantou e pegou a minha mão e a do Brian sugerindo que nos levantássemos para dançar com ela. Eu disse no seu ouvido: Brown Sugar, please don’t do that to me... I’m shy (Brown Sugar, por favor não faça isto comigo, eu fico encabulada). E ela respeitou e continuou dançando entre as mesas, estilo femme fatale, e indo em direção ao palco. Apareceu diante do palco com o microfone na mão e começou a cantar sob assobios e aplausos. Mal cantou o primeiro verso da canção e se virou para a banda reclamando que o acompanhamento não estava bom... Mais aplausos, gargalhadas e assobios. O seu jeito me lembrou os de Marinês e Elba Ramalho se comunicando com as suas bandas: intimidade e camaradagem. O Super Percy acertou o tom e Brown Sugar deu um show lindo. Foi ali que percebi que lhe faltavam alguns dentes... da frente. Mas isto não arranhava em nada o seu talento. Fico impressionada como, mesmo depois de cinco anos de convivência com o inglês, não entendo quase nada do que os cantores de blues cantam. Mas, como sempre, senti que tinha dor e profundidade. O blues sempre tem esses dois ingredientes. Enquanto cantava, ela caminhava entre as mesas e recolhia o dinheiro que lhe davam: várias notas de um dólar. É um lugar rico de blues e pobre de dólares. As doações eram todas de um dólar. Tanto as feitas a ela quanto as feitas ao Super Percy. Várias notas de um dólar.
Saiu Brown Sugar e um negro, de muletas, de uns 50-60 anos, se encostou no palco, pegou o microfone e cantou ainda mais triste e mais lindo do que ela. Ele também não tinha os dentes da frente e aquilo me angustiava do mesmo jeito que me angustia no Brasil. A música que o cara cantava era acompanhada por todo mundo, principalmente o refrão: let’s straighten up (vambora consertar isto!)... Música de sofrimento de amor. Sempre. Ou de sofrimentos com a pobreza e o racismo. O tecladista parecia um Gandhi com o espírito do Antônio Nóbrega. Baixo, magrinho, óculos de aro redondo e um cavanhaque todo branco contrastando com o seu rosto magro e negro. Movia as pernas com a mesma agilidade com que movia os dedos. O baixista era mais parado, mais forte, mais alto, óculos escuros. O baterista também cantava quando os cantores espontâneos não pegavam o microfone. Somente o guitarrista era branco: italiano, grego, qualquer coisa neste mundo global tão misturado e só claramente separado para os americanos. Cabelos longos, cortados num estilo nobreza francesa, mas também comum no mundo do rock, blues, country... O vocalista, “Super” Percy, é a própria figura do malandro: alto, negro, vestido de amarelo, pulseiras, colares, brinco e óculos escuros... Raramente subia ao palco e quando o fazia, cantava dramático, como os outros, mas também contava histórias e piadas. Eu queria ficar lá a noite inteira de tão agradável que é e de tão em casa que me senti. Mil vezes mais simpático e aconchegante do que o Ñ, onde toca o Bossa 3. Provavelmente porque no Lee’s todo mundo se conhece e tudo é muito mais vivo, real e integrado. Enquanto escrevo isto, me lembro de Caio, meu filho, e como, quando morávamos na California, ele sempre dizia para o Silas, um dos seus amigos brancos: “ei Silas, tu é branco, velho, para com essa história de achar que é negro!” Silas, branco, vivia uma permanente crise de identidade. Se via e se comportava como negro, mas não era negro. Eu me senti, ali, um pouco como o Silas: morrendo de vontade de ser negra. Como se somente a pele negra me permitisse experimentar aquele tipo de sentimento que aqueles músicos e aquelas pessoas todas expressavam com tanta propriedade. Vi, depois, no google, que o Lee’s Unleaded Blues tem em torno de 30 anos de existência e atrai, além do pessoal da vizinhança que faz blues, muitos outros chicagoanos e viajantes internacionais amantes da música. É talvez um dos clubes mais tradicionais da cidade. Tomara que eu consiga arranjar tempo para ir lá muitas outras vezes...
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sábado, 17 de maio de 2008
Globalização, Mulheres e Utopia: O Exemplo de Marina Silva [1]
Bernadete Beserra[2]
Encontrei a senadora Marina Silva, pela primeira vez, em abril de 2000, numa palestra na Universidade Estadual da Califórnia, campus de Los Angeles (CALSTATELA). Marina me impressionou pelo fato de estar falando de questões seríssimas a respeito do futuro do planeta com a mesma naturalidade e desenvoltura com que preparo café na minha cozinha.
Aquela forma especial de lidar com o poder me fez lembrar do discurso de Sinéad O’Connor na abertura do CD Universal Mother, onde, em poucas sentenças, ela sintetiza o que considero uma crença absolutamente revolucionária. Sinéad afirma que realmente acredita que as mulheres podem fazer com que a política se torne desnecessária. Ela explica que tal empreendimento seria possível através da criação de algum tipo de cooperação espontânea totalmente diferente das idéias de poder vigentes nas estruturas estatais, religiosas e assim por diante. Tal idéia pode até cheirar a anarquia, mas ela não está interessada em anarquia, mas em formas sagradas de relacionamentos que não sigam os padrões hierárquicos vigentes que são fundamentalmente patriarcais. Ela conclui seu breve e introdutório discurso explicando que “o oposto de patriarcado não é matriarcado, mas fraternidade.” E acrescenta “acredito que são as mulheres que vão ter que quebrar os padrões de poder vigentes e encontrar a chave da cooperação.”
Desde a primeira vez que ouvi tal discurso, comecei a me perguntar porque ela condicionou o fim da política às ações das mulheres. Por que seriam as mulheres que teriam que descobrir a chave da cooperação? Ou, em outras palavras, o que haveria de tão especial nas mulheres que permitiria que ela propusesse que elas seriam as responsáveis pela reinvenção do político?
Sinéad O’Connor propôs-me a questão, mas foi através da leitura dos escritos de Jamie Sams que comecei a encontrar as primeiras pistas para a construção de uma provável resposta. No livro entitulado The 13 Original Clan Mothers, Jamie Sams fala sobre a reabilitação do feminino que as mulheres teriam de empreender com o objetivo de reivindicar de volta a sua função de curar e nutrir o outro. A idéia geral de tal proposição é a da liderança através do exemplo, ao invés de através da conquista ou da competição - tão relacionadas ao masculino. Mas diferentemente do que tal idéia pode sugerir, Jamie Sams não acredita que o feminino é apenas um privilégio das mulheres. Mas as mulheres, especialmente aquelas que experimentaram a maternidade, têm a vantagem de entender a idéia do feminino de uma forma mais visceral porque elas aprenderam, através dos seu próprios corpos, a arte da paciência. Elas aprenderam que a tarefa de criar filhos requer tempo, paciência e cuidado. Como resultado de tais práticas, as mulheres intuitivamente sabem que para o presente e o futuro do mundo tudo importa. Elas sabem que para a sobrevivência do planeta a tarefa de preparar uma comida saudável para um filho é tão importante quanto a de assinar acordos de paz ou tratados comerciais.
Então, enquanto escutava Marina Silva falando, eu me dava conta de que finalmente me deparava com um exemplo vivo do que Sinéad O’Connor prenunciava. Após ouvir as primeiras sentenças, eu já sentia que Marina Silva provavelmente é uma das raras pessoas que não apenas fala sobre as suas utopias mas também as pratica. Marina teimosamente acredita que o impossível pode ser feito através da cooperação. Acredita, portanto, que a cooperação não apenas é a chave para a preservação dos recursos genéticos da floresta amazônica, mas é também a chave para a preservação de todos os recursos do planeta. A sua própria história é já um excelente exemplo do milagre da cooperação. Marina só aprendeu a ler quando tinha 16 anos. Apesar disto, aos 36 anos conseguiu ser eleita para o Senado Federal, tornando-se a primeira mulher senadora na história do Brasil. Desde então, e em função da sua luta pela defesa dos direitos dos povos da floresta, ela tornou-se internacionalmente conhecida e já recebeu muitas condecorações internacionais.
Talvez ela não tivesse se tornado a primeira brasileira a conseguir uma cadeira no Senado se não fosse pela morte de Chico Mendes. Se os assassinos de Chico Mendes soubessem da existência de Marina e acreditassem na possibilidade de ela sucedê-lo na política, é possível que eles tivessem pensado duas vezes antes de assassiná-lo. De fato, apesar da sua aparente fragilidade, Marina parece ser ainda mais poderosa do que Chico Mendes. Mas seu poder, como já propus, parece residir principalmente na sua simplicidade e firmeza, qualidades que ela afirma ter aprendido com Chico Mendes. Eles trabalharam juntos no movimento dos seringueiros por mais ou menos quatro anos. Portanto, quando ele foi assassinado em 1988, Marina já havia aprendido muito dos seus ensinamentos politicos.
Marina Silva me impressionou com seus projetos e colocações, mas foi sua habilidade política que mais me impressionou, especialmente a sua forma especial de lidar com o poder, particularmente expressa na sua habilidade de praticar o que diz. Marina é humilde, sábia, apaixonada, firme e esperançosa. Para ela o poder não é um fim nele mesmo, mas o lugar de onde ela pode praticar sua utopia. Neste sentido, ela também me lembra Paulo Freire e seu legado sobre a arte da praxis. Para Paulo Freire, ser revolucionário não é apenas lutar por um mundo mais igualitário e democrático para amanhã. Muito mais do que isto, revolucionário é aquele que já pratica hoje as idéias que ele quer transformar em realidade para todos amanhã. Nessa perspectiva, democracia, respeito e tolerância têm de ser praticados e não apenas discutidos. Noutras palavras, esses valores não podem e nem devem se perder na retórica da transformação do mundo planejada para amanhã. Principalmente porque o mundo de amanhã não é uma garantia para ninguém, especialmente se considerarmos que o que tem sido globalizado é um estilo de exploração/vida que se tem provado absolutamente insustentável. Consciente dos perigos da globalização, Marina está lutando para aprovar uma lei para regular o acesso aos recursos biológicos e culturais do Brasil. Ela propõe que o conhecimento dos povos nativos seja remunerado porque, afirma, grande parte da pesquisa de laboratório começa com a informação obtida através das comunidades locais. Ela explica que a “extorsão” de conhecimento ocorre do seguinte modo: os índios usam plantas que são parte da sua medicina tradicional. Os pesquisadores vão para a floresta, pegam a planta, estudam-na, patenteiam-na e produzem remédios e ganham dinheiro com isto. Nada retorna para a comunidade que produziu a informação original. O objetivo de tal lei, portanto, é pagar tal débito e criar formas sustentáveis de remunerar as populacões nativas e os seus países pelos seus recursos naturais e culturais. Do contrário, a preservação da Amazônia nunca passará da retórica. Assim, se é verdade que todo o planeta precisa da Amazônia, todo o planeta deveria mobilizar-se e oferecer alguma contribuição para preservá-la. Mas só há uma forma de produzir tal mobilização: todos os seres humanos precisam entender que a sustentabilidade social, ambiental e política caminham lado a lado. A sobrevivência do mundo depende da compreensão da necessidade de afirmação da diversidade, seja no mundo das plantas ou no mundo dos homens e das sociedades.
Nenhum indivíduo, raça ou nacionalidade pode ter a pretensão de salvar o mundo sózinho. Não há salvação para apenas uma espécie. Ou salvamos o mundo com a sua diversidade ou ninguém será salvo. Portanto, a responsabilidade de preservação da floresta Amazônica é tanto do povo e governo brasileiros como é também, por exemplo, dos estudantes da Universidade Estadual da Califórnia, Los Angeles. Desta maneira, Marina ensinava sua audiência que apesar da distância geográfica, a vida em Los Angeles está muito mais conectada à vida na floresta Amazônica do que imaginamos. Como uma nativa da floresta e cidadã do mundo, ela sabe muito bem que não há a possibilidade de se salvar a amazônia excluindo os seus habitantes. Ela sabe que o empreendimento de salvar o mundo exige muito mais do que o salvamento desta ou daquela ilha, desta ou daquela espécie em extinção. Ela sabe, afinal, que o que mais ameaça os recursos da floresta amazônica não são os seus habitantes nativos, mas a exploração promovida pelos poderes imperialistas. Se não fosse pelos nativos da Amazônia, a essas alturas provavelmente não haveria mais “recursos nativos”. Esses nativos, como muitos outros nativos de outras regiões do planeta, têm sido sistematicamente eliminados por uma política econômica que despreza tudo que não se assemelhe ao colonizador europeu ou americano. Tudo isto é péssimo porque a sobrevivência dos recursos da floresta amazônica depende muito mais da sobrevivência dos seus habitantes nativos do que do bom funcionamento de cidades como Los Angeles.
Durante a palestra e depois, durante o debate, chamou-me atenção a sua forma atenciosa, firme e delicada de se relacionar com a platéia. Depois, quando a palestra terminou, algumas pessoas se reuniram em torno dela para questões mais específicas e, novamente, ela tratou todas com a mesma atenção e respeito independente das aparências. Agindo assim, ela mostrava que seu projeto de um mundo sustentável não é algo para amanhã, quando as condições apropriadas forem criadas. Sua utopia não é uma desculpa para não se engajar profundamente no presente. Ao contrário, sua utopia já está em construção. Foi exatamente isto que ela eloqüente e pacientemente transmitiu para a sua audiência naquela noite. Algumas semanas após a palestra, enquanto discutia com amigos e colegas a globalização e a necessidade da criação de organizações internacionais para o controle do poder e abusos do capital, referimo-nos à Marina e à sua luta por um mundo sustentável. Eu comentava, especificamente, sobre o impacto que o meu encontro com ela havia produzido sobre a minha compreensão de ativismo político, quando soube que Marina sofre as consequências da contaminação de mercúrio e outros metais pesados. Minha primeira reação foi de raiva: sentia-me meio traída porque queria que ela vivesse para sempre. Queria continuar observando-a na construção da sua utopia. Entretanto, recentemente, lendo um artigo de Diana Jean Schemo para o número de Janeiro/Fevereiro de 1998 da Ms. Magazine, senti-me novamente surpreendida pela compreensão de Marina sobre as limitações do seu corpo. Ela diz: “Eu tenho um espírito forte e um corpo frágil; eu acho que talvez Deus me deu um corpo frágil para que eu não me sentisse onipotente e não esquecesse suas limitações.” Talvez esta seja a razão mesma porque Deus nos deu um planeta com recurso limitados: para que aprendêssemos a valorizá-los; para que precisássemos encontrar formas cooperativas de nos relacionar um com o outro e com o planeta. Depois de tudo, eu já não penso que a idéia de limites é assim tão ruim. A saúde de Marina Silva me levou a pensar na minha própria saúde, nas suas limitações e precariedade. Noutras palavras, saber que nem nós nem nosso planeta temos garantia de eternidade deveria servir como um lembrete de que todos deveríamos valorizar mais a vida e o presente ao invés de imergirmos nesta cultura predatória da busca de lucros fáceis e privilégios individuais. Deveríamos, finalmente, como as mães, nos preocupar também com o futuro dos nossos filhos e netos.
[1] . Uma versão em inglês deste ensaio (Globalization, Women, and the “Trick” of Cooperation: the Example of Marina Silva) foi publicado na Latin American Perspectives Vol. 29 n. 6 - Novembro de 2002.
[2] . Bernadete Beserra, PhD em Antropologia pela University of California, Riverside, é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
Encontrei a senadora Marina Silva, pela primeira vez, em abril de 2000, numa palestra na Universidade Estadual da Califórnia, campus de Los Angeles (CALSTATELA). Marina me impressionou pelo fato de estar falando de questões seríssimas a respeito do futuro do planeta com a mesma naturalidade e desenvoltura com que preparo café na minha cozinha.
Aquela forma especial de lidar com o poder me fez lembrar do discurso de Sinéad O’Connor na abertura do CD Universal Mother, onde, em poucas sentenças, ela sintetiza o que considero uma crença absolutamente revolucionária. Sinéad afirma que realmente acredita que as mulheres podem fazer com que a política se torne desnecessária. Ela explica que tal empreendimento seria possível através da criação de algum tipo de cooperação espontânea totalmente diferente das idéias de poder vigentes nas estruturas estatais, religiosas e assim por diante. Tal idéia pode até cheirar a anarquia, mas ela não está interessada em anarquia, mas em formas sagradas de relacionamentos que não sigam os padrões hierárquicos vigentes que são fundamentalmente patriarcais. Ela conclui seu breve e introdutório discurso explicando que “o oposto de patriarcado não é matriarcado, mas fraternidade.” E acrescenta “acredito que são as mulheres que vão ter que quebrar os padrões de poder vigentes e encontrar a chave da cooperação.”
Desde a primeira vez que ouvi tal discurso, comecei a me perguntar porque ela condicionou o fim da política às ações das mulheres. Por que seriam as mulheres que teriam que descobrir a chave da cooperação? Ou, em outras palavras, o que haveria de tão especial nas mulheres que permitiria que ela propusesse que elas seriam as responsáveis pela reinvenção do político?
Sinéad O’Connor propôs-me a questão, mas foi através da leitura dos escritos de Jamie Sams que comecei a encontrar as primeiras pistas para a construção de uma provável resposta. No livro entitulado The 13 Original Clan Mothers, Jamie Sams fala sobre a reabilitação do feminino que as mulheres teriam de empreender com o objetivo de reivindicar de volta a sua função de curar e nutrir o outro. A idéia geral de tal proposição é a da liderança através do exemplo, ao invés de através da conquista ou da competição - tão relacionadas ao masculino. Mas diferentemente do que tal idéia pode sugerir, Jamie Sams não acredita que o feminino é apenas um privilégio das mulheres. Mas as mulheres, especialmente aquelas que experimentaram a maternidade, têm a vantagem de entender a idéia do feminino de uma forma mais visceral porque elas aprenderam, através dos seu próprios corpos, a arte da paciência. Elas aprenderam que a tarefa de criar filhos requer tempo, paciência e cuidado. Como resultado de tais práticas, as mulheres intuitivamente sabem que para o presente e o futuro do mundo tudo importa. Elas sabem que para a sobrevivência do planeta a tarefa de preparar uma comida saudável para um filho é tão importante quanto a de assinar acordos de paz ou tratados comerciais.
Então, enquanto escutava Marina Silva falando, eu me dava conta de que finalmente me deparava com um exemplo vivo do que Sinéad O’Connor prenunciava. Após ouvir as primeiras sentenças, eu já sentia que Marina Silva provavelmente é uma das raras pessoas que não apenas fala sobre as suas utopias mas também as pratica. Marina teimosamente acredita que o impossível pode ser feito através da cooperação. Acredita, portanto, que a cooperação não apenas é a chave para a preservação dos recursos genéticos da floresta amazônica, mas é também a chave para a preservação de todos os recursos do planeta. A sua própria história é já um excelente exemplo do milagre da cooperação. Marina só aprendeu a ler quando tinha 16 anos. Apesar disto, aos 36 anos conseguiu ser eleita para o Senado Federal, tornando-se a primeira mulher senadora na história do Brasil. Desde então, e em função da sua luta pela defesa dos direitos dos povos da floresta, ela tornou-se internacionalmente conhecida e já recebeu muitas condecorações internacionais.
Talvez ela não tivesse se tornado a primeira brasileira a conseguir uma cadeira no Senado se não fosse pela morte de Chico Mendes. Se os assassinos de Chico Mendes soubessem da existência de Marina e acreditassem na possibilidade de ela sucedê-lo na política, é possível que eles tivessem pensado duas vezes antes de assassiná-lo. De fato, apesar da sua aparente fragilidade, Marina parece ser ainda mais poderosa do que Chico Mendes. Mas seu poder, como já propus, parece residir principalmente na sua simplicidade e firmeza, qualidades que ela afirma ter aprendido com Chico Mendes. Eles trabalharam juntos no movimento dos seringueiros por mais ou menos quatro anos. Portanto, quando ele foi assassinado em 1988, Marina já havia aprendido muito dos seus ensinamentos politicos.
Marina Silva me impressionou com seus projetos e colocações, mas foi sua habilidade política que mais me impressionou, especialmente a sua forma especial de lidar com o poder, particularmente expressa na sua habilidade de praticar o que diz. Marina é humilde, sábia, apaixonada, firme e esperançosa. Para ela o poder não é um fim nele mesmo, mas o lugar de onde ela pode praticar sua utopia. Neste sentido, ela também me lembra Paulo Freire e seu legado sobre a arte da praxis. Para Paulo Freire, ser revolucionário não é apenas lutar por um mundo mais igualitário e democrático para amanhã. Muito mais do que isto, revolucionário é aquele que já pratica hoje as idéias que ele quer transformar em realidade para todos amanhã. Nessa perspectiva, democracia, respeito e tolerância têm de ser praticados e não apenas discutidos. Noutras palavras, esses valores não podem e nem devem se perder na retórica da transformação do mundo planejada para amanhã. Principalmente porque o mundo de amanhã não é uma garantia para ninguém, especialmente se considerarmos que o que tem sido globalizado é um estilo de exploração/vida que se tem provado absolutamente insustentável. Consciente dos perigos da globalização, Marina está lutando para aprovar uma lei para regular o acesso aos recursos biológicos e culturais do Brasil. Ela propõe que o conhecimento dos povos nativos seja remunerado porque, afirma, grande parte da pesquisa de laboratório começa com a informação obtida através das comunidades locais. Ela explica que a “extorsão” de conhecimento ocorre do seguinte modo: os índios usam plantas que são parte da sua medicina tradicional. Os pesquisadores vão para a floresta, pegam a planta, estudam-na, patenteiam-na e produzem remédios e ganham dinheiro com isto. Nada retorna para a comunidade que produziu a informação original. O objetivo de tal lei, portanto, é pagar tal débito e criar formas sustentáveis de remunerar as populacões nativas e os seus países pelos seus recursos naturais e culturais. Do contrário, a preservação da Amazônia nunca passará da retórica. Assim, se é verdade que todo o planeta precisa da Amazônia, todo o planeta deveria mobilizar-se e oferecer alguma contribuição para preservá-la. Mas só há uma forma de produzir tal mobilização: todos os seres humanos precisam entender que a sustentabilidade social, ambiental e política caminham lado a lado. A sobrevivência do mundo depende da compreensão da necessidade de afirmação da diversidade, seja no mundo das plantas ou no mundo dos homens e das sociedades.
Nenhum indivíduo, raça ou nacionalidade pode ter a pretensão de salvar o mundo sózinho. Não há salvação para apenas uma espécie. Ou salvamos o mundo com a sua diversidade ou ninguém será salvo. Portanto, a responsabilidade de preservação da floresta Amazônica é tanto do povo e governo brasileiros como é também, por exemplo, dos estudantes da Universidade Estadual da Califórnia, Los Angeles. Desta maneira, Marina ensinava sua audiência que apesar da distância geográfica, a vida em Los Angeles está muito mais conectada à vida na floresta Amazônica do que imaginamos. Como uma nativa da floresta e cidadã do mundo, ela sabe muito bem que não há a possibilidade de se salvar a amazônia excluindo os seus habitantes. Ela sabe que o empreendimento de salvar o mundo exige muito mais do que o salvamento desta ou daquela ilha, desta ou daquela espécie em extinção. Ela sabe, afinal, que o que mais ameaça os recursos da floresta amazônica não são os seus habitantes nativos, mas a exploração promovida pelos poderes imperialistas. Se não fosse pelos nativos da Amazônia, a essas alturas provavelmente não haveria mais “recursos nativos”. Esses nativos, como muitos outros nativos de outras regiões do planeta, têm sido sistematicamente eliminados por uma política econômica que despreza tudo que não se assemelhe ao colonizador europeu ou americano. Tudo isto é péssimo porque a sobrevivência dos recursos da floresta amazônica depende muito mais da sobrevivência dos seus habitantes nativos do que do bom funcionamento de cidades como Los Angeles.
Durante a palestra e depois, durante o debate, chamou-me atenção a sua forma atenciosa, firme e delicada de se relacionar com a platéia. Depois, quando a palestra terminou, algumas pessoas se reuniram em torno dela para questões mais específicas e, novamente, ela tratou todas com a mesma atenção e respeito independente das aparências. Agindo assim, ela mostrava que seu projeto de um mundo sustentável não é algo para amanhã, quando as condições apropriadas forem criadas. Sua utopia não é uma desculpa para não se engajar profundamente no presente. Ao contrário, sua utopia já está em construção. Foi exatamente isto que ela eloqüente e pacientemente transmitiu para a sua audiência naquela noite. Algumas semanas após a palestra, enquanto discutia com amigos e colegas a globalização e a necessidade da criação de organizações internacionais para o controle do poder e abusos do capital, referimo-nos à Marina e à sua luta por um mundo sustentável. Eu comentava, especificamente, sobre o impacto que o meu encontro com ela havia produzido sobre a minha compreensão de ativismo político, quando soube que Marina sofre as consequências da contaminação de mercúrio e outros metais pesados. Minha primeira reação foi de raiva: sentia-me meio traída porque queria que ela vivesse para sempre. Queria continuar observando-a na construção da sua utopia. Entretanto, recentemente, lendo um artigo de Diana Jean Schemo para o número de Janeiro/Fevereiro de 1998 da Ms. Magazine, senti-me novamente surpreendida pela compreensão de Marina sobre as limitações do seu corpo. Ela diz: “Eu tenho um espírito forte e um corpo frágil; eu acho que talvez Deus me deu um corpo frágil para que eu não me sentisse onipotente e não esquecesse suas limitações.” Talvez esta seja a razão mesma porque Deus nos deu um planeta com recurso limitados: para que aprendêssemos a valorizá-los; para que precisássemos encontrar formas cooperativas de nos relacionar um com o outro e com o planeta. Depois de tudo, eu já não penso que a idéia de limites é assim tão ruim. A saúde de Marina Silva me levou a pensar na minha própria saúde, nas suas limitações e precariedade. Noutras palavras, saber que nem nós nem nosso planeta temos garantia de eternidade deveria servir como um lembrete de que todos deveríamos valorizar mais a vida e o presente ao invés de imergirmos nesta cultura predatória da busca de lucros fáceis e privilégios individuais. Deveríamos, finalmente, como as mães, nos preocupar também com o futuro dos nossos filhos e netos.
[1] . Uma versão em inglês deste ensaio (Globalization, Women, and the “Trick” of Cooperation: the Example of Marina Silva) foi publicado na Latin American Perspectives Vol. 29 n. 6 - Novembro de 2002.
[2] . Bernadete Beserra, PhD em Antropologia pela University of California, Riverside, é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
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