terça-feira, 12 de agosto de 2008

El Precio de la Ignorancia (Parte II)






(Foto 1. Venice Beach. Show do haitiano que anda sobre cacos de vidro. 11/08/2008. Foto 2. Raquel e Nichole em frente ao banheiro público da Venice Beach. Ver detalhe do "mosaico" na parede)
Coffee Roasters, Riverside, 9 de agosto de 2008
Escrevo a data e me lembro de Fábio: hoje completaria 45 anos. Tão esquisito essa idéia de não poder encontra-lo nunca mais... Ouvi-lo atender o telefone com o seu: “pronto?” Não sei o que está acontecendo comigo ultimamente, mas a verdade é que a morte já não me assusta tanto... Talvez o que eu queira mesmo dizer com isto é: a dor já não me assusta tanto. Ao mesmo tempo, sinto-me mais sensível do que nunca. Capaz de perceber mil vezes mais do que percebia quando adolescente. Sinto mais, percebo mais, porém, paradoxalmente, assusta-me menos a dor e a vida. Sinatra homenageia Fábio cantando Unforgettable.

Centenas de coisas aconteceram entre o início desta crônica e hoje, inclusive o adiamento da minha volta ao Brasil. Estou outra vez aqui, no Coffee Roasters, o meu porto seguro nesta passagem por Riverside.

Quero prosseguir contando sobre as entrevistas com os advogados em Los Angeles. Pegamos a 60W, que nos leva direto, em cerca de 60-80 minutos, ao centro de Los Angeles. A paisagem não é tão onírica quanto a da 57: o tráfego é mais pesado, tudo que se enxerga ao redor está mais ou menos envolvido por uma espessa nuvem de poluição... Não sei como se chama em português, aqui dizem smog. É isto: uma neblina meio marron-amarelada... Cor do deserto que é o sul da Califórnia. As montanhas aos poucos sendo ocupadas por casas com o crescimento sem controle da indústria imobiliária nas últimas décadas... A natureza certamente agradece a trégua produzida pela crise atual. Nick dirigiu. O tráfego fluiu bem até chegarmos próximo ao centro de Los Angeles e trocarmos a 60W pela 101N (a Hollywood freeway)... É sempre assim: muitas vezes gastamos mais tempo para dirigir 5 milhas na 101 do que 50 na 60. O encontro com Hector Ortega estava marcado para as 11. Chegamos ao seu endereço, 700 Wilshire Blvd, meia hora antes. É provavelmente uma das áreas mais caras do centro, o estacionamento é cobrado por minutos: cada 15 minutos custa em média 3 dólares. Mas há um limite máximo que se permite cobrar por dia: em torno de 20 dólares.

(...)
Riverside, 10 de agosto de 2008
11:20am
(Interrompi a narrativa acima porque me senti mal. Vim pra casa de Jeannie encontrar a Raquel e a Nichole que vieram pra ficar um pouco na piscina. Estou aqui desde ontem. Desde a sexta-feira sentia-me inexplicavelmente cansada, meio febril. Ontem, ainda no café, comecei a sentir a minha garganta doendo e com grande dificuldade de engolir. Vim pra cá e, desde às 3 da tarde de ontem, quando Raquel e Nichole foram embora, estou intermitentemente dormindo. Estou tomando vitamina C e equinácia para a inflamação da garganta. À noite Larissa, filha de Jeannie, voltou de San Diego e cuidou um pouco de mim: fez chá de hortelã e me deu uns remédios fortes para gripe. Nunca tomo nada disso, mas resolvi tomar porque queria mesmo dormir a noite inteira. Desde a hora que acordei estou lendo The Last Lecture (A última aula), de Randy Pausch, professor de Carnegie Mellon, que recentemente morreu de câncer e escreveu o livro quando soube que teria apenas três meses de vida. Tá a maior moda aqui e, embora eu não goste de moda, achei a história dele interessante. Continuo me sentindo cansada e sonolenta. Durmo um pouco, me acordo, leio um pouco, durmo outra vez. Acordo sentindo-me bem, mas minutos depois estou outra vez exausta. A febre e a dor de garganta felizmente já passaram).

Volto à terça-feira, Los Angeles. Meio surpresa, perguntei àquele rapaz que se apresentava se ele era o advogado. Respondeu sim e eu comentei que ele era muito jovem. Surpreendi-me com a sua segurança e tranquilidade. Conhecia bem o problema e conhecia também o juiz e os advogados do Serviço de Imigração. Fizemos-lhe todas as perguntas que já havíamos feito ao Steve. A grande diferença entre eles é que ele nos provava que era importante contratar um advogado sem nos assustar tanto, como fez Steve. Da perspectiva dele, tudo é resolvível. O que me incomodou na conversa com o Steve foi o fato de ele sempre considerar complicada a solução de tudo.

Preciso aqui mais uma vez repetir a história: Raquel, imediatamente após casar com Nick, cidadão americano, entrou com os papéis para mudar de visto. Preciso esclarecer que esta exigência não é um capricho dos Estados Unidos; é, digamos assim, uma exigência do mundo nacional/internacional. É também disso que as nações sobrevivem. De acordo com meus amigos “gringos” que moram no Brasil, aí chega a ser até pior. Enfim, Raquel tinha visto J-2, dependente de J-1 (um visto específico para intercâmbios acadêmicos e que obriga os seus portadores a voltar aos seus países de origem) e pedia o green card, que é uma identidade de residente. Embora não faça muito sentido, as restrições do meu visto também se aplicam aos meus dependentes. Assim como eu, se quissesse ficar, ela teria que pedir ao Serviço de Imigração a dispensa da obrigatoriedade de voltar. Ela não pediu e encaminhou os papéis para mudar de visto sem esse documento. Erro cometido pelo desconhecimento que ela e o escritório que a ajudou tinham da especificidade do seu caso. Nada absurdo porque todo dia todos nós esquecemos alguma coisa: de assinar o cheque, de travar a porta do carro, do prazo do imposto de renda, do aniversário do filho...

Claro que, como disse no início da parte 1 desta crônica, tanto a ignorância como a desatenção têm um preço. É este preço que agora estamos pagando. Caro ou barato, acho que não importa muito agora. E, como sugere o Sublime, melhor não ficar com raiva das contas que temos que pagar (I don’t get mad at the bills I have to pay).

Então, vambora: o Serviço de Imigração costuma devolver os processos incompletos. Inclusive, exatamente por isto e porque a taxa de ajuste de status subiria de trezentos e tantos dólares para mil e poucos, achamos conveniente pedir ajudar especializada. Nem o Serviço de Imigração devolveu o processo incompleto da Raquel, o que teria evitado toda essa confusão e nem o escritório que ela contratou era tão especializado assim...

Ignorância, desatenção de todas as partes e um pouco de má sorte também.
(...)

Venice Beach, 11 de agosto de 2008
13:30h.
Venice Beach é uma festa... Talvez a última evidência da Califórnia dos 1970, que inspirou Going to California e outros sonhos e viagens... Todas as minhas amigas daqui, em geral 10-12 anos mais velhas do que eu, viveram um pouco a Los Angeles dos 70: com LSD, maconha, sexo livre, revolução, tudo... Os velhos hippies perseveram e, como os que encontramos na Praia de Iracema, na Beira-Mar ou em Copacabana, estão lá, criando suas pulseiras e colares. Se não fosse pela temperatura da água do mar; a predominância do inglês; sóbrios, sólidos e grandes lixeiros de dez em dez metros; enorme banheiro público bem em frente a este café e a rua da frente da praia só para pedestres, eu me sentiria como se estivesse em Fortaleza. Ah, tem outras diferençazinhas: o que eles chamam Palm Trees (palmeiras) aqui parecem os nossos açaizeiros... O haitiano que faz o show do homem que anda sobre cacos de vidro exige pagamento adiantado diferente dos nossos palhaços, comediantes e curandeiros da Beira-Mar e Praia de Iracema.... Ah, e os mendigos são muito criativos: há um black-American sentado numa cadeira esperando clientes para aconselhar sobre sexo: Sex Counseling. Um outro dizendo que não quer cappucino, quer vino... E vai por aí... É engraçado que com todos os controles desta sociedade, haja espaço para essas doideiras... Quase todos os hippies têm os seus cartazinhos defendendo a legalização da maconha... Últimos remanescentes de uma cultura mais livre, mais lúdica, mais esperançosa... objetos de museu...

Raquel e Nichole foram até a praia. Quis ficar aqui pra ver se termino esta crônica interminável... Mil e uma noites... Que príncipe quero manter acordado? Que príncipe quero evitar que me degole antes do amanhecer? Agora sério: há história mais fascinante do que a de Sherezade? Não tanto a que ela conta, a dela própria, a da sua estratégia de sobrevivência ao sultão com complexo de corno.

Somente observar as pessoas entrando e saindo deste café/lanchonete já é uma grande diversão... Descrever é mais divertido ainda... Agora, por exemplo, as mesas do lado e da frente estão ocupadas por adolescentes com cara de midwesterners (povo do meio-oeste): Iowa, Ilinois, Wisconsin... Mais ou menos o fenótipo das ginastas que estão representando os Estados Unidos nas Olimpiadas. E aqui atrás tem outra família e um bebêzinho que o pai meio gordo tá enfiando batata frita e hamburguer na boca... Deve ter menos de dois anos, coitado...

Caminhamos uns cinco ou seis quarteirões do estacionamento público (7 dólares até as 18h) na direção de Sta Mônica e, só há uma mercadoria que compete com as tendas/lojinhas de artesanato: as casas de tatuagem. Raquel sugere que eu faça algumas tatuagens e piercings antes de voltar...

Estou sentada de frente pro mar, no interior do Café Venícia... As paredes são de vidro... e enxergo lá longe, depois dos coqueiros, gramados e areia, uma nesguinha de mar... A coleção de fotos na parede do fundo dizem que o proprietário deve ser democrata: o sorriso largo do gostoso do Clinton estampado nas cinco fotos ladeadas por outras de cappuccinos e sanduíches.

A cada instante entra mais gente aqui.. E ei! O carro de bombeiros acabou de entrar na rua que era antes apenas de pedestres... Algum incêndio, provalmente... Eita! Mais outro! Parece que é sério. Mas ninguém presta atenção ou vai atrás pra ver o que tá acontecendo... Eita diferença de Sumé...

Quero voltar para o centro de Los Angeles, quase uma semana atrás: 700 Wilshire Blvd. Escritório do Hector Ortega. Nunca vi advogado tão tranquilo. Como na entrevista com Steve, Raquel conta a sua história. Já havíamos perguntado ao Steve o que aconteceria se ela e Nick decidissem deixar tudo e imediatamente voltar pro Brasil. Mesmo que seja isto o que eles queiram, é preciso esperar até a próxima audiência: 22 de janeiro. Lá, de acordo com a lei da imigração, ela já estará vivendo ilegalmente aqui por mais de um ano. Se sair, ou se for deportada, terá que passar dez anos até novamente poder pedir um visto nos consulados americanos. Mas Hector nos tranquiliza: podemos revogar isto (we can waive that). Absolutamente nada parece irremediável para ele. Diferentemente de Steve, nos disse que, caso o Nick não arrange emprego até o período de Raquel novamente poder pedir o ajuste de status, os pais deles podem entrar como patrocinadores (sponsors). Com a crise atual já não se consegue empregos com a rapidez de antes... É preciso as vezes mudar de profissão, adequar-se às novas demandas do mercado... quais? Tudo difícil: Maria e Jeannie insistem que nunca viveram crise tão profunda... O preço da gasolina está caindo um pouco... Ao invés de 4,70 dólares por galão, agora está em torno de 4 dólares, em alguns postos até um pouquinho menos.

Sim, Hector, quanto custa para defender a Raquel? “Aqui cobramos um preço fixo por cada tipo de serviço. No caso de Raquel seria 3.500 até a decisão final do juiz. Incluindo o preenchimentos de todos os formulários e a elaboração de petições e tudo o mais que seja necessário à sua defesa e obtenção de documentos necessários para a obtenção do green card.” E a forma de pagamento? “700 na assinatura do contrato e o resto dividido em prestações de 200 mensais.”

Ficamos bastante mais animadas:com a conversa, com o preço, com a forma de pagamento... Com um contrato que inclui tudo que precisa ser feito e que não cobra cada coisa separado, como no caso de Steve... A entrevista com o outro advogado estava marcada para as duas da tarde...

(a bateria do computador tá morrendo e a não há tomadas próximas desta mesa...)

2 comentários:

gabi disse...

"Mas ninguém presta atenção ou vai atrás pra ver o que tá acontecendo... Eita diferença de Sumé..." Não só de Sumé, mas do Brasil e mais especificamente, de Fortaleza...kkkk... Bjão!

Muad'Dib disse...

Bernadete,
Gostei muito destes dois episòdios del Precio de la Ignorancia, com uma pequena preferência para a parte I. Fiquei muito tocado pelo estilo, por sua maneira, bem sua, de mostrar a vida californiense através dessas narrações pessoais, ìntimas, “simples“ (em aparência, sò) e, por isso provavelmente, profundas ; que dà aquela espessura às coisas, aos acontecimentos.
A gente sempre fica num balanço entre uma visão quase kafkaiana do mundo estadunidente e da sua busca do dinheiro fàcil recolhido nas costas dos que não sabem das coisas da imigração, das regras infinitesimais que regem o direito de acesso à terra dos eleitos ; dos que deveriam saber que green card e uma certa ignorança não vão bem juntos ; e a leveza da vida entre pessoas que se amam, que convivem com muito calor humano.
Sempre hà esse jogo de oposições finas, as vezes apenas esbouçadas, intangìveis, capilares, nas suas narrações do cotidiano de là. Vou enunciar provavelmente uma tolice de primeira : mas suas crônicas me fazem pensar numa banda/cinta de Moebius. Sabe, aquele pedaço de papel cujas extremidades se juntam e que se dobra de tal maneira que, se segui-là com a ponta do dedo, nunca se sabe se estamos dentro ou fora do negòcio ; aliàs, nem um, nem outro existem mais. Pensei nisso fazendo um movimento de vai-vem entre o seu texto e a foto do “nô“ de estradas/freeways ; jà lhe escreveu isso : nos seus textos, sempre hà o dentro e o fora ; o exterior/mundo/consultòrio de advogacia/coffee X/casa da Maria, etc ; interagindo intimamente, por capilaridade, com o dentro/Bernadete/Kel/famìlia, etc. sem que se possa dizer, verdadeiramente, e felizmente, onde se situa o exterior ; onde se situa o interior ; se foram considerações sobre o fora que provocaram disgressões sobre o dentor ou vice-versa... Influência do Auster ?, efeito de escrita antropològica ? Não sei... acho que não... o não somente... algo de mais pessoal... um jeito singular de ser, de viver aquela forma de solidão que dà aquela disposição singular para captar certas vibrações do mundo, dos outros... mas, não se precisa definir... sò se precisa aproveitar... parabens... talvez chame-se o estilo... ; e é muito bom.
Como esse espaço é um espaço de comentàrio, de “fofocações“ livres e supostamente assumidas e recebidas, vou me arriscar com uma segunda tolice : jà percebi isso ; mas particularmente nesses dois ùltimos textos, me veio uma imagem de você : a duma “mãe-adolescente“. Explico : mãe, você é com certeza até a raiz do cabelo ; tudo que você està fazendo com a Kel o comprova além do necessàrio ; mais do que uma mãe, você pode tornar-se onça, caso sua progenitura esteja vìtima da injustiça ! Mas por outro lado, você tem esse jeito particular, “juvenil“, para contar as coisas, até as mais dramàticas, tensas; como se nunca tivesse perdido essa capacidade, pròpria aos adolescentes, de acolher a surpresa, de viver bem, recolher bem o “surpreendimento“. Efeito, ainda, da banda de Moebius, não sei, mas sem evocar explicitamente suas responsabilidades de mãe, você consegui descrever tudo o que você, enquanto mãe, està fazendo, agilizando, sem esconder as chateações, angustias, revoltas vividas, mas deixando margem ao anedòtico, aos questionamentos de surpresa sem que se possa perceber exatamente a passagem de umas para os outros ; são dois espaços que convivem ao mesmo tempo ; duas dimensões paralelas que circulam... chique... que sorte, né !
Sei, teria podido resumir tudo isso por um : Meu Deus do Céu, gostei muito !
Bom fim de viagem là ; muita sorte para a Kel, o Nick, toda sua famìlia. Oxalà que o preço de ignorança não esteja alto e matador de sonhos, de projetos pessoais. Abraço.
Muad’Dib.