segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Do terror doméstico II



Vim e continuo me sentindo tão impotente quanto no Brasil. A diferença é que tenho agora a sensação de estar, como previu Sérgio, dando um apoio mais efetivo à Kel. Bom encontrá-la, abraçá-la, tê-la por perto depois de uma ano inteiro de separação... Planejei ficar um pouco na casa da Jeannie, mas não consegui: quero ficar por perto da Kel o tempo inteiro.

Hoje estou me sentindo melhor do que ontem. Talvez tenha sido o encontro com a Susan, amiga que também fez o doutorado em antropologia na UCR. Ela é a mulher mais falante que eu conheço. Nunca vi sair de uma mesma boca tantas palavras... Por muito tempo ela foi o meu termômetro da minha ignorância do idioma. Geralmente acontecia uma das duas coisas nas nossas conversas: ou eu desistia de tentar entendê-la e me desligava ou a interrompia várias vezes para perguntar o significado das palavras que dizia.
São muitas histórias com as minhas amigas daqui. É engraçado que nos meus 16 anos de Fortaleza eu não tenha conseguido fazer amigos com quem me sinta tão à vontade como me sinto com a Jeannie e a Maria. É especialmente a disponibilidade delas que me comove. Eu brincava com Jeannie dizendo que me sentia mais à vontade na sua casa do que na minha. A Susan me anima porque está, como eu, sempre com alguma novidade. Um livro que leu. Uma dieta nova. Uma nova forma de ganhar dinheiro com a antropologia. Quando editava uma coleção especial de antropologia na Europa, me convidou para dar parecer dos manuscritos que recebia em português. Tudo que sei sobre a antropologia portuguesa foi através dessa conexão estabelecida por ela.

Cheguei na sua casa morrendo de fome e ela me deu uns pedaços de pizza que haviam sobrado do almoço. Havia combinado de passar lá depois do almoço, mas de última hora mudei de idéia porque achava que se comesse aqui desistiria de ir, como aconteceu ontem. Comi enquanto contava pra ela e pro Markus, seu marido, o problema da Kel. Mas não passava a fome e ela fez um café gelado supergostoso e me deu uma barrinha de granola e depois já foi me levando para conhecer a casa que acabou de comprar e para a qual se mudará proximamente. Há uns três anos, quando começou a pesquisar o mercado imobiliário de Riverside/Los Angeles, Susan já previa a crise atual e já tinha um plano bastante inteligente para comprar a sua. A casa que afinal comprou chegou a custar 450 mil dólares há um ano, pouco antes do início da crise imobiliária. Ela comprou há uns dois meses por 290. Cerca de 40% menos. Sugiro que ela escreva um livro sobre isto. Na verdade, ela já oferece este e outros serviços no seu blog Small Signs and Omens (http://indiciaconsulting.blogspot.com/).
A casa é linda. Construída nos anos 1950, com piscina, jardim enorme e todos os cômodos que ela precisa, inclusive quarto de hóspede. Perto do rio que dá nome à cidade: Riverside. Numa rua que não é de passagem para ninguém, a não ser os próprios moradores. Acho que o título do Manual dela seria: Antes de comprar uma casa, preste atenção no seguinte. Aproveito o ensejo para sonhar com um mundo onde os manuais escritos para as mulheres que querem casar tivessem títulos como Você tem mesmo certeza de que quer casar com ele? Ao invés do besteirol comum: Como conquistar o seu homem em duas semanas, Cinco conselhos para não espantar seu homem, Plásticas e exercícios que precisa fazer antes de começar a procurar seu homem, etc.

Depois da visita à casa nova fomos para o Panera, para mais café e mais comida. Ah, agora estou entendendo de onde vem a disposição que estou sentindo agora: de tanto café! Só pode ser isto. Ontem eu estava tão cansada que adormeci umas oito horas, ainda estava claro. Muito sol e muito calor na piscina da Jeannie. E também um pouco o sentimento de impotência diante do caso da Kel.

Mas não podemos dizer que não progredimos. Ao contrário, progredimos bastante. O que ainda não consigo me acostumar é à idéia de que devamos ficar com medo porque a Kel está ameaçada de deportação em consequência de erros do escritório de advocacia que contratou e do próprio Serviço de Imigração. Até agora, todos os meus amigos sugerem que contratemos um advogado. Todos concordam que o caso é simples, mas insistem que tudo pode se tornar muito complicado porque todos os serviços ligados à imigração foram “politizados” demais. A sensação que me dá é a de que não há mais bom-senso e tudo se tornou subjetivo demais. Depende do funcionário de plantão. Do juiz de plantão. De gostar ou não de você. E eles dizem isto claramente na pesquisa que fizemos sobre a lei de imigração e o que se prevê nas várias situações. Na verdade, eles não enganam ninguém e já nos advertem sobre isto logo que começamos a pensar em vir para cá. Nas instruções de pedido de visto avisam com todas as letras que a concessão do visto nos consulados americanos não garante a entrada do portador. Exatamente. A entrada será finalmente determinada pelo funcionário de plantão do Serviço de Imigração: aquele que confere o seu passaporte/visto. Pode acontecer de não gostar da sua cara e lhe mandar de volta do aeroporto. Coisas de regime de exceção. Qualquer funcionário da burocracia pode ter mais poder do que indivíduos hierarquicamente superiores a eles, mas residentes de outros países. Outro dia vi o caso de um padre que teve o seu visto negado pelo consulado do México, no Rio. Isto acontece com qualquer burocracia em tempos de exceção. Pelo menos ninguém é deportado sem julgamento: isto ainda é coisa de democracia. Daí a importância do advogado: ele conhece a lei e os seus detalhes e está preparado para defender o cliente de alguma decisão discriminatória. É isto que todos temem: que o juiz não preste atenção no caso, na defesa do cliente e julgue baseado no preconceito.

Elizabeth Ruiz, a sogra da Kel, insiste que as coisas não estão tão ruins assim. Que esse terror é mais fruto da propaganda dos “irresponsáveis” dos democratas do que propriamente da realidade. Para ela, os democratas são responsáveis por todas as desgraças vividas hoje no país. "Óbvio que não acreditam na justiça que eles mesmos criaram". Toda a imprensa é democrata, insiste, daí a desesperança reinante. Diferentemente dos meus amigos socialistas/comunistas que votam nos democratas, ela confia nas instituições que sustentam a democracia americana. Diferentemente dos meus amigos socialistas/comunistas/democratas, ela sempre apresenta longa lista de fatos para demonstrar seus argumentos. Engraçado é que é verdade: eles têm um medo difuso e vago e se baseiam em experiências particulares. Generalizam suas experiências. Ela, embora não tenha diploma do ensino superior, parece mais convincente. Difícil é aguentar o seu discurso patriótico, incondicionalmente favorável a Bush e à política dos republicanos. Eu a escuto sempre com grande atenção e paciência, mas não consigo deixar de expressar a minha discordância.

Amanhã consultaremos o primeiro dos três advogados com quem marcamos entrevistas. Ele é amigo da Maria. Ela também acha que independentemente de culpado ou não, o acusado precisa de advogado. Eu e a Kel já estamos bastante sabidas sobre a sua situação e inclusive sobre que aspectos levar em consideração antes de contratar um advogado. Vambora ver o que aprenderemos no encontro de amanhã, em Pasadena. Na terça, vamos para as entrevistas em Los Angeles... e aproveitaremos para olhar o Pacífico.

5 comentários:

Unknown disse...

Querida Berna,
Bom ter notícias suas novamente. Quanto mais leio seu blog, mais ficam claras para mim as abismais diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos... Mas sou otimista e acho que no final tudo dará certo!!! Estou na torcida. :)
Um grande beijo

gabi disse...

"Eu a escuto sempre com grande atenção e paciência, mas não consigo deixar de expressar a minha discordância."
Professora, eu imagino o seu rosto discordando discretamente da sogra de sua filha... Dá até vontade de rir... parece que eu tô é vendo.... Um bjão e tudo de bom pra você...

Unknown disse...

berna, tu vai ver como vai passar rapidinho e essa burocracia toda tá empacando porque ainda não viram o seu rostinho doce de pessoa justa. heheh!
enfim.. e só lembrando que tu sempre dorme cedo. independente de ser oito horas da noite, sempre é cedo. e café realmente te deixa alerta. naquele dia tu disse que te afetava muito, imagine esse tanto que tu cita.
ah! e haja academia quando voltar viu. não quero ver gordurinhas localizadas! um, dois, tres, vai!
tô brincando, viu?

um beijo.

ps: tu vai pra facul nesse semestre ? ou vai só "fazer nada", como tu diz que teus filhos dizem?

Unknown disse...

eu falei dois "viu"
coisa feia

Anônimo disse...

Querida Berna,

Todo esse "terror doméstico" parece pelo menos ter realçado as parecências entre as duas: no rosto a mesma força e beleza sumehrianas, heim.
Tudo vai ficar bem. Vamo pra frente, vencer isso de uma vez! Beijo pras duas!