O Evolucionismo do Século XIX e a Antropologia(1)
Bernadete Beserra
O evolucionismo do século XIX é o resultado de um processo social-histórico que vinha se gestando mais claramente desde as grandes descobertas marítimas do século XV. O sucesso do emprendimento Europeu de conquistar o mundo, associado com as questões filosóficas e morais que vinham sendo postas como resultado da convivência dos Europeus colonizadores com os povos colonizados cria o ambiente apropriado para a manifestação do que estamos considerando aqui evolucionismo do século XIX.
Interessa-nos aqui, sobretudo, explorar os movimentos da ciência nesse século e o lugar específico da antropologia, assim como o seu legado. A despeito dos debates entre ciência e fé serem pelo menos dois séculos anteriores ao século XIX, o estudo do homem e da sociedade não tinham ainda conquistado o estatuto dos estudos sobre a natureza, os quais, desde Bacon (1561-1626) e Descartes (1596-1650) começam a se orientar pelas regras do que chamamos hoje ciência moderna.
Essa ciência em gestação propõe-se a substituir o princípio de autoridade da fé e aceitar, como fonte de connhecimento, a experiência e a razão. Seria, portanto, através da observação que o cientista iria descobrir relações de causa e efeito entre os fenômenos sob observação. Através do estabelecimentos de relações mais complexas entre os fenômenos o cientista estaria pronto para formular hipóteses, leis e teorias científicas. Dessas generalizações são deduzidas consequências lógicas as quais são submetidas aos rigorosos testes experimentais. Se estes testes não confirmam a verdade contida nas proposições, novas observações são requeridas para se saber o que aconteceu de errado em qualquer fase da pesquisa. Ou seja, além de buscar as leis que estariam na base de todos os fenômenos, essa ciência tinha que produzir provas empíricas da sua explicação. Contra o caráter de certeza do pensamento religioso, esse novo tipo de conhecimento afirma ser mantido pela dúvida. Teses permanecem teses enquanto puderem ser verificadas como tal. Mas essa idéia de ciência estará ainda muito distante da afirmação de Popper de que o conhecimento cientifico é por natureza hipotético. Mas entre Bacon e Popper por quantas mudanças sociais e por quantos filósofos da ciência não passamos?
Até o século XIX esse conhecimento e as suas regras eram aplicados ao estudo de fenômenos físicos e naturais. O homem e a sociedade eram ainda objeto da especulação moral ou filosófica ou dos dogmas religiosos. Embora seja razoável observar que desde o século XVII, aqueles que se tornaram conhecidos com os iluministas, incluindo o próprio Descartes, começam a buscar explicações naturais sobre os fenômenos sociais. Não é demais lembrar que estudos tais como o de Locke, Rousseau, Hobbes, Montesquieu são até hoje referências de estudos contemporâneos e não apenas do ponto de vista histórico, ou seja, eles contêm elementos cujo alcance teórico chega até nós. Não é à toa, por exemplo, que Levi-Strauss elege Rousseau o pai das ciências sociais. E Evans-Pritchard e Raymond Aron elegem Montesquieu como um dos primeiros filósofos a racionarem sociologicamente. Esses filósofos estavam interessados basicamente nas mesmas questões que até hoje nos interessam. Eles estavam, por exemplo, tão interessados em entender as bases do poder quanto as da própria vida social. Eles também estavam interessados em compreender as diferenças entre os homens e o seu estatuto.
Fruto dessas circunstâncias que lhe antecederam, o século XIX anuncia sob diversos aspectos uma das vitórias mais definitivas do homem sobre Deus. Contra os desígnios de Deus, embora ainda em seu nome, o homem (europeu) conquistou os mares, expandiu seu império, fundou a indústria moderna.
É claro, como lembram os “ladrões” de Dickens e Swift ou as condições subhumanas de existência das classes trabalhadoras de Marx ou os suicidas de Durkheim, que as sociedades européia e americana do século passado não eram só esperança num futuro triunfante do homem, como Morgan em geral supunha. Ao contrário, serão justamente os problemas dessa sociedade que permitirão ou inspirarão a criação de explicações tais como a de Marx, Durkheim, Weber, Pareto, só para citar alguns dos nomes mais importantes. Parece-me (e a Aron, por exemplo) que os problemas mais que os triunfos levaram muitos desses filósofos a se dedicarem ao estudo das suas sociedades. Mas quando falamos em antropologia, ou nos seus primeiros fundadores, observamos que esses problemas não têm o mesmo peso que tem para aqueles cujo objeto de estudo é a própria sociedade. Os estudiosos que hoje estão relacionados à história da antropologia eram aqueles cujo interesse estava voltado para a compreensão de outras expressões da família humana (para usar uma expressao de Morgan). Usando como referência as suas sociedades e valorizando especialmente a tecnologia que teria levado ao conhecimento de outros povos e terras ( assim como à sua dominação), Morgan, Tylor, Bastian, McLennan e outros evolucionistas não tinham dúvidas de que a sociedade da qual eles observavam as outras estaria anos-luz distante daquelas.(2)
Como explicar tal situação? Ou seja como explicar que em sendo todos humanos sejamos tão diferentes? O desafio (como sugere Kaplan & Manners, 1966) não é simplesmente explicar tais diferenças, mas explicá-las buscando suas causas naturais, ou seja, saindo do domínio de Deus. É nesse contexto, cujos contornos todos nao podemos delinear em tao pouco tempo, que surge o evolucionismo.
Contra as garantias da religião que prega que as coisas são como são por vontade divina, os evolucionistas observam não apenas que as coisas não permanecem iguais para sempre, mas que elas são produzidas pelos homens nas suas relaçòes sociais e politicas. Mas, como o homem chegou a ser o que é?
Essa questão, naturalmente, já vinha sendo indagada desde as primeiras descobertas quando os descobridores observaram, contra as suas expectativas, que, pelo menos fisicamente, os homens eram bem semelhantes. Ou seja, os rabos, chifres e outros estranhezas que se esperava encontrar não foram encontrados. Em lugar disto, entretanto, era evidente a diferença entre esse homem recém-descoberto e os seus descobridores. Eles tinham outros hábitos, religiões, morais, etc. Embora os descobridores nunca vissem isto, ou seja, não observando comportamento semelhantes aos seus eles simplesmente afirmavam que esse homem diferente faltava uma filosofia, moral, etc. O fato é que essas famílias eram diferentes. Tal diferença, em função das circunstâncias da necessidade Européia de explorar e escravizar esse homem, foi interpretada como inferioridade e a questão, então, era explicar porque eles – os Europeus – eram superiores e os Outros – inferiores?
Refutando as explicações religiosas, os filósofos buscavam uma explicação natural para a história do homem. A questão era, entao, explicar, por intermédio da razão e das provas empíricas, como o homem alcançou a civilização. Como responder tal questão sem a ajuda de Deus? Noutras palavras, de que método científico necessitamos ?
Sem dúvida a noção de evolução foi de uma oportunidade decisiva. Como diz Mercier (1966) não há noção mais importante para a fundação da antropologia que a noção de evolução. Em outras palavras, a noção de evolução associada a dados etnográficos de primeira ou segunda mão e a sua utilização como provas empíricas é tudo que a antropologia necessita para começar a se estabelecer como uma ciência. Um objeto especifico: O estudo da evolução da humanidade. Uma teoria própria: As diferenças observáveis refletem diferentes momentos na escala da evolução humana. Um método próprio: a coleta e a classificação de costumes fora dos seus contextos.
A ordem era entender a historia da diversidade de diversos costumes, como fizeram, por exemplo, Buchofen e Morgan, em relação à origem da família. Ou Tylor (e depois Frazer) em relação à religião.
Vamos nos deter no caso de Morgan por considerarmos, como o Prof. Gene Anderson, que, entre os “old anthropologists” Morgan foi aquele cujo legado foi mais decisivo para a história da nossa disciplina. Vejamos porque.
Podemos começar dizendo que Morgan foi o mais pretensioso. Ao invés de procurar a evolução ou origem de um só costume, ele percebeu que o progresso da humanidade requer mais do que apenas inovações tecnológicas. Ou seja, embora ele tenha largamente relacionado evolução ou progresso com o desenvolvimento das “artes de subsistência”, ele tinha consciência de que todos os outros fatores que ele estudou em Ancient Society, quais sejam, diferentes tipos de família, governo e propriedade, estavam intrinsecamente relacionados uns com os outros. Em outras palavras: o progresso seria uma função de um desenvolvimento geral o qual atingia diversas instituições simultaneamente. Como ele diz claramente quando se refere à civilização: não é somente o alfabeto fonético que caracteriza os inicios da civilizaçào, precisamos entender o alfabeto fonético como fruto de idéias diversas e relacionadas. Tal perspectiva tem sido considerada holística por não reduzir a explicação de um processo a apenas uma causa. Foi certamente essa perspectiva holística associada ao seu materialismo – que o teria levado a observar a evolução da humanidade a partir das “artes da subsistência” – que teria levado sua obra a despertar tanto o interesse de Marx, e inclusive, a ser usada por Engels como provas empíricas das suas argumentações sobre as origens da família, do Estado e da propriedade privada.
Vejamos agora quais os postulados gerais assim como as explicações que Morgan propôs para entender a história do progresso da humanidade. Na introdução de Ancient Society, Morgan apresenta os postulados da sua teoria afirmando que, em geral, apesar das diferenças observadas nas diversas familias humanas, a historia da humanidade é a mesma em experiência, em progresso e em origem. Sua carreira tem sido essencialmente uma, embora transitando em diferentes mas uniformes canais em todos os continentes. Eis aqui a razão de se classificar o evolucionismo de Morgan como unilinear. Ele não apenas acreditava na idéia de unidade psíquica da humanidade, como ele também acreditava numa única carreira para todos. As diferenças observadas, portanto, entre as “famílias humanas” são, portanto, simplesmente explicadas pelo eixo temporal, como produto do progresso da história. “Eu sou hoje o que você será amanhã”
De que metodologias os evolucionistas lançaram mão para basearem esses postulados? Ou verificarem suas teorias?
O método evolucionista tornou-se conhecido como método comparativo. Após definirem através da observação das sociedades conhecidas em geral, mas especialmente a sociedade capitalista européia e/ou americana, que o elemento-chave ou a substância da evolução das sociedades humanas é a tecnologia, o método comparativo foi usado para comparar elementos tecnológicos entre diversas sociedades. Separados dos contextos em que eram produzidos, elementos ou costumes isolados eram comparados e classificados de acordo com as hipóteses dos pesquisadores como sobrevivências do passado, ou, simplesmente como manifestação da origem dos costumes presentes.
Essa idéia de sobrevivência, elaborada por Tylor, foi certamente uma das mais profícuas nas explicações evolucionistas. Tanto que depois, os funcionalistas, criticarão com um cuidado especial tal artifício teórico. (survivals)
Conduzido pela idéia de que as sociedades conservam sobrevivencias de suas formas passadas, Morgan, por exemplo, observando diferenças entre sistemas de parentesco classificatórios e descritivos, foi levado a inferir que, do ponto de vista do casamento, as sociedades “primitivas”eram promíscuas.
Mas, de um modo geral, todos os evolucionistas explicaram como falta o que era simplesmente diferente. Em geral, eles compararam todos os “bens”da civilização com a sua falta nas ditas sociedades primitivas. Deste modo, e novamente no caso de Morgan, é interessante ver como no seu esquema evolucionário “as famílias humanas” superam gradativamente suas faltas na medida em que passam de um estágio mais inferior para um imediatamente superior. Isto é, em geral eles passam do simples ao complexo, do indeterminado ao determinado, do confuso ao claro, etc. Obviamente, o complexo, o determinado e o claro eram os costumes tal como dados na civilização, ou seja, na sociedade do observador. Morgan classificou em três os estágios pelos quais a humanidade passaria: o primitivismo, a barbárie e, finalmente, a civilização. Os dois primeiros estágios contendo subdivisões as quais eram expressas pelas palavras alto, médio e baixo designando a passagem de níveis mais elementares para níveis mais complexos.
Acho que essas são, mui resumidadmente, as principais idéias relacionadas ao evolucionismo. Além disto, em em relação a Morgan especifivamente, eu poderia acrescentar que embora ele tenha se tornado conhecido pelo esquema de evolução proposto em Ancient Society (3) , seu legado para a antropologia está mais relacionado com a sua descoberta de que os sistemas de classificação de parentesco representam uma das formas mais efetivas de se entender as relacoes sociais especialmente no caso das sociedades primitivas. Ele fez tal descoberta quando estudando os iroqueses entre os quais viveu certos períodos da sua vida e dos quais era também advogado para defendê-los sobre questões de território. Dessas observações, ele também produziu uma das primeiras monografias fruto da observação direta de uma sociedade não européia.
Poderia acrescentar que a despeito da crítica, o evolucionismo foi o grande pontapé que as ciências humanas e sociais precisavam para começar a se estabelecerem como ciência. Referência indipensavel de toda a produção cientifica posterior, o evolucionismo definitivamente ganhou o primeiro “round” contra a fé: 1. Provou que os fenômenos sociais podem ser estudados de modo naturalista e 2. Criou o método comparativo como substituto para as técnicas experimental e de laboratório das ciências sociais. No caso específico da antropologia, o evolucionismo introduziu também a idéia, depois exaustivamente explorada pelos funcionalistas, do trabalho de campo. Além de que, uma parte considerável da nomenclatura e conceitos antropológicos foi produzida aí.
(1)Uma primeira versão deste texto foi apresentado à disciplina Antropologia I, no programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade da Califórnia, Riverside, em setembro de 1997.
(2)Lembro aqui o que Lowie’s History of Ethnology diz sobre esses filósofos que eram também médicos e advogados entre outras profissões. Olhando suas obras mais de perto, Lowie observa que todos eles de uma forma mais ou menos evidente estavam atentos para a compreensão de cada sociedade como um todo, ou seja, eles sabiam que aqueles fatos que eles separavam dos seus contextos só poderiam ser compreendidos verdadeiramente dentro dos seus contextos. Embora eles tivessem essa percepção, eles, de fato, não estavam interessados em compreende-los contextualmente mas como elementos parte de uma evolução histórica e geral.
(3) Lowie atribui isto aos usos de Ancient Society por Marx e Engels e sua consequente difusão nos países socialistas
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
sábado, 25 de julho de 2009
Estróina e Supérfluo & Breve réquiem a Igor Bezerra
(http://estroinaesuperfluo.blogspot.com)
Somente agora descobri que Igor também tinha um blog. Posso, então, continuar descobrindo-o independentemente de nos encontrarmos e nos tocarmos com os olhos ou as palavras. É para o blog que me transporto correndo logo que desligo o telefone depois de longa conversa com Kátia, sua mãe e minha irmã mais velha. Há dois meses Igor morreu tragicamente em Salamanca, onde fazia o mestrado em Estética. Toda morte próxima é um choque que paralisa e se propaga acordando lembranças e medos. Quando Laís me telefonou dando a notícia eu o vi diante de mim: contando suas andanças pelas artes e Filosofia. Ele me lembrava muito de mim mesma em idade próxima à sua porque eu também não parava de me perguntar sobre as coisas do mundo e da alma... e nem de fumar, apesar de ser também asmática! Pensei quase imediatamente nos meus filhos, Lucas, Raquel e Caio, que têm idades próximas e que espero que vivam para sempre. Ele tinha 23 anos incompletos.
Kátia me indica particularmente um texto: Impressões de Salamanca (http://estroinaesuperfluo.blogspot.com/2008/12/impresses-de-salamanca.html). É a partir do Igor que encontro lá que busco o outro: dos encontros breves e esporádicos em João Pessoa. Parafraseando Camus e Benjamim, Igor dá uma lição sobre o desbravamento das cidades. Contra a perspectiva “sob controle”, “guiada” do turista, ele propõe que uma cidade se conhece deixando-se nela perder. E afirma: “a questão é perder-se, como acontece quando se tenta encontrar um bar ao qual já se tenha ido, mas ao qual não se sabe voltar, e, então, percorre-se todas as direções que a Plaza Mayor permite, para que assim se chegue ao lugar desejado sem que se pergunte nada a ninguém. E parte-se da Plaza Mayor porque sempre se faz necessário que se estabeleça um ponto donde começar a considerar as demais coisas.”
Concordo com você, querido, a questão é mesmo perder-se... Ter a coragem de se entregar ao que nos oferece a existência, curta ou longa. O seu blog tornou-se uma dessas cidades onde também me darei o luxo de me perder. Caminhando pelas suas palavras e idéias, sinto-o ainda próximo, ainda vivo. Quase aqui, do meu lado, perguntando se li o Benjamim da arte no tempo da reprodutibilidade técnica. Quase aqui me mostrando possibilidades que as minhas andanças não haviam me apresentado...
Somente agora descobri que Igor também tinha um blog. Posso, então, continuar descobrindo-o independentemente de nos encontrarmos e nos tocarmos com os olhos ou as palavras. É para o blog que me transporto correndo logo que desligo o telefone depois de longa conversa com Kátia, sua mãe e minha irmã mais velha. Há dois meses Igor morreu tragicamente em Salamanca, onde fazia o mestrado em Estética. Toda morte próxima é um choque que paralisa e se propaga acordando lembranças e medos. Quando Laís me telefonou dando a notícia eu o vi diante de mim: contando suas andanças pelas artes e Filosofia. Ele me lembrava muito de mim mesma em idade próxima à sua porque eu também não parava de me perguntar sobre as coisas do mundo e da alma... e nem de fumar, apesar de ser também asmática! Pensei quase imediatamente nos meus filhos, Lucas, Raquel e Caio, que têm idades próximas e que espero que vivam para sempre. Ele tinha 23 anos incompletos.
Kátia me indica particularmente um texto: Impressões de Salamanca (http://estroinaesuperfluo.blogspot.com/2008/12/impresses-de-salamanca.html). É a partir do Igor que encontro lá que busco o outro: dos encontros breves e esporádicos em João Pessoa. Parafraseando Camus e Benjamim, Igor dá uma lição sobre o desbravamento das cidades. Contra a perspectiva “sob controle”, “guiada” do turista, ele propõe que uma cidade se conhece deixando-se nela perder. E afirma: “a questão é perder-se, como acontece quando se tenta encontrar um bar ao qual já se tenha ido, mas ao qual não se sabe voltar, e, então, percorre-se todas as direções que a Plaza Mayor permite, para que assim se chegue ao lugar desejado sem que se pergunte nada a ninguém. E parte-se da Plaza Mayor porque sempre se faz necessário que se estabeleça um ponto donde começar a considerar as demais coisas.”
Concordo com você, querido, a questão é mesmo perder-se... Ter a coragem de se entregar ao que nos oferece a existência, curta ou longa. O seu blog tornou-se uma dessas cidades onde também me darei o luxo de me perder. Caminhando pelas suas palavras e idéias, sinto-o ainda próximo, ainda vivo. Quase aqui, do meu lado, perguntando se li o Benjamim da arte no tempo da reprodutibilidade técnica. Quase aqui me mostrando possibilidades que as minhas andanças não haviam me apresentado...
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Seminário Racismo e Ações Afirmativas no Ceará
Seminário Racismo e Ações Afirmativas no Ceará
26 e 27 de maio de 2009
26/05 (Terça-feira)
Manhã: 9:30h – 12h
Abertura e Coordenação do Debate: Mirtes Amorim, Bernadete Beserra e Sylvio Gadelha
Conferência de abertura: Crítica à noção de identidade nas Ciências Sociais.
Eduardo Diatahy B. de Menezes (Ciências Sociais - UFC)
Tarde: 14:30 – 17:30h
Mesa-Redonda 1: Cearensidade e Negritude
Abertura e Coordenação: Bernadete Beserra
Eurípedes Antônio Funes (História – UFC)
Ruy Vasconcelos (Ciências Sociais - UFC)
Antônio Vilamarque de Sousa (Prefeitura Municipal de Fortaleza)
Frank Ribard (História – UFC)
27/05 (quarta-feira)
Manhã: 9 – 12h
Mesa-redonda 1: Minorias, política e ações afirmativas.
Abertura e Coordenação: Sylvio Gadelha (Educação – UFC)
Isabelle Braz Peixoto da Silva (Ciências Sociais – UFC)
Maria Auxiliadora de Paula Holanda (Educação – UFC)
José Hilário Ferreira Sobrinho (Faculdade Ateneu)
Mirtes Amorim (Filosofia - UFC)
Tarde: 14:30 – 17:30h
Mesa-redonda 2: O debate sobre cotas na UFC
Abertura e Coordenação: Sandra Petit (Educação – UFC)
Henrique Cunha Jr. (Educação - UFC)
Bernadete Beserra (Educação – UFC)
Pedro Vítor Gadelha Mendes (Ciências Sociais – UFC)
André Costa - (OAB-CE e Instituto Afirmação de Direitos-Igualdade e Justiça)
Rui Martinho Rodrigues (debatedor)
Inscrições e informações:
E-mail: cearensidadeenegritude@hotmail.com
Fone: 8783 4529
26 e 27 de maio de 2009
26/05 (Terça-feira)
Manhã: 9:30h – 12h
Abertura e Coordenação do Debate: Mirtes Amorim, Bernadete Beserra e Sylvio Gadelha
Conferência de abertura: Crítica à noção de identidade nas Ciências Sociais.
Eduardo Diatahy B. de Menezes (Ciências Sociais - UFC)
Tarde: 14:30 – 17:30h
Mesa-Redonda 1: Cearensidade e Negritude
Abertura e Coordenação: Bernadete Beserra
Eurípedes Antônio Funes (História – UFC)
Ruy Vasconcelos (Ciências Sociais - UFC)
Antônio Vilamarque de Sousa (Prefeitura Municipal de Fortaleza)
Frank Ribard (História – UFC)
27/05 (quarta-feira)
Manhã: 9 – 12h
Mesa-redonda 1: Minorias, política e ações afirmativas.
Abertura e Coordenação: Sylvio Gadelha (Educação – UFC)
Isabelle Braz Peixoto da Silva (Ciências Sociais – UFC)
Maria Auxiliadora de Paula Holanda (Educação – UFC)
José Hilário Ferreira Sobrinho (Faculdade Ateneu)
Mirtes Amorim (Filosofia - UFC)
Tarde: 14:30 – 17:30h
Mesa-redonda 2: O debate sobre cotas na UFC
Abertura e Coordenação: Sandra Petit (Educação – UFC)
Henrique Cunha Jr. (Educação - UFC)
Bernadete Beserra (Educação – UFC)
Pedro Vítor Gadelha Mendes (Ciências Sociais – UFC)
André Costa - (OAB-CE e Instituto Afirmação de Direitos-Igualdade e Justiça)
Rui Martinho Rodrigues (debatedor)
Inscrições e informações:
E-mail: cearensidadeenegritude@hotmail.com
Fone: 8783 4529
segunda-feira, 5 de janeiro de 2009
De viagens e amores:
Céus do Sertão - Viajando para Sumé
À Emma, aniversariante de amanhã, e Gabi, que continuam esperando (e cobrando!) novas postagens
E aí 2009 chegou... E também cheguei eu aqui, finalmente, depois de muita viagem! O ano da graça de 2008, que começou meio atrapalhado, terminou cheio de presentes e promessas. Aprendi muita coisa sobre este mundo vasto mundo e também sobre o meu coração. A publicação de Solidão Equilibrista e o encontro com Muad’Dib foram os presentes do segundo semestre. Conto hoje sobre a publicação e lançamentos de Solidão Equilibrista. Amanhã ou depois, conto sobre Muad’Dib.
Como expliquei na crônica do dia 04 de setembro de 2008, Solidão Equilibrista foi uma “viagem” que durou quase 30 anos. Uma longa viagem, portanto. Há - naquele livrinho - poemas que foram gestados e paridos nos fins da década de 1970! Aquela poesia foi o meu candeeiro nos momentos de escuridão vividos aqui e ali ao longo dessas décadas nas três das cinco cidades mais importantes da minha vida: Sumé, Campina Grande e Fortaleza. Meio por acaso, tive o privilégio de lançá-lo em todas essas cidades.
Campina Grande foi a primeira delas. Não me lembro exatamente como se desenvolveu a idéia de lançar Solidão Equilibrista primeiro lá, mas sei que nenhuma cidade poderia ter sido mais apropriada para isto do que ela. Talvez o motivo mais importante seja mesmo o fato de que foi lá que encontrei Álvaro e de que foi ele que me apresentou ao mundo da poesia tal como o compreendo hoje. Cláudia, a quem anunciei primeiro a publicação do livro, contou para Lúcia, num encontro casual no shopping, e rapidamente as duas organizaram tudo: conseguiram convites, coquetel, entrevista na televisão e até o Lemuel Guerra, diretor do Centro de Humanidades da UFCG, tocando piano!
Quis que fosse Marcos Agra o apresentador do livro. Marcos foi o melhor professor da minha vida. Conseguia transformar a gramática portuguesa numa viagem cheia de mistérios e fascínios! Me impressionou tanto que até hoje procuro melhorar como professora à sua imagem e semelhança. Mais do que um professor exemplar, Marcos era uma das mais importantes referências das letras campinenses do meu tempo e provavelmente continua sendo até hoje. O seu senso crítico aguçado e a minha confiança no seu discernimento poético me diziam que se minha poesia passasse pela sua aprovação, eu poderia finalmente me considerar uma poetisa. Toda essa admiração me fez hesitar um pouco antes de convidá-lo a apresentar o livro, mas finalmente criei coragem e convidei. Ele aceitou, mas, como disse no discurso de apresentação, também tinha receios. Desde que saí de Campina Grande, em 1986, raramente nos encontramos e sabíamos um do outro apenas através de terceiros. Para ele, era uma surpresa que eu aparecesse com um livro de poesia quando nos nossos tempos de amigos eu nunca lhe revelara qualquer intenção de me expressar sob essa forma literária. Assim, aceitou o convite, mas prometeu para si mesmo que, se não gostasse do livro, inventaria uma dor de barriga qualquer e não iria apresentá-lo.
Felizmente foi e fez a apresentação com tanto entusiasmo que nunca vou me perdoar por não tê-la gravado. Ainda hoje, quase três meses depois do lançamento, as palavras de Marcos sobre a minha poesia ainda acariciam minha alma. Também me acariciou a alma a apresentação que Lúcia Couto fez do meu outro livro, Brasileiros nos Estados Unidos, também lançado na ocasião. A propósito do comentário introdutório de Lemuel Guerra, que dizia que o público tinha o prazer de simultaneamente conhecer duas faces da autora, a da cientista social e a da poetisa, Lúcia discordava dizendo que também na obra acadêmica eu mostrava a minha face poética. Se não me trai a memória, ela disse algo assim: “os dois trabalhos são filhos do mesmo olhar poético, de uma mesma forma de observar e interpretar o mundo, é isso que torna Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos uma obra acessível a qualquer um.
Além da presença dos amigos mais próximos e colaboradores da obra, como Eduardo e Erika Guimarães, que criaram a capa de Solidão Equilibrista, também apareceram parentes e amigos que eu não encontrava há muito tempo, dentre eles, meu primos queridos, Cleumberto e João Bosco Reinaldo. Edna Guedes, mãe de Álvaro, e seus filhos Luiz Antônio e Rosa, também me deram a enorme honra das suas presenças. Encontrar Edna era como entrar na máquina do tempo e também encontrar Álvaro. Acho que a força da reunião com ela, seus filhos, Claudia e Marcos Agra simultaneamente materializava um pouco Álvaro. Assim como a reunião com Mãe, Klênia, Betânia, Wallas, Mariana, Beatriz, Nilda, Lola e René era também materializar um pouco Fábio.
Em Fortaleza, na noite de 4 de novembro de 2008, o lançamento também foi uma festa de amigos. Ireleno Benevides e Olganira Mota, os apresentadores, assim como Marcos Agra, em Campina Grande, foram enormemente generosos com suas palavras e interpretações da autora e da sua poesia. Impressionei-me com a viagem que Ireleno fez pelo mundo da poesia e da crítica literária a partir dos poemas de Solidão Equilibrista. Ri e quase chorei com a reinvenção do livro e da autora proposta por Olganira. Mas o que me comoveu mesmo foi ver os meus poemas ganhando vida na boca e nas interpretações dos meus amigos dos Poemas Violados. Aproveito para agradecer a Nilze Costa e Silva, Manoel César, Gervana Nobre, Fernando Néri, Olganira Mota, Theofilo Gravinis, Italo Rovere, Bento Filho, Expedito Maurício e Webster pela interpretação primorosa. A festa do lançamento foi dedicada a Caio Brito, meu filho e aniversariante do dia, e a Fábio Gutemberg, meu irmão historiador, que gostava de festas e amigos.
Dos três lançamentos, o de Sumé foi o que ensejou a viagem mais longa e mais profunda... Mas é também uma história que se mistura com outras e merece uma crônica à parte, que escreverei proximamente. Por enquanto, aproveito que ainda estamos nos primeiros dias deste ano para desejar a todos um ótimo 2009. E lembrar que, apesar das dificuldades que se anunciam na política e economia internacionais, a astrologia acredita que a entrada de júpiter em aquário traz mais esperança do que desespero.
À Emma, aniversariante de amanhã, e Gabi, que continuam esperando (e cobrando!) novas postagens
E aí 2009 chegou... E também cheguei eu aqui, finalmente, depois de muita viagem! O ano da graça de 2008, que começou meio atrapalhado, terminou cheio de presentes e promessas. Aprendi muita coisa sobre este mundo vasto mundo e também sobre o meu coração. A publicação de Solidão Equilibrista e o encontro com Muad’Dib foram os presentes do segundo semestre. Conto hoje sobre a publicação e lançamentos de Solidão Equilibrista. Amanhã ou depois, conto sobre Muad’Dib.
Como expliquei na crônica do dia 04 de setembro de 2008, Solidão Equilibrista foi uma “viagem” que durou quase 30 anos. Uma longa viagem, portanto. Há - naquele livrinho - poemas que foram gestados e paridos nos fins da década de 1970! Aquela poesia foi o meu candeeiro nos momentos de escuridão vividos aqui e ali ao longo dessas décadas nas três das cinco cidades mais importantes da minha vida: Sumé, Campina Grande e Fortaleza. Meio por acaso, tive o privilégio de lançá-lo em todas essas cidades.
Campina Grande foi a primeira delas. Não me lembro exatamente como se desenvolveu a idéia de lançar Solidão Equilibrista primeiro lá, mas sei que nenhuma cidade poderia ter sido mais apropriada para isto do que ela. Talvez o motivo mais importante seja mesmo o fato de que foi lá que encontrei Álvaro e de que foi ele que me apresentou ao mundo da poesia tal como o compreendo hoje. Cláudia, a quem anunciei primeiro a publicação do livro, contou para Lúcia, num encontro casual no shopping, e rapidamente as duas organizaram tudo: conseguiram convites, coquetel, entrevista na televisão e até o Lemuel Guerra, diretor do Centro de Humanidades da UFCG, tocando piano!
Quis que fosse Marcos Agra o apresentador do livro. Marcos foi o melhor professor da minha vida. Conseguia transformar a gramática portuguesa numa viagem cheia de mistérios e fascínios! Me impressionou tanto que até hoje procuro melhorar como professora à sua imagem e semelhança. Mais do que um professor exemplar, Marcos era uma das mais importantes referências das letras campinenses do meu tempo e provavelmente continua sendo até hoje. O seu senso crítico aguçado e a minha confiança no seu discernimento poético me diziam que se minha poesia passasse pela sua aprovação, eu poderia finalmente me considerar uma poetisa. Toda essa admiração me fez hesitar um pouco antes de convidá-lo a apresentar o livro, mas finalmente criei coragem e convidei. Ele aceitou, mas, como disse no discurso de apresentação, também tinha receios. Desde que saí de Campina Grande, em 1986, raramente nos encontramos e sabíamos um do outro apenas através de terceiros. Para ele, era uma surpresa que eu aparecesse com um livro de poesia quando nos nossos tempos de amigos eu nunca lhe revelara qualquer intenção de me expressar sob essa forma literária. Assim, aceitou o convite, mas prometeu para si mesmo que, se não gostasse do livro, inventaria uma dor de barriga qualquer e não iria apresentá-lo.
Felizmente foi e fez a apresentação com tanto entusiasmo que nunca vou me perdoar por não tê-la gravado. Ainda hoje, quase três meses depois do lançamento, as palavras de Marcos sobre a minha poesia ainda acariciam minha alma. Também me acariciou a alma a apresentação que Lúcia Couto fez do meu outro livro, Brasileiros nos Estados Unidos, também lançado na ocasião. A propósito do comentário introdutório de Lemuel Guerra, que dizia que o público tinha o prazer de simultaneamente conhecer duas faces da autora, a da cientista social e a da poetisa, Lúcia discordava dizendo que também na obra acadêmica eu mostrava a minha face poética. Se não me trai a memória, ela disse algo assim: “os dois trabalhos são filhos do mesmo olhar poético, de uma mesma forma de observar e interpretar o mundo, é isso que torna Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos uma obra acessível a qualquer um.
Além da presença dos amigos mais próximos e colaboradores da obra, como Eduardo e Erika Guimarães, que criaram a capa de Solidão Equilibrista, também apareceram parentes e amigos que eu não encontrava há muito tempo, dentre eles, meu primos queridos, Cleumberto e João Bosco Reinaldo. Edna Guedes, mãe de Álvaro, e seus filhos Luiz Antônio e Rosa, também me deram a enorme honra das suas presenças. Encontrar Edna era como entrar na máquina do tempo e também encontrar Álvaro. Acho que a força da reunião com ela, seus filhos, Claudia e Marcos Agra simultaneamente materializava um pouco Álvaro. Assim como a reunião com Mãe, Klênia, Betânia, Wallas, Mariana, Beatriz, Nilda, Lola e René era também materializar um pouco Fábio.
Em Fortaleza, na noite de 4 de novembro de 2008, o lançamento também foi uma festa de amigos. Ireleno Benevides e Olganira Mota, os apresentadores, assim como Marcos Agra, em Campina Grande, foram enormemente generosos com suas palavras e interpretações da autora e da sua poesia. Impressionei-me com a viagem que Ireleno fez pelo mundo da poesia e da crítica literária a partir dos poemas de Solidão Equilibrista. Ri e quase chorei com a reinvenção do livro e da autora proposta por Olganira. Mas o que me comoveu mesmo foi ver os meus poemas ganhando vida na boca e nas interpretações dos meus amigos dos Poemas Violados. Aproveito para agradecer a Nilze Costa e Silva, Manoel César, Gervana Nobre, Fernando Néri, Olganira Mota, Theofilo Gravinis, Italo Rovere, Bento Filho, Expedito Maurício e Webster pela interpretação primorosa. A festa do lançamento foi dedicada a Caio Brito, meu filho e aniversariante do dia, e a Fábio Gutemberg, meu irmão historiador, que gostava de festas e amigos.
Dos três lançamentos, o de Sumé foi o que ensejou a viagem mais longa e mais profunda... Mas é também uma história que se mistura com outras e merece uma crônica à parte, que escreverei proximamente. Por enquanto, aproveito que ainda estamos nos primeiros dias deste ano para desejar a todos um ótimo 2009. E lembrar que, apesar das dificuldades que se anunciam na política e economia internacionais, a astrologia acredita que a entrada de júpiter em aquário traz mais esperança do que desespero.
Marcadores:
Poemas Violados,
Solidão Equilibrista,
Sumé
terça-feira, 18 de novembro de 2008
Rumo a Sumé - Convite para Lançamento de Livros
Aí Sonielson fez o convite que eu queria fazer: lançarmos juntos, em Sumé, os nossos livros. Aproveitar o ensejo do dia 8 de dezembro, festa de padroeira... Aproveitar a desculpa dos livros para visitar Sumé, ponto de partida e laboratório poético... Aproveitar e reencontrar velhos amigos... Então, sim, Sumé, próximo destino. Você está convidado para chegar lá. Dia 6 de dezembro, às 16 horas, no São Tomé Esporte Clube. Os livros a se lançar são os que aparecem acima, no convite.
Eu e Sonielson nos apresentaremos um ao outro... Brevemente, claro, porque o que importa mais é o bate-papo informal com os amigos e velhos conhecidos que esperamos encontrar por lá.
Obrigadíssima, Sonielson, por esse empurrãozinho...
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Triste Fortaleza, ó quão dessemelhante...
O verso do título é de Gregório de Mattos, meados do século XVII e, em vez de Fortaleza, lia-se “Triste Bahia”. Mas é Fortaleza e as suas dessemelhanças (e inospitalidade) que me motivam agora, tempo de campanha para prefeito, a escrever um pouco.
Vejo, sinto e me angustio todos os dias com as dessemelhanças em Fortaleza. Elas se expressam dos mais diversos modos e circunstâncias, mas é ao tráfego que me dedicarei aqui. Todos os dias me coloco no lugar dos pedestres que têm de atravessar a BR-116 à altura da Aerolândia. São milhares de trabalhadores que cotidianamente, no início da manhã, se arriscam entre os carros em alta velocidade para não chegarem atrasados nos seus empregos.
Não tenho a estatística dos mortos, mas certamente aquele é um dos nossos mais importantes “pontos de óbito”. Do trecho que me concerne, viaduto da Oliveira Paiva, até a rotatória da Aguanambi, há apenas uma passarela. Isto já seria, em si, uma agressão àqueles trabalhadores. Mas a dessemelhança, o paradoxo, a loucura mesmo, tornam-se ainda mais visíveis quando observamos o espetáculo seguinte: no centro da rotatória da Aguanambi há uma praça que eu não creio que seja utilizada por mais de 10 pessoas por dia. Para falar a verdade, passo ali em diferentes horários do dia e jamais vi uma única pessoa!
Curiosamente há ali uma passarela. Uma passarela enorme, esquisita, provavelmente cara, ligando nada a lugar nenhum e, logo ali do lado, quilômetros de BR-116, com pesado tráfego de pedestres, sem passarela nenhuma. Acho particularmente curioso o fato de que a tal passarela para a praça da rotatória tenha sido construída no governo de Luizianne Lins. Não é interessante que com uma política supostamente voltada para os pobres, questões graves como essa não sejam resolvidas? Será a passarela para a praça fantasma da rotatória um dos monumentos da lista dos necessários à construção da Fortaleza “bela”? Não seria de outros slogans e ações que precisamos?
Vejo, sinto e me angustio todos os dias com as dessemelhanças em Fortaleza. Elas se expressam dos mais diversos modos e circunstâncias, mas é ao tráfego que me dedicarei aqui. Todos os dias me coloco no lugar dos pedestres que têm de atravessar a BR-116 à altura da Aerolândia. São milhares de trabalhadores que cotidianamente, no início da manhã, se arriscam entre os carros em alta velocidade para não chegarem atrasados nos seus empregos.
Não tenho a estatística dos mortos, mas certamente aquele é um dos nossos mais importantes “pontos de óbito”. Do trecho que me concerne, viaduto da Oliveira Paiva, até a rotatória da Aguanambi, há apenas uma passarela. Isto já seria, em si, uma agressão àqueles trabalhadores. Mas a dessemelhança, o paradoxo, a loucura mesmo, tornam-se ainda mais visíveis quando observamos o espetáculo seguinte: no centro da rotatória da Aguanambi há uma praça que eu não creio que seja utilizada por mais de 10 pessoas por dia. Para falar a verdade, passo ali em diferentes horários do dia e jamais vi uma única pessoa!
Curiosamente há ali uma passarela. Uma passarela enorme, esquisita, provavelmente cara, ligando nada a lugar nenhum e, logo ali do lado, quilômetros de BR-116, com pesado tráfego de pedestres, sem passarela nenhuma. Acho particularmente curioso o fato de que a tal passarela para a praça da rotatória tenha sido construída no governo de Luizianne Lins. Não é interessante que com uma política supostamente voltada para os pobres, questões graves como essa não sejam resolvidas? Será a passarela para a praça fantasma da rotatória um dos monumentos da lista dos necessários à construção da Fortaleza “bela”? Não seria de outros slogans e ações que precisamos?
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Sobre a paixão
(in Solidão Equilibrista, Edições UFC, 2008)
De que serve a paixão
senão para transmutar o dia em borboletas,
ruídos em vagalumes,
e nuvens em deuses, cometas, zumbis?
de que serve a paixão
senão para me envolver nessa nuvem de desejo
e me transformar numa mulher esguia, leve,
com idéias e desejos se desprendendo de minha alma
como bolhas de sabão?
de que serve a paixão
senão para nos transformar um pouco?
nos carregar com as suas vagas para o meio do mar,
e nos abandonar lá, no escuro,
sem vento e sem prancha?
de que serve a paixão
senão para ver a dor tomando todos os cômodos da casa?
todos os poros das paredes, móveis, lençóis?
escorrendo devagar por todas as frestas e ralos?
de que serve a paixão
senão para deixar este deserto maior do que o Saara dentro de mim?
É assim: quando se vai a paixão
resta um oceano inteiro a se navegar...
O mundo se apresenta em vestes menos espalhafatosas;
meio cinzento,
meio rosa-clarinho,
às vezes amarelo-pálido...
breves visões de oásis...
Eu, me olhando no espelho...
e me enxergando
outra vez...
De que serve a paixão
senão para transmutar o dia em borboletas,
ruídos em vagalumes,
e nuvens em deuses, cometas, zumbis?
de que serve a paixão
senão para me envolver nessa nuvem de desejo
e me transformar numa mulher esguia, leve,
com idéias e desejos se desprendendo de minha alma
como bolhas de sabão?
de que serve a paixão
senão para nos transformar um pouco?
nos carregar com as suas vagas para o meio do mar,
e nos abandonar lá, no escuro,
sem vento e sem prancha?
de que serve a paixão
senão para ver a dor tomando todos os cômodos da casa?
todos os poros das paredes, móveis, lençóis?
escorrendo devagar por todas as frestas e ralos?
de que serve a paixão
senão para deixar este deserto maior do que o Saara dentro de mim?
É assim: quando se vai a paixão
resta um oceano inteiro a se navegar...
O mundo se apresenta em vestes menos espalhafatosas;
meio cinzento,
meio rosa-clarinho,
às vezes amarelo-pálido...
breves visões de oásis...
Eu, me olhando no espelho...
e me enxergando
outra vez...
Brasileiras e samba em Chicago: modelando-se à luz do desejo do outro
(Este trabalho foi apresentado no Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de Agosto de 2008. Disponível também no http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST65/Bernadete_Beserra_65.pdf)
Taís descobriu-se sambista por acaso. Convidada por um irmão recém-chegado de Londres, aventurou-se a sair de Mount Prospect à noite para uma visita ao Mad Bar, onde o Chicago Samba se apresentava às quintas-feiras. Acostumada à sua vida mais tranquila e confortável no subúrbio, Chicago era, até então, algo distante, que não fazia muito parte da sua vida, a não ser durante o período de fim de ano, quando vinha com amigas olhar as luzes e a decoração natalinas.
Da primeira dessas visitas, um trauma. Estacionou o carro numa das ruas que desembocam no Lago Michigan e quando voltou para pegá-lo, ele havia sumido. Foi assim aprendendo as regras daquela cidade bonita, mas intrigante. Inóspita? Não, hoje ela aprendeu que não e não consegue acreditar que não viu aquela placa de estacionamento proibido ali, no Jackson Boulevard, a um quarteirão do lago.
Feliz de reencontrar naquele bar e no Chicago Samba um pouco de Brasil, começou a dançar. Mas era esquisito estar dançando samba. Embora carioca, nunca gostara de samba. Gostava de rock. E de frevo e forró, quando visitava a família da sua mãe no nordeste. Surpreendeu-se quando Mara, mulher de um dos componentes da banda, aproximou-se elogiando sua performance: você dança muito bem! Antes de compreender a extensão do significado do elogio, foi surpreendida com o convite:
– Você não quer fazer um show com a gente?
– Eu? Dançar pelada? Não! E de biquini também não!!
Mas Mara logo explicou que era um show de carnaval, com fantasias. E Taís foi. Ganhou 150 dólares para dançar menos de duas horas. Como não havia se dado conta dessa possibilidade antes? Shows privados, como aquele, eram esporádicos, mas havia o Chicago Samba ali, no Mad Bar semanalmente. Começou a dançar para o grupo em 1996, quando sua única filha não tinha completado ainda o seu primeiro ano de vida. Logo começou a receber convites para outros shows e a também confeccionar as suas próprias fantasias. Afirma, orgulhosa, que pouquíssimas vezes precisou usar biquini: “usava sainhas, maiôs com lantejoulas...” O negócio foi crescendo na mesma medida em que seu casamento foi desmoronando. Começou a viajar para o Brasil para comprar mais fantasias. Mas aí o Chicago Samba decidiu dispensá-la. Alegaram que ela estava aparecendo mais do que eles e que não apreciavam a idéia de que uma banda de músicos se tranformasse numa banda de “tchan”. Ficou arrasada, sem saber o que fazer com tanta fantasia! Mas ficou especialmente triste porque aquele show estava se transformando na sua razão de viver. Seu casamento estava uma monotonia insuportável. Não aguentava mais o seu marido americano, preguiçoso, conservador, sem planos para o futuro e concentrado apenas na televisão e na cerveja. Continuou indo para a apresentação semanal do Chicago Samba, mas não mais vestida em fantasias carnavalescas. Apesar disso, continuou a receber convites para dançar em festas privadas.
Assim inicia a história de dançarina de Taís, semelhante à de várias outras brasileiras que se envolveram com o mundo do samba em Chicago. A diferença é que Taís dança e promove a cultura brasileira em Chicago há mais de uma década e isto é extraordinário num negócio em que a rotatividade é tão grande. O samba surge como um interesse de passagem na vida de muitas brasileiras ou não-brasileiras que com ele se envolvem. Talvez porque não reivindica dessas dançarinas mais do que algumas horas de dedicação semanais, o samba é muito diferente da bossa-nova e da capoeira que, mais exigentes, requerem quase uma conversão. Mas um dos problemas da continuidade das mulheres no negócio do samba são os maridos. Eles não querem suas mulheres se expondo publicamente, jogando charme para um público indistinto. O comum, portanto, é que as mulheres fiquem com o samba até encontrarem marido. Raros os casos dos que não se incomodam, que vêem a dança como um trabalho, uma arte.
Após o divórcio, Taís veio morar no que ela afirma que é o quadrilátero de Chicago que mais concentra brasileiros. Da Grand Ave à Irving Park e da Lake Shore Drive à Cícero. Taís é empresária de um negócio “étnico” numa cidade em que praticamente não há demanda étnica porque a população brasileira é muito pequena. O censo americano calcula que há em torno de cinco mil brasileiros entre Chicago e arredores, mas o Ministério das Relações Exteriores apresenta um número maior, quase o dobro. Ela garante que a realidade está mais próxima da estimativa americana. Além de artista e de empresária do samba, trabalha com a promoção de shows e garante que tem uma idéia bastante razoável da população brasileira na cidade: quatro mil permanentes e dois mil flutuantes.
Tendo sido casada com um americano branco por quase uma década e morando no midwest por mais de duas, Taís garante que conhece a cultura americana; que sabe como promover a cultura brasileira num ambiente conservador como aquele. Não é simples, não é fácil. Lembra de episódios dramáticos que estão na base do seu aprendizado: num dos primeiros shows que dançou de biquini assistiu assustada uma platéia de quatrocentas pessoas ir embora. Somente restaram a banda e as dançarinas desapontadas.
- Eu havia sido contratada pela Leda. Não era um show que eu estava agenciando. Mas eu jurei pra mim que nunca mais faria aquilo: eu vou apagar essa imagem! E o problema desses grupos de samba que há por aí apresentando mulher pelada é que isto assusta as pessoas, ninguém contrata mais. E o meu show não. Eles gostam: querem mais. E por que escolhi este lado? Porque a mulher brasileira é muito mal vista: toda vez que se fala em mulher brasileira a imagem que vem é mulher pelada na avenida. Então, o meu trabalho tenta fugir um pouco dessa imagem, desse trivial de mulher pelada com uma pena na cabeça. Inclusive ratificar essa idéia é muito mais simples, muito mais barato: um monte de biquininhos e mulheres rebolando com penas na cabeça. Só que aqui na região não ia vender nada, que aqui não vende isso! A gente tem que entender muito da cultura deles para trabalhar aqui. Eles são super exigentes, super pontuais, muito conservadores, rigorosos demais com o nosso comportamento durante o show. Se você não sabe se comportar, você não tem business aqui.
Há doze anos trabalhando na expansão do mercado cultural brasileiro em Chicago, Taís compreende bem sua economia política e geografia. O samba, a dança, acompanha o samba, a música. Podem, porém, existir independentes um do outro. Há várias possibilidades de trabalho no mercado: shows em bailes de Gala, shows acompanhando grupos musicais, shows privados e as aulas de samba. Os shows em bailes de Gala apresentam características semelhantes às dos desfiles carnavalescos no Brasil: o foco é a fantasia e as suas cores, brilhos e ilusões. Em geral apresentam-se várias dançarinas. Os shows acompanhando grupos musicais são menores, duas ou três dançarinas resolvem. Aqui, a sedução e o carisma são as moedas mais comuns. Os shows privados têm formatos variados em função do tamanho e das características da festa. Tanto podem ser oferecidos a quatrocentos pessoas, num clube, como a vinte, num apartamento. O contratante é quem determina o que quer: se mais desfile de fantasia ou se mais requebros, biquinis e olhares, o que relativiza a afirmação de Taís de que a dupla biquini-requebro assusta o midwest. De fato, observando a variedade de possibilidades que ela própria apresenta, vê-se que há público para tudo. O que é necessário, e isto ela parece compreender bem, é perceber o que é adequado para cada ocasião. Já as aulas variam bastante em função do professor: do seu sexo, do seu público e da sua concepção de samba e de mercado.
Pela sistematicidade do encontro e pela proximidade que se estabelece entre professor e aluno e entre alunos, a aula de samba é o espaço em que as relações mais profundas e permanentes se desenvolvem no mundo contagiante, etéreo e ilusório do samba nesse mercado étnico. É nas aulas que as idéias de Brasil e brasilidade superficialmente apresentadas nos shows são demonstradas na prática. É nelas que a alegria que os brasileiros garantem que possuem é posta à prova das intempéries.
Aos poucos Taís foi tornando-se conhecida em Chicago e ocupando espaços mais visíveis. De dançarina do Chicago Samba e de festas privadas, foi convidada a oferecer a aula de dança brasileira no Chicago SummerDance, festival de dança que geralmente inicia na segunda semana de junho e vai até a última semana de agosto e apresenta aulas de dança e música ao vivo do mais tradicional swing até os mais exóticos forró e zydeco, passando pela salsa, bachata e merengue, mais populares em função da significativa população latina na cidade. Foi trabalhando para o departamento de assuntos culturais da prefeitura de Chicago, que Taís foi convidada a dar aula de dança brasileira no Old Town School of Folk Music, tradicional escola de música e dança fundada em 1957 e famosa por ter promovido a carreira de muitos artistas folk notáveis.
- Eu estava dirigindo um workshop oferecido pela prefeitura nas promoções culturais da virada do milênio. A mulher do Old Town School foi atrás de mim porque o meu workshop estava atraindo a atenção de pessoas que estavam noutros workshops... Eles saíam e iam pro meu... E não parava de entrar gente! Aí a mulher foi olhar e ficou no fundo da sala olhando e viu todo mundo dançando, todo mundo rindo, brincando... Aí quando terminou a aula ela foi falar comigo e me propôs dar aula.
Taís deu aulas no Old Town School of Folk Music durante quatro anos e de lá guarda memórias e amigos:
- Era um sucesso! Eu passava e as pessoas perguntavam: ah, é você a brasileira que está dando aula aqui? E eu, “sou eu mesma”. E eles me reconheciam também porque eu estava sempre vestida de Brasil, com um shortinho de lycra. Aí vinham umas querendo dançar com aquelas saias longas e eu dizia, ah não. Você não pode tomar aula de dança comigo com essa saia porque eu preciso ver suas pernas! Tem que por um short! Elas resistiam dizendo que estavam gordas e eu dizia: ah, aqui não tem esse negócio de gordo não, a gente é brasileiro, ninguém tá prestando atenção a isso não. (grifo meu). Aí iam botando uma bermuda mais curta... e no final estavam usando shortinho de lycra igual ao meu... Eu dei aula uns quatro anos... Houve alunos que nunca deixaram de fazer as minhas aulas! Saíam do trabalho cansadésimos, mas para eles ir para a minha aula era como tomar uma dose de vida! Agora mesmo eu tava falando com uma amiga de Trinidad &Tobago, que era minha aluna e que quando chegou na minha aula não conhecia ninguém, vivia depressiva e levava o filho lá para umas aulas não sei de quê e um dia viu: Brazilian Dance. E se matriculou. E lá fez um novo ciclo de amizade, a vida dela mudou da água pro vinho e ela começou a ter prazer em viver em Chicago, que ela veio do Canadá e não conhecia ninguém aqui. Então era um meio de promover conexão entre pessoas sozinhas, inclusive eu, que era sozinha também!
As aulas e os shows públicos ou privados foram a experiência que permitiu a Taís o desenvolvimento da consciência que hoje tem sobre feminilidade, beleza, sedução, brasilidade e americanidade.
- O Brasil ensina duas coisas: a alegria de viver. O brasileiro é um povo feliz, é um país do terceiro mundo, com mil problemas, mas é um povo feliz e contagiante. A outra coisa é a liberdade de se sentir à vontade com seu corpo... A liberdade de se sentir mulher, bonita! De que é normal usar uma jóia, uma bijouteria, usar sapato alto, usar decote, mini-saia. Pode usar! É bonito, te faz bem! Não é promíscuo, é natural. “Ah, eu tô gordinha...” Não tem problema! Você tampa aqui e mostra ali. Tampa o que não quer mostrar. Ensinar samba a essas mulheres é reensinar o feminino, é mostrar que existe uma mulher dentro delas, que são mulheres oprimidas, que nunca viram, nunca usaram, nunca foram ensinadas essa feminilidade. E vendo a gente tão à vontade, elas aprendem, mudam!
Taís, Denise, Lauren, Jeannie, brasileiras e não-brasileiras igualmente concordam em relação à metamorfose que o samba promove em suas vidas. Descobrem-se fortes, bonitas, sedutoras. O samba é um espelho e um escudo: é uma passagem para territórios desconhecidos e sedutores e oferece a proteção “étnica”. É sempre possível relativizar ou oferecer outras interpretações sobre o que foi apresentado em público, afinal o mundo do samba não começa e termina no Rio de Janeiro. “Tem samba de todo jeito e em todo canto do Brasil”, diz Taís.
Todo mestre tem consciência da possibilidade de ser superado pelo discípulo e no mercado do exotismo cultural isto não deveria ser uma exceção. De fato não é, mas a preferência de Taís é pelas brasileiras. Embore ensine samba quase que exclusivamente a não-brasileiros, nos seus shows as brasileiras têm primazia:
- Escolho brasileiras porque o pessoal tá comprando um produto brasileiro e eles querem ver a brasileira! Eles sabem que é diferente! A Sarah passa por brasileira, mas Robin não. A Sarah já estava dançando antes do Jorge chegar! Já é quase brasileira, só falta visitar o Brasil. Mas, veja, o que é que eu tô procurando numa dançarina? Primeiro se sabe dançar! E em segundo lugar, procuro pessoas que tenham algum tipo de pigmentação na pele para se misturar mais fácil com a gente... Quem contrata a gente tem um bom conhecimento do que é a mulher brasileira. E eles exigem: eu só quero mulher brasileira. Aí eu pego Ana, Dedé, às vezes a Sarah vai... O problema é que não tem muita dançarina brasileira aqui... elas vêm só de passagem, vão embora logo... Ou casam. Mas eu procuro sempre primeiro a brasileira. O cara tá comprando um produto do Brasil! Às vezes tenho que levar não-brasileiras e eles reclamam: eu não disse que era só pra trazer brasileira? Eu tinha uma aluna, a Ingrid, da Guatemala, dançava muito bem. Era supermagra e não tinha o corpo de brasileira, mas tinha a pele morena e dava pra passar por uma brasileira magra. Dançava superbem, como qualquer brasileira, mas não tinha o carisma! Não tinha a brincadeira, não tinha aquela coisa de olhar para a platéia e fazer a brincadeira, porque tem que ter isso no samba! E essa coisa de contagiar o público é só a gente que sabe, porque as americanas, e mesmo as outras latinas, não entendem disso! A Sarah sabe porque aprendeu com a gente... A americana não tá acostumada a olhar no olho... Existe um bloqueio... A Robin foi ao Brasil, já voltou mais abrasileirada, já deu uma quebradinha naquela parede que era ela... É um amor de pessoa, mas ainda tá faltando bastante coisa pra ela entrar no nosso pique!
O grupo de sambistas mais permanente em Chicago é, portanto, aquele que se organiza em torno de Taís. Até a sua entrada no mercado, o samba em Chicago se resumia aos bailes carnavalescos anuais no Hilton, organizado pela Gladys, Jimmy e Assir. Eram bailes elegantes, onde todos iam de fantasia e a orquestra tocava de terno e gravata. A entrada, com jantar incluído, custava entre 60 e 70 dólares, o que era um preço consideravelmente alto para a época, década de 1980. Não era um carnaval para brasileiros porque não havia brasileiros em número suficiente para tal empreendimento: era para americanos de classe média-alta e ricos. Nesse período também surgiam aqui e ali, convites para a apresentação de dançarinas em festas privadas. Mas Taís garante que foi a partir da última década que o mercado do samba evoluiu para o que é hoje e insiste que tal evolução está diretamente relacionada ao seu trabalho.
Trabalhando com um “produto” altamente instável, Taís tem sempre o cuidado de atrair para o seu grupo aqueles dançarinos e dançarinas em quem enxerga potencial artístico e também, claro, potencial concorrência. Reconhece que embora ainda pequeno, o mercado do samba em Chicago se expandiu muito desde que nele entrou e continua se expandindo, embora tal expansão esteja meio incerta agora com a crise econômica consequente da guerra do Iraque. Mas sendo um mercado limitado precisa de cooperação entre todos que dele participam.
É razoável se esperar que algumas dançarinas, brasileiras e não-brasileiras, contrariadas com o monopólio existente, de vez em quando se lancem na conquista do próprio mercado. Taís insiste que é um empreendimento complicado, que elas não fazem idéia: é preciso entender de samba; das regras do mercado cultural em Chicago; da compra, fabricação e manutenção de fantasias, mas, além de tudo, é preciso também ter os contatos que ela conquistou ao longo de mais de uma década de trabalho e dedicação. Ela provavelmente está certa, mas nem todas as dançarinas aceitam as suas regras e o seu monopólio e se lançam no desbravamento do mercado. Pelo que se observa e se narra, poucas persistem. Um dos seus trunfos mais fortes é a autenticidade: ela é brasileira e suas dançarinas também. Não parece ser apenas uma justificativa étnica, política, afinal ela reconhece que Sarah, americana branca, está aprendendo o jeito, a ginga, o carisma. Mas leva tempo e é preciso ter humildade para se submeter ao aprendizado. E isto nem todas aceitam. Mas é interessante observar que há grande camaradagem entre ela e as outras duas dançarinas brasileiras que também dão aula em vários locais da cidade e, como ela fazia antes, também oferecem workshops. Elas todas se apóiam.
Observo, porém, que nas apresentações do Chicago Samba há sempre mais dançarinas não-brasileiras, americanas. Taís explica que o cachê é muito baixo; que não compensa sair de casa pelo preço que se oferece. As americanas vão porque estão ainda conquistando o mercado, não precisam do cachê e vão acima de tudo para se divertir, sair de casa, paquerar. Ela tem mais o que fazer: está interessada também na produção de shows de artistas brasileiros em Chicago. Acredita que é um grande mercado inexplorado. Estabeleceu boas relações com os coordenadores dos grandes eventos étnicos que têm a ver com o Brasil em Chicago: o African Festival of Arts e o World Music Festival. Também conseguiu estabelecer uma relação de trabalho e cooperação com o International Latino Cultural Center of Chicago, que é uma entidade que promove a arte latina na cidade. Queixa-se da falta de apoio do governo brasileiro e também de entidades que se utilizam da marca Brazil para conseguir verba para a promoção da comunidade, mas efetivamente promovem apenas os seus dirigentes.
A breve história apresentada aqui permite ao leitor enxergar as tantas metamorfoses vividas por Taís no seu trabalho com o samba em Chicago. Observa-se claramente o modo diverso como lida com os seus alunos e os contratantes dos seus shows, ou mesmo o que há por trás do seu conceito de samba e mulher quando defende que as brasileiras são as únicas que sabem contagiar o público. Com as alunas sente-se mais à vontade para universalizar a sua concepção do que é ser feminina que, inclusive, vende como brasileira. Embora em qualquer espaço pairem sempre os limites da cultura protestante dominante, ali, na sala de aula, o seu poder é maior.
Durante nossa conversa não percebi essas contradições que aparecem tão claramente agora. Afinal, o que ensina sobre beleza feminina e feminilidade às suas alunas não parece ter muito a ver com o que aprendeu nos shows para os “americanos conservadores do midwest”. Ali, naqueles shows, aprendeu a contenção, o limite. Nada de exaltar tão obviamente a sensualidade: ali é mais espaço para a alegria, cores e sonhos das fantasias carnavalescas. Na hora de defender a necessidade de contratar somente dançarinas brasileiras para os seus shows, outra vez o seu aprendizado sobre o midwest americano é posto de lado e emerge outra compreensão de feminilidade agora completamente imbricada com a sua experiência de gênero e de Brasil, mas também com o que imagina que é o desejo do homem solteiro, consumidor do samba em Chicago. Deixo que ela própria conclua:
- Dançar, todo mundo dança, agora contagiar, tem que ser brasileira! Tem que ter contato visual com eles, olhar nos olhos deles... Eles têm que sentir que você sabe que eles estão lá. Tem que olhar para cada um deles e cada um tem que ver e sentir que você está olhando... Eles dizem: “ela está prestando atenção em mim... Está olhando pra mim...” E eles ficam pirados com isto!
Taís descobriu-se sambista por acaso. Convidada por um irmão recém-chegado de Londres, aventurou-se a sair de Mount Prospect à noite para uma visita ao Mad Bar, onde o Chicago Samba se apresentava às quintas-feiras. Acostumada à sua vida mais tranquila e confortável no subúrbio, Chicago era, até então, algo distante, que não fazia muito parte da sua vida, a não ser durante o período de fim de ano, quando vinha com amigas olhar as luzes e a decoração natalinas.
Da primeira dessas visitas, um trauma. Estacionou o carro numa das ruas que desembocam no Lago Michigan e quando voltou para pegá-lo, ele havia sumido. Foi assim aprendendo as regras daquela cidade bonita, mas intrigante. Inóspita? Não, hoje ela aprendeu que não e não consegue acreditar que não viu aquela placa de estacionamento proibido ali, no Jackson Boulevard, a um quarteirão do lago.
Feliz de reencontrar naquele bar e no Chicago Samba um pouco de Brasil, começou a dançar. Mas era esquisito estar dançando samba. Embora carioca, nunca gostara de samba. Gostava de rock. E de frevo e forró, quando visitava a família da sua mãe no nordeste. Surpreendeu-se quando Mara, mulher de um dos componentes da banda, aproximou-se elogiando sua performance: você dança muito bem! Antes de compreender a extensão do significado do elogio, foi surpreendida com o convite:
– Você não quer fazer um show com a gente?
– Eu? Dançar pelada? Não! E de biquini também não!!
Mas Mara logo explicou que era um show de carnaval, com fantasias. E Taís foi. Ganhou 150 dólares para dançar menos de duas horas. Como não havia se dado conta dessa possibilidade antes? Shows privados, como aquele, eram esporádicos, mas havia o Chicago Samba ali, no Mad Bar semanalmente. Começou a dançar para o grupo em 1996, quando sua única filha não tinha completado ainda o seu primeiro ano de vida. Logo começou a receber convites para outros shows e a também confeccionar as suas próprias fantasias. Afirma, orgulhosa, que pouquíssimas vezes precisou usar biquini: “usava sainhas, maiôs com lantejoulas...” O negócio foi crescendo na mesma medida em que seu casamento foi desmoronando. Começou a viajar para o Brasil para comprar mais fantasias. Mas aí o Chicago Samba decidiu dispensá-la. Alegaram que ela estava aparecendo mais do que eles e que não apreciavam a idéia de que uma banda de músicos se tranformasse numa banda de “tchan”. Ficou arrasada, sem saber o que fazer com tanta fantasia! Mas ficou especialmente triste porque aquele show estava se transformando na sua razão de viver. Seu casamento estava uma monotonia insuportável. Não aguentava mais o seu marido americano, preguiçoso, conservador, sem planos para o futuro e concentrado apenas na televisão e na cerveja. Continuou indo para a apresentação semanal do Chicago Samba, mas não mais vestida em fantasias carnavalescas. Apesar disso, continuou a receber convites para dançar em festas privadas.
Assim inicia a história de dançarina de Taís, semelhante à de várias outras brasileiras que se envolveram com o mundo do samba em Chicago. A diferença é que Taís dança e promove a cultura brasileira em Chicago há mais de uma década e isto é extraordinário num negócio em que a rotatividade é tão grande. O samba surge como um interesse de passagem na vida de muitas brasileiras ou não-brasileiras que com ele se envolvem. Talvez porque não reivindica dessas dançarinas mais do que algumas horas de dedicação semanais, o samba é muito diferente da bossa-nova e da capoeira que, mais exigentes, requerem quase uma conversão. Mas um dos problemas da continuidade das mulheres no negócio do samba são os maridos. Eles não querem suas mulheres se expondo publicamente, jogando charme para um público indistinto. O comum, portanto, é que as mulheres fiquem com o samba até encontrarem marido. Raros os casos dos que não se incomodam, que vêem a dança como um trabalho, uma arte.
Após o divórcio, Taís veio morar no que ela afirma que é o quadrilátero de Chicago que mais concentra brasileiros. Da Grand Ave à Irving Park e da Lake Shore Drive à Cícero. Taís é empresária de um negócio “étnico” numa cidade em que praticamente não há demanda étnica porque a população brasileira é muito pequena. O censo americano calcula que há em torno de cinco mil brasileiros entre Chicago e arredores, mas o Ministério das Relações Exteriores apresenta um número maior, quase o dobro. Ela garante que a realidade está mais próxima da estimativa americana. Além de artista e de empresária do samba, trabalha com a promoção de shows e garante que tem uma idéia bastante razoável da população brasileira na cidade: quatro mil permanentes e dois mil flutuantes.
Tendo sido casada com um americano branco por quase uma década e morando no midwest por mais de duas, Taís garante que conhece a cultura americana; que sabe como promover a cultura brasileira num ambiente conservador como aquele. Não é simples, não é fácil. Lembra de episódios dramáticos que estão na base do seu aprendizado: num dos primeiros shows que dançou de biquini assistiu assustada uma platéia de quatrocentas pessoas ir embora. Somente restaram a banda e as dançarinas desapontadas.
- Eu havia sido contratada pela Leda. Não era um show que eu estava agenciando. Mas eu jurei pra mim que nunca mais faria aquilo: eu vou apagar essa imagem! E o problema desses grupos de samba que há por aí apresentando mulher pelada é que isto assusta as pessoas, ninguém contrata mais. E o meu show não. Eles gostam: querem mais. E por que escolhi este lado? Porque a mulher brasileira é muito mal vista: toda vez que se fala em mulher brasileira a imagem que vem é mulher pelada na avenida. Então, o meu trabalho tenta fugir um pouco dessa imagem, desse trivial de mulher pelada com uma pena na cabeça. Inclusive ratificar essa idéia é muito mais simples, muito mais barato: um monte de biquininhos e mulheres rebolando com penas na cabeça. Só que aqui na região não ia vender nada, que aqui não vende isso! A gente tem que entender muito da cultura deles para trabalhar aqui. Eles são super exigentes, super pontuais, muito conservadores, rigorosos demais com o nosso comportamento durante o show. Se você não sabe se comportar, você não tem business aqui.
Há doze anos trabalhando na expansão do mercado cultural brasileiro em Chicago, Taís compreende bem sua economia política e geografia. O samba, a dança, acompanha o samba, a música. Podem, porém, existir independentes um do outro. Há várias possibilidades de trabalho no mercado: shows em bailes de Gala, shows acompanhando grupos musicais, shows privados e as aulas de samba. Os shows em bailes de Gala apresentam características semelhantes às dos desfiles carnavalescos no Brasil: o foco é a fantasia e as suas cores, brilhos e ilusões. Em geral apresentam-se várias dançarinas. Os shows acompanhando grupos musicais são menores, duas ou três dançarinas resolvem. Aqui, a sedução e o carisma são as moedas mais comuns. Os shows privados têm formatos variados em função do tamanho e das características da festa. Tanto podem ser oferecidos a quatrocentos pessoas, num clube, como a vinte, num apartamento. O contratante é quem determina o que quer: se mais desfile de fantasia ou se mais requebros, biquinis e olhares, o que relativiza a afirmação de Taís de que a dupla biquini-requebro assusta o midwest. De fato, observando a variedade de possibilidades que ela própria apresenta, vê-se que há público para tudo. O que é necessário, e isto ela parece compreender bem, é perceber o que é adequado para cada ocasião. Já as aulas variam bastante em função do professor: do seu sexo, do seu público e da sua concepção de samba e de mercado.
Pela sistematicidade do encontro e pela proximidade que se estabelece entre professor e aluno e entre alunos, a aula de samba é o espaço em que as relações mais profundas e permanentes se desenvolvem no mundo contagiante, etéreo e ilusório do samba nesse mercado étnico. É nas aulas que as idéias de Brasil e brasilidade superficialmente apresentadas nos shows são demonstradas na prática. É nelas que a alegria que os brasileiros garantem que possuem é posta à prova das intempéries.
Aos poucos Taís foi tornando-se conhecida em Chicago e ocupando espaços mais visíveis. De dançarina do Chicago Samba e de festas privadas, foi convidada a oferecer a aula de dança brasileira no Chicago SummerDance, festival de dança que geralmente inicia na segunda semana de junho e vai até a última semana de agosto e apresenta aulas de dança e música ao vivo do mais tradicional swing até os mais exóticos forró e zydeco, passando pela salsa, bachata e merengue, mais populares em função da significativa população latina na cidade. Foi trabalhando para o departamento de assuntos culturais da prefeitura de Chicago, que Taís foi convidada a dar aula de dança brasileira no Old Town School of Folk Music, tradicional escola de música e dança fundada em 1957 e famosa por ter promovido a carreira de muitos artistas folk notáveis.
- Eu estava dirigindo um workshop oferecido pela prefeitura nas promoções culturais da virada do milênio. A mulher do Old Town School foi atrás de mim porque o meu workshop estava atraindo a atenção de pessoas que estavam noutros workshops... Eles saíam e iam pro meu... E não parava de entrar gente! Aí a mulher foi olhar e ficou no fundo da sala olhando e viu todo mundo dançando, todo mundo rindo, brincando... Aí quando terminou a aula ela foi falar comigo e me propôs dar aula.
Taís deu aulas no Old Town School of Folk Music durante quatro anos e de lá guarda memórias e amigos:
- Era um sucesso! Eu passava e as pessoas perguntavam: ah, é você a brasileira que está dando aula aqui? E eu, “sou eu mesma”. E eles me reconheciam também porque eu estava sempre vestida de Brasil, com um shortinho de lycra. Aí vinham umas querendo dançar com aquelas saias longas e eu dizia, ah não. Você não pode tomar aula de dança comigo com essa saia porque eu preciso ver suas pernas! Tem que por um short! Elas resistiam dizendo que estavam gordas e eu dizia: ah, aqui não tem esse negócio de gordo não, a gente é brasileiro, ninguém tá prestando atenção a isso não. (grifo meu). Aí iam botando uma bermuda mais curta... e no final estavam usando shortinho de lycra igual ao meu... Eu dei aula uns quatro anos... Houve alunos que nunca deixaram de fazer as minhas aulas! Saíam do trabalho cansadésimos, mas para eles ir para a minha aula era como tomar uma dose de vida! Agora mesmo eu tava falando com uma amiga de Trinidad &Tobago, que era minha aluna e que quando chegou na minha aula não conhecia ninguém, vivia depressiva e levava o filho lá para umas aulas não sei de quê e um dia viu: Brazilian Dance. E se matriculou. E lá fez um novo ciclo de amizade, a vida dela mudou da água pro vinho e ela começou a ter prazer em viver em Chicago, que ela veio do Canadá e não conhecia ninguém aqui. Então era um meio de promover conexão entre pessoas sozinhas, inclusive eu, que era sozinha também!
As aulas e os shows públicos ou privados foram a experiência que permitiu a Taís o desenvolvimento da consciência que hoje tem sobre feminilidade, beleza, sedução, brasilidade e americanidade.
- O Brasil ensina duas coisas: a alegria de viver. O brasileiro é um povo feliz, é um país do terceiro mundo, com mil problemas, mas é um povo feliz e contagiante. A outra coisa é a liberdade de se sentir à vontade com seu corpo... A liberdade de se sentir mulher, bonita! De que é normal usar uma jóia, uma bijouteria, usar sapato alto, usar decote, mini-saia. Pode usar! É bonito, te faz bem! Não é promíscuo, é natural. “Ah, eu tô gordinha...” Não tem problema! Você tampa aqui e mostra ali. Tampa o que não quer mostrar. Ensinar samba a essas mulheres é reensinar o feminino, é mostrar que existe uma mulher dentro delas, que são mulheres oprimidas, que nunca viram, nunca usaram, nunca foram ensinadas essa feminilidade. E vendo a gente tão à vontade, elas aprendem, mudam!
Taís, Denise, Lauren, Jeannie, brasileiras e não-brasileiras igualmente concordam em relação à metamorfose que o samba promove em suas vidas. Descobrem-se fortes, bonitas, sedutoras. O samba é um espelho e um escudo: é uma passagem para territórios desconhecidos e sedutores e oferece a proteção “étnica”. É sempre possível relativizar ou oferecer outras interpretações sobre o que foi apresentado em público, afinal o mundo do samba não começa e termina no Rio de Janeiro. “Tem samba de todo jeito e em todo canto do Brasil”, diz Taís.
Todo mestre tem consciência da possibilidade de ser superado pelo discípulo e no mercado do exotismo cultural isto não deveria ser uma exceção. De fato não é, mas a preferência de Taís é pelas brasileiras. Embore ensine samba quase que exclusivamente a não-brasileiros, nos seus shows as brasileiras têm primazia:
- Escolho brasileiras porque o pessoal tá comprando um produto brasileiro e eles querem ver a brasileira! Eles sabem que é diferente! A Sarah passa por brasileira, mas Robin não. A Sarah já estava dançando antes do Jorge chegar! Já é quase brasileira, só falta visitar o Brasil. Mas, veja, o que é que eu tô procurando numa dançarina? Primeiro se sabe dançar! E em segundo lugar, procuro pessoas que tenham algum tipo de pigmentação na pele para se misturar mais fácil com a gente... Quem contrata a gente tem um bom conhecimento do que é a mulher brasileira. E eles exigem: eu só quero mulher brasileira. Aí eu pego Ana, Dedé, às vezes a Sarah vai... O problema é que não tem muita dançarina brasileira aqui... elas vêm só de passagem, vão embora logo... Ou casam. Mas eu procuro sempre primeiro a brasileira. O cara tá comprando um produto do Brasil! Às vezes tenho que levar não-brasileiras e eles reclamam: eu não disse que era só pra trazer brasileira? Eu tinha uma aluna, a Ingrid, da Guatemala, dançava muito bem. Era supermagra e não tinha o corpo de brasileira, mas tinha a pele morena e dava pra passar por uma brasileira magra. Dançava superbem, como qualquer brasileira, mas não tinha o carisma! Não tinha a brincadeira, não tinha aquela coisa de olhar para a platéia e fazer a brincadeira, porque tem que ter isso no samba! E essa coisa de contagiar o público é só a gente que sabe, porque as americanas, e mesmo as outras latinas, não entendem disso! A Sarah sabe porque aprendeu com a gente... A americana não tá acostumada a olhar no olho... Existe um bloqueio... A Robin foi ao Brasil, já voltou mais abrasileirada, já deu uma quebradinha naquela parede que era ela... É um amor de pessoa, mas ainda tá faltando bastante coisa pra ela entrar no nosso pique!
O grupo de sambistas mais permanente em Chicago é, portanto, aquele que se organiza em torno de Taís. Até a sua entrada no mercado, o samba em Chicago se resumia aos bailes carnavalescos anuais no Hilton, organizado pela Gladys, Jimmy e Assir. Eram bailes elegantes, onde todos iam de fantasia e a orquestra tocava de terno e gravata. A entrada, com jantar incluído, custava entre 60 e 70 dólares, o que era um preço consideravelmente alto para a época, década de 1980. Não era um carnaval para brasileiros porque não havia brasileiros em número suficiente para tal empreendimento: era para americanos de classe média-alta e ricos. Nesse período também surgiam aqui e ali, convites para a apresentação de dançarinas em festas privadas. Mas Taís garante que foi a partir da última década que o mercado do samba evoluiu para o que é hoje e insiste que tal evolução está diretamente relacionada ao seu trabalho.
Trabalhando com um “produto” altamente instável, Taís tem sempre o cuidado de atrair para o seu grupo aqueles dançarinos e dançarinas em quem enxerga potencial artístico e também, claro, potencial concorrência. Reconhece que embora ainda pequeno, o mercado do samba em Chicago se expandiu muito desde que nele entrou e continua se expandindo, embora tal expansão esteja meio incerta agora com a crise econômica consequente da guerra do Iraque. Mas sendo um mercado limitado precisa de cooperação entre todos que dele participam.
É razoável se esperar que algumas dançarinas, brasileiras e não-brasileiras, contrariadas com o monopólio existente, de vez em quando se lancem na conquista do próprio mercado. Taís insiste que é um empreendimento complicado, que elas não fazem idéia: é preciso entender de samba; das regras do mercado cultural em Chicago; da compra, fabricação e manutenção de fantasias, mas, além de tudo, é preciso também ter os contatos que ela conquistou ao longo de mais de uma década de trabalho e dedicação. Ela provavelmente está certa, mas nem todas as dançarinas aceitam as suas regras e o seu monopólio e se lançam no desbravamento do mercado. Pelo que se observa e se narra, poucas persistem. Um dos seus trunfos mais fortes é a autenticidade: ela é brasileira e suas dançarinas também. Não parece ser apenas uma justificativa étnica, política, afinal ela reconhece que Sarah, americana branca, está aprendendo o jeito, a ginga, o carisma. Mas leva tempo e é preciso ter humildade para se submeter ao aprendizado. E isto nem todas aceitam. Mas é interessante observar que há grande camaradagem entre ela e as outras duas dançarinas brasileiras que também dão aula em vários locais da cidade e, como ela fazia antes, também oferecem workshops. Elas todas se apóiam.
Observo, porém, que nas apresentações do Chicago Samba há sempre mais dançarinas não-brasileiras, americanas. Taís explica que o cachê é muito baixo; que não compensa sair de casa pelo preço que se oferece. As americanas vão porque estão ainda conquistando o mercado, não precisam do cachê e vão acima de tudo para se divertir, sair de casa, paquerar. Ela tem mais o que fazer: está interessada também na produção de shows de artistas brasileiros em Chicago. Acredita que é um grande mercado inexplorado. Estabeleceu boas relações com os coordenadores dos grandes eventos étnicos que têm a ver com o Brasil em Chicago: o African Festival of Arts e o World Music Festival. Também conseguiu estabelecer uma relação de trabalho e cooperação com o International Latino Cultural Center of Chicago, que é uma entidade que promove a arte latina na cidade. Queixa-se da falta de apoio do governo brasileiro e também de entidades que se utilizam da marca Brazil para conseguir verba para a promoção da comunidade, mas efetivamente promovem apenas os seus dirigentes.
A breve história apresentada aqui permite ao leitor enxergar as tantas metamorfoses vividas por Taís no seu trabalho com o samba em Chicago. Observa-se claramente o modo diverso como lida com os seus alunos e os contratantes dos seus shows, ou mesmo o que há por trás do seu conceito de samba e mulher quando defende que as brasileiras são as únicas que sabem contagiar o público. Com as alunas sente-se mais à vontade para universalizar a sua concepção do que é ser feminina que, inclusive, vende como brasileira. Embora em qualquer espaço pairem sempre os limites da cultura protestante dominante, ali, na sala de aula, o seu poder é maior.
Durante nossa conversa não percebi essas contradições que aparecem tão claramente agora. Afinal, o que ensina sobre beleza feminina e feminilidade às suas alunas não parece ter muito a ver com o que aprendeu nos shows para os “americanos conservadores do midwest”. Ali, naqueles shows, aprendeu a contenção, o limite. Nada de exaltar tão obviamente a sensualidade: ali é mais espaço para a alegria, cores e sonhos das fantasias carnavalescas. Na hora de defender a necessidade de contratar somente dançarinas brasileiras para os seus shows, outra vez o seu aprendizado sobre o midwest americano é posto de lado e emerge outra compreensão de feminilidade agora completamente imbricada com a sua experiência de gênero e de Brasil, mas também com o que imagina que é o desejo do homem solteiro, consumidor do samba em Chicago. Deixo que ela própria conclua:
- Dançar, todo mundo dança, agora contagiar, tem que ser brasileira! Tem que ter contato visual com eles, olhar nos olhos deles... Eles têm que sentir que você sabe que eles estão lá. Tem que olhar para cada um deles e cada um tem que ver e sentir que você está olhando... Eles dizem: “ela está prestando atenção em mim... Está olhando pra mim...” E eles ficam pirados com isto!
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Viagem Chile-Peru: de Santiago a San Pedro de Atacama
(Ainda para Circe, que gosta de viagens, de poesia e sempre me comove como o diabo!)
Santiago, Aeroporto Merino Benitez. 5 de fev 2008. 7:30am
Estou escutando Sampa (C Veloso) e, depois de dois dias intensos, finalmente parando por uns minutos enquanto espero o voo para Calama. De lá, pegaremos um táxi (?) para San Pedro de Atacama. Deborah sabe quase tudo que a espera, mas eu nao sei de nada, nao planejei nadas, mas tenho certeza de que saberei distinguir o que faz do que nao faz sentido fazer. Ontem à tarde, encontramos, nas Bellas Artes, um bairro daqui perto do centro, uns amigos seus que estavam vindo dessa aventura e, pelo que contaram, lembrei de Jericoacoara e todos aqueles passeios para turistas... alguns dos quais muito interessantes. Lembro-me particularmente de uma lagoa azulzissima onde eu e Marcus comemos o "melhor" peixe frito das nossas vidas.
======
Quando estávamos vindo pro aeroporto no taxi dirigido por Abner, conhecido da Deb, eu pensava sobre a integraçao sulamericana e me convencia de que, para além dos laços estabelecidos através das metrópoles coloniais, o que mais nos juntou foram mesmo as ditaduras militares. Antes, apenas a burguesia mais curiosa e aventureira de um ou outro pais se arriscava pelo "atraso" ou "subdesenvolvimento" do outro. Ratier e Rodrigo, por exemplo, jamais teriam aterrisado em Campina Grande se nao fossem os golpes na Argentina e Chile. Foi pelas maos (e ironia!) de Ratier que fui levada pelos caminhos da antropologia e achei que era um mundo que valia a pena explorar por um tempo... "Apenas por um tempo", repito agora, ja me sentindo meio acomodada com tal escolha e achando que tá na hora de inventar outras coisa para fazer. Claro, quem me inspira aqui é WW, meu guru: "nao aceite nenhuma hospitalidade mais do que apenas por um curto tempo". A ideia é que, lá fora, o mundo (The Open Road) nos espera. Tenho me lembrado muito de Lucas todos esses dias, do quixote sem rumo, vendo os mochileiros aqui e acolá. Ontem, inclusive, na volta do passeio à casa de Neruda, paramos numa ferinha de artesanato no Pio Nono e lhe comprei uma escultura de D. Quixote. A imagem de D. Quixote é outra que inspira tanto todo mundo, ou pelo menos, todos os sonhadores e aventureiros. Mas eu nao quero me meter agora pelos caminhos da sua simbologia, principalmente porque agora talvez me enveredasse mais pelos arcanos do tarot (o eremita) do que propriamente pela literatura... abrigo onde quero ficar por esses dias.
Do dia de ontem, segunda-feira de carnaval.
Aqui, como em LA e Chicago, a última coisa de que se lembrará é que é carnaval. Hoje, por exemplo, é terça-feira de carnaval e nada, absolutamente nada, sugere isto.
Esses dois dias fiquei hospedada na casa de Soledade e Marcelo, amigos de Deborah. Ele é vitralista e ela engenheira quimica. Antes de falar desses dias, preciso apresentar a Deborah Krainin. Nos conhecemos em LA, em março de 2005, quando eu estava de passagem para San Francisco, para umas palestras e leituras de poesia. Eu estava hospedada na casa de Ivenia - brasileira que conheci desde os tempos da minha pesquisa com os brasileiros em LA - em Hollywood Hills, e ela era uma das inquilinas de um dos dois studios que George (marido de Ivenia) aluga. Eu e Ivenia estavamos voltando de um passeio à Bodhi Tree (livraria esotérica em Beverly Hills). Deb estava no portao, inicio de vários longos lances de escada ate chegar à porta. Ivenia nos apresentou e começamos uma conversa que dura até hoje, com intervalos curtos ou longos. Ela é formada em Literatura Espanhola e é tb poeta. No dia em que nos conhecemos ela havia sido demitida de um emprego numa ong e estava querendo se convencer de que aquilo era mais uma dadiva do que uma puniçao. Fizemos um monte de coisas juntas em Beverly Hills: livrarias, cafés, recitais de poesia. Conversávamos sobretudo sobre poesia e sobre as nossas historias de amor.
-----
Vejo, no relogio do meu vizinho, que sao 9.15am. Desde que saimos de Santiago que temos ao nosso lado esquerdo a visao da cordilheira dos Andes. Quer dizer, agora já nao mais porque esta entrando muito sol e o vizinho fechou a janela. Escolhi assentos separados nesta viagem pq queria ficar um pouco sozinha. Ja fiz varias coisas desde que sentei aqui. Dei uma lida rapida nas info do Lonely Planet sobre San Pedro de Atacama e acho que até ja escolhi alguns passeios e também ja sei o nome da lan house onde checarei meu email: Café Etnico. Nao é uma escolha antropologica, mas economica. É o mais barato da lista.
Acho bom estar viajando acompanhada, mas sei que isto se faz às custas do meu aprendizado do espanhol, de um lado e, de outro, da disposiçao de negociar o meu cotidiano com alguem que nao conheço bem. Um grande desafio, depois de todos os que me apresentou o ano da graça de 2007! Tantos que eu acho que precisava mesmo era de umas ferias da minha identidade e nao apenas de Fortaleza.
Mas como dizia antes, a proposito, das ditaduras sulamericanas, nao há mal que nao traga um bem. De fato, na minha experiencia o que observo é que quanto maior o mal, maior o bem. O outro desafio é continuar crista nessas horas e fazer o que propunha Cristo. perdoar e rezar pelos que nos fazem o mal. Desafio extraordinário. E certa superioridade, sem dúvida... Nas palavras de Mateus (5.43-48):" Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem (...) Porque, se amardes os que vos amam, que recompensas tendes? Ñ fazem os pecadores também o mesmo?"
Eu juro que ñ acredito que trouxe a minha bíblia, que pesa quase um quilo, pra essa viagem! Achei que teria de disposiçao de le-la inteira... Seria duas viagens: a do Chile e a da bíblia... Mas estou achando que ñ é ainda desta vez...
Aí Lucinha, a minha rezadeira, veio me perguntar exatamente isto: " Voce acha que ja tem condiçoes de pedir a Deus pelos que lhe provocaram essa dor?" " Ñ, Lucinha, ainda nao... quem sabe daqui a um tempinho mais? A verdade é que tudo parece tao remoto agora... E o que está proximo é a cordilheira dos Andes: silenciosa e infinita.
---------
Perguntei ao meu vizinho que água é esta que estamos enxergando daqui: "El oceano, el Pacifico!" Conversamos um pouco e ele insistiu para que eu fosse ver os geysers. É um passeio especial pq a saída é às 4 da manha. El Valle da la Luna é o outro passeio que me interessou. Voltando aos meus anfitriaos em Santiago. Soledade lembra-me Cenira, uma quase indiazinha, que trabalhou lá em casa quando Caio nasceu: baixinha, morena clara, olhos e cabelos muito pretos. Eu já chegava com um problema: ñ tinha conseguido sacar pesos com o meu cartao e ñ tinha dinheiro para pagar o taxi. Mas o taxista estava tranquilo: disse-me que se minha amiga ñ tivesse os 15 mil pesos devidos, ele voltaria outra dia, para pegar o dinheiro. Deborah estava fora, fazendo compras para o almoço, mas Soledade estava lá, me esperando. Ela me recebeu como se fosse uma amiga de infância, inclusive com mais entusiasmo do que a propria Deborah. Foi mostrando a casa e o lugar onde eu ficaria. Depois chegaram Deb e Marcelo, seu marido, e fomos todos cozinhar. Quando terminamos o almoço jantar era 6 horas e o sol continuava brilhando como se fosse 3 ou 4 da tarde.
Miguel Angel, o taxista que foi me pegar no aeroporto, foi me contando sobre Santiago. Aquele túnel sob o rio Mapocho, ligando o aeroporto a Las Condes, era recente. Antes sse levava quase duas horas do aeropoto àquela regiao. Ele me disse o valor da obra, um preço absurdo, mas justificavel em funçao do poder aquisitvo da populacao beneficiada. Passamos por baixo do centro da cidade e de toda a regiao mais pobre. Mas ele insistia que nao há pobreza no Chile. Nada parecido com o que havia há quinze/vinte anos quando a cidade era cheia de pobres e eels acampavam ao longo das rodovias...
A minha memória do Chile era limitada à cortesia de Rodrigo... Um ou outro verso do Neruda... Violeta Parra e Victor Jara... Allende... Pinochet. Alicia del Campo, amiga da Latin American Perspectives... Ontem, enquanto caminhava pelas ruas com Deb, pensava em como é confortável a ignorância. Eu sentia uma coisa meio esquisita em se tratando de mim que estou sempre interessada no conhecimento: eu ñ queria saber de mais nada que eu já ñ soubesse... tudo que queria era olhar as pessoas nos ônibus, nas ruas, nos bares e restaurantes. Tinhamos a missao de resolver o meu problema de dinheiro e passar na LAN, essa cia aerea na qual estamos viajando. Isto é interessante e diferente do que estou acostumada: os assentos das passagens promocionais ñ sao marcados automaticamente na hora da compra. Os passageiros é que providenciam isto - via internet - dois dias antes do voo. Deb queria pegar um taxi até o BB. Eu insisti para que fossemos de onibus.
Deb está em crise com o Chile: reclama de tudo; tudo é sujo, todo mundo é mal-educado; os homens sao estupidos... Todas as cadeiras do onibus estavam tomadas e ficamos em pé. Ela queria continuar falando em ingles e eu doida para por o meu espanhol à prova. Havia um show no onibus: um homem alto, barbudo, 50 anos, tocava guitarra e gaita à Bob Dylan. Sempre se demorava explicando alguma coisa sobre a música que cantaria a seguir. Cantou Gracias a la vida e outras que ñ reconheci. Depois recolheu uns trocados entre os passageiros mais generosos e saiu. O funcionario do BB era uma homem de uns 40 anos, bonito, simpatico e paciente. Fiz umas dez perguntas antes de finalmente me decidir sobre o que fazer e ele se manteve até o fim bonito, simpatico e paciente.
Andando de um banco pra outro, Deb descobriu que eu ando de lado, ao invés de pra frente. Acho que Laís e Emma já haviam me dito isto antes. Pouco depois descobrimos que o meu "andar de lado" tendia para a esquerda. Assim, se ela se mantivesse sempre à direita ñ correria o risco de ser atropelada. Que praticidade...
Adoro férias porque posso andar nas ruas meio de bobeira... A Deb tinha objetivos mais claro... Eu acompanhava apenas. Ela tinha obrigaçoes, mas eu me sentia uma criatura livre, na verdade, "sem compromisso nem com a saudade", como dizia o filósofo Lavô. Mas uma coisa me incomodava: a minha saia estava meio caindo e eu usava uma camiseta que deixava aparecer um pouco da barriga. Deb observou meu "sex appeal": eu acho que todos os homens estao te olhando... (Tá vendo, Brian, que ñ sao apenas os americanos?). Pois é, mas eu nao tava nem notando, estava olhando pras pessoas sem segundas intencoes; apenas olhando zen-budisticamente... E deixando-as ir... Como é bom saber que as chances de encontrar algum conhecido sao remotas...
Depois que resolvemos o que era necessario, Deb me perguntou o que eu queria fazer: "qualquer coisa, a única restriçao que tenho é a museus...". Estávamos com fome e resolvemos pegar um taxi para o Patio Bella Vista, uma especie de shopping de artesanato e alimentaçao aberto, proximo da casa de Neruda. Almoçamos no Galindo, um restaurante na rua de trás, Dardignac 98. Eu queria vino. O vinho daqui é o Carmenere. Escolhi fácil o da casa. Lembrei de Lisboa: ñ havia chances de erro escolhendo o vinho da casa. Mas foi ainda mais fácil: um dos vinhos da casa se chamava Sta Ema... Pedi para Deb pedir algum prato do lugar: pediu Pastel de Choclo e uma salada mixta e tudo estava muito gostoso... Acho que aquela foi a melhor parte do passeio. Estavamos tranquilas, sem planos e nos entregamos às nossas conversas de sempre e Deborah recitou, muito lindo, o poema abaixo:
The Great Fires
by Jack Gilbert
Love is apart from all things.
Desire and excitement are nothing beside it.
It is not the body that finds love.
What leads us there is the body.
What is not love provokes it.
What is not love quenches it.
Love lays hold of everything we know.
The passions which are called love
also change everything to a newness
at first. Passion is clearly the path
but does not bring us to love.
It opens the castle of our spirit
so that we might find the love which is
a mystery hidden there.
Love is one of many great fires.
Passion is a fire made of many woods,
each of which gives off its special odor
so we can know the many kinds
that are not love. Passion is the paper
and twigs that kindle the flames
but cannot sustain them. Desire perishes
because it tries to be love.
Love is eaten away by appetite.
Love does not last, but it is different
from the passions that do not last.
Love lasts by not lasting.
Isaiah said each man walks in his own fire
for his sins. Love allows us to walk
in the sweet music of our particular heart.
Santiago, Aeroporto Merino Benitez. 5 de fev 2008. 7:30am
Estou escutando Sampa (C Veloso) e, depois de dois dias intensos, finalmente parando por uns minutos enquanto espero o voo para Calama. De lá, pegaremos um táxi (?) para San Pedro de Atacama. Deborah sabe quase tudo que a espera, mas eu nao sei de nada, nao planejei nadas, mas tenho certeza de que saberei distinguir o que faz do que nao faz sentido fazer. Ontem à tarde, encontramos, nas Bellas Artes, um bairro daqui perto do centro, uns amigos seus que estavam vindo dessa aventura e, pelo que contaram, lembrei de Jericoacoara e todos aqueles passeios para turistas... alguns dos quais muito interessantes. Lembro-me particularmente de uma lagoa azulzissima onde eu e Marcus comemos o "melhor" peixe frito das nossas vidas.
======
Quando estávamos vindo pro aeroporto no taxi dirigido por Abner, conhecido da Deb, eu pensava sobre a integraçao sulamericana e me convencia de que, para além dos laços estabelecidos através das metrópoles coloniais, o que mais nos juntou foram mesmo as ditaduras militares. Antes, apenas a burguesia mais curiosa e aventureira de um ou outro pais se arriscava pelo "atraso" ou "subdesenvolvimento" do outro. Ratier e Rodrigo, por exemplo, jamais teriam aterrisado em Campina Grande se nao fossem os golpes na Argentina e Chile. Foi pelas maos (e ironia!) de Ratier que fui levada pelos caminhos da antropologia e achei que era um mundo que valia a pena explorar por um tempo... "Apenas por um tempo", repito agora, ja me sentindo meio acomodada com tal escolha e achando que tá na hora de inventar outras coisa para fazer. Claro, quem me inspira aqui é WW, meu guru: "nao aceite nenhuma hospitalidade mais do que apenas por um curto tempo". A ideia é que, lá fora, o mundo (The Open Road) nos espera. Tenho me lembrado muito de Lucas todos esses dias, do quixote sem rumo, vendo os mochileiros aqui e acolá. Ontem, inclusive, na volta do passeio à casa de Neruda, paramos numa ferinha de artesanato no Pio Nono e lhe comprei uma escultura de D. Quixote. A imagem de D. Quixote é outra que inspira tanto todo mundo, ou pelo menos, todos os sonhadores e aventureiros. Mas eu nao quero me meter agora pelos caminhos da sua simbologia, principalmente porque agora talvez me enveredasse mais pelos arcanos do tarot (o eremita) do que propriamente pela literatura... abrigo onde quero ficar por esses dias.
Do dia de ontem, segunda-feira de carnaval.
Aqui, como em LA e Chicago, a última coisa de que se lembrará é que é carnaval. Hoje, por exemplo, é terça-feira de carnaval e nada, absolutamente nada, sugere isto.
Esses dois dias fiquei hospedada na casa de Soledade e Marcelo, amigos de Deborah. Ele é vitralista e ela engenheira quimica. Antes de falar desses dias, preciso apresentar a Deborah Krainin. Nos conhecemos em LA, em março de 2005, quando eu estava de passagem para San Francisco, para umas palestras e leituras de poesia. Eu estava hospedada na casa de Ivenia - brasileira que conheci desde os tempos da minha pesquisa com os brasileiros em LA - em Hollywood Hills, e ela era uma das inquilinas de um dos dois studios que George (marido de Ivenia) aluga. Eu e Ivenia estavamos voltando de um passeio à Bodhi Tree (livraria esotérica em Beverly Hills). Deb estava no portao, inicio de vários longos lances de escada ate chegar à porta. Ivenia nos apresentou e começamos uma conversa que dura até hoje, com intervalos curtos ou longos. Ela é formada em Literatura Espanhola e é tb poeta. No dia em que nos conhecemos ela havia sido demitida de um emprego numa ong e estava querendo se convencer de que aquilo era mais uma dadiva do que uma puniçao. Fizemos um monte de coisas juntas em Beverly Hills: livrarias, cafés, recitais de poesia. Conversávamos sobretudo sobre poesia e sobre as nossas historias de amor.
-----
Vejo, no relogio do meu vizinho, que sao 9.15am. Desde que saimos de Santiago que temos ao nosso lado esquerdo a visao da cordilheira dos Andes. Quer dizer, agora já nao mais porque esta entrando muito sol e o vizinho fechou a janela. Escolhi assentos separados nesta viagem pq queria ficar um pouco sozinha. Ja fiz varias coisas desde que sentei aqui. Dei uma lida rapida nas info do Lonely Planet sobre San Pedro de Atacama e acho que até ja escolhi alguns passeios e também ja sei o nome da lan house onde checarei meu email: Café Etnico. Nao é uma escolha antropologica, mas economica. É o mais barato da lista.
Acho bom estar viajando acompanhada, mas sei que isto se faz às custas do meu aprendizado do espanhol, de um lado e, de outro, da disposiçao de negociar o meu cotidiano com alguem que nao conheço bem. Um grande desafio, depois de todos os que me apresentou o ano da graça de 2007! Tantos que eu acho que precisava mesmo era de umas ferias da minha identidade e nao apenas de Fortaleza.
Mas como dizia antes, a proposito, das ditaduras sulamericanas, nao há mal que nao traga um bem. De fato, na minha experiencia o que observo é que quanto maior o mal, maior o bem. O outro desafio é continuar crista nessas horas e fazer o que propunha Cristo. perdoar e rezar pelos que nos fazem o mal. Desafio extraordinário. E certa superioridade, sem dúvida... Nas palavras de Mateus (5.43-48):" Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem (...) Porque, se amardes os que vos amam, que recompensas tendes? Ñ fazem os pecadores também o mesmo?"
Eu juro que ñ acredito que trouxe a minha bíblia, que pesa quase um quilo, pra essa viagem! Achei que teria de disposiçao de le-la inteira... Seria duas viagens: a do Chile e a da bíblia... Mas estou achando que ñ é ainda desta vez...
Aí Lucinha, a minha rezadeira, veio me perguntar exatamente isto: " Voce acha que ja tem condiçoes de pedir a Deus pelos que lhe provocaram essa dor?" " Ñ, Lucinha, ainda nao... quem sabe daqui a um tempinho mais? A verdade é que tudo parece tao remoto agora... E o que está proximo é a cordilheira dos Andes: silenciosa e infinita.
---------
Perguntei ao meu vizinho que água é esta que estamos enxergando daqui: "El oceano, el Pacifico!" Conversamos um pouco e ele insistiu para que eu fosse ver os geysers. É um passeio especial pq a saída é às 4 da manha. El Valle da la Luna é o outro passeio que me interessou. Voltando aos meus anfitriaos em Santiago. Soledade lembra-me Cenira, uma quase indiazinha, que trabalhou lá em casa quando Caio nasceu: baixinha, morena clara, olhos e cabelos muito pretos. Eu já chegava com um problema: ñ tinha conseguido sacar pesos com o meu cartao e ñ tinha dinheiro para pagar o taxi. Mas o taxista estava tranquilo: disse-me que se minha amiga ñ tivesse os 15 mil pesos devidos, ele voltaria outra dia, para pegar o dinheiro. Deborah estava fora, fazendo compras para o almoço, mas Soledade estava lá, me esperando. Ela me recebeu como se fosse uma amiga de infância, inclusive com mais entusiasmo do que a propria Deborah. Foi mostrando a casa e o lugar onde eu ficaria. Depois chegaram Deb e Marcelo, seu marido, e fomos todos cozinhar. Quando terminamos o almoço jantar era 6 horas e o sol continuava brilhando como se fosse 3 ou 4 da tarde.
Miguel Angel, o taxista que foi me pegar no aeroporto, foi me contando sobre Santiago. Aquele túnel sob o rio Mapocho, ligando o aeroporto a Las Condes, era recente. Antes sse levava quase duas horas do aeropoto àquela regiao. Ele me disse o valor da obra, um preço absurdo, mas justificavel em funçao do poder aquisitvo da populacao beneficiada. Passamos por baixo do centro da cidade e de toda a regiao mais pobre. Mas ele insistia que nao há pobreza no Chile. Nada parecido com o que havia há quinze/vinte anos quando a cidade era cheia de pobres e eels acampavam ao longo das rodovias...
A minha memória do Chile era limitada à cortesia de Rodrigo... Um ou outro verso do Neruda... Violeta Parra e Victor Jara... Allende... Pinochet. Alicia del Campo, amiga da Latin American Perspectives... Ontem, enquanto caminhava pelas ruas com Deb, pensava em como é confortável a ignorância. Eu sentia uma coisa meio esquisita em se tratando de mim que estou sempre interessada no conhecimento: eu ñ queria saber de mais nada que eu já ñ soubesse... tudo que queria era olhar as pessoas nos ônibus, nas ruas, nos bares e restaurantes. Tinhamos a missao de resolver o meu problema de dinheiro e passar na LAN, essa cia aerea na qual estamos viajando. Isto é interessante e diferente do que estou acostumada: os assentos das passagens promocionais ñ sao marcados automaticamente na hora da compra. Os passageiros é que providenciam isto - via internet - dois dias antes do voo. Deb queria pegar um taxi até o BB. Eu insisti para que fossemos de onibus.
Deb está em crise com o Chile: reclama de tudo; tudo é sujo, todo mundo é mal-educado; os homens sao estupidos... Todas as cadeiras do onibus estavam tomadas e ficamos em pé. Ela queria continuar falando em ingles e eu doida para por o meu espanhol à prova. Havia um show no onibus: um homem alto, barbudo, 50 anos, tocava guitarra e gaita à Bob Dylan. Sempre se demorava explicando alguma coisa sobre a música que cantaria a seguir. Cantou Gracias a la vida e outras que ñ reconheci. Depois recolheu uns trocados entre os passageiros mais generosos e saiu. O funcionario do BB era uma homem de uns 40 anos, bonito, simpatico e paciente. Fiz umas dez perguntas antes de finalmente me decidir sobre o que fazer e ele se manteve até o fim bonito, simpatico e paciente.
Andando de um banco pra outro, Deb descobriu que eu ando de lado, ao invés de pra frente. Acho que Laís e Emma já haviam me dito isto antes. Pouco depois descobrimos que o meu "andar de lado" tendia para a esquerda. Assim, se ela se mantivesse sempre à direita ñ correria o risco de ser atropelada. Que praticidade...
Adoro férias porque posso andar nas ruas meio de bobeira... A Deb tinha objetivos mais claro... Eu acompanhava apenas. Ela tinha obrigaçoes, mas eu me sentia uma criatura livre, na verdade, "sem compromisso nem com a saudade", como dizia o filósofo Lavô. Mas uma coisa me incomodava: a minha saia estava meio caindo e eu usava uma camiseta que deixava aparecer um pouco da barriga. Deb observou meu "sex appeal": eu acho que todos os homens estao te olhando... (Tá vendo, Brian, que ñ sao apenas os americanos?). Pois é, mas eu nao tava nem notando, estava olhando pras pessoas sem segundas intencoes; apenas olhando zen-budisticamente... E deixando-as ir... Como é bom saber que as chances de encontrar algum conhecido sao remotas...
Depois que resolvemos o que era necessario, Deb me perguntou o que eu queria fazer: "qualquer coisa, a única restriçao que tenho é a museus...". Estávamos com fome e resolvemos pegar um taxi para o Patio Bella Vista, uma especie de shopping de artesanato e alimentaçao aberto, proximo da casa de Neruda. Almoçamos no Galindo, um restaurante na rua de trás, Dardignac 98. Eu queria vino. O vinho daqui é o Carmenere. Escolhi fácil o da casa. Lembrei de Lisboa: ñ havia chances de erro escolhendo o vinho da casa. Mas foi ainda mais fácil: um dos vinhos da casa se chamava Sta Ema... Pedi para Deb pedir algum prato do lugar: pediu Pastel de Choclo e uma salada mixta e tudo estava muito gostoso... Acho que aquela foi a melhor parte do passeio. Estavamos tranquilas, sem planos e nos entregamos às nossas conversas de sempre e Deborah recitou, muito lindo, o poema abaixo:
The Great Fires
by Jack Gilbert
Love is apart from all things.
Desire and excitement are nothing beside it.
It is not the body that finds love.
What leads us there is the body.
What is not love provokes it.
What is not love quenches it.
Love lays hold of everything we know.
The passions which are called love
also change everything to a newness
at first. Passion is clearly the path
but does not bring us to love.
It opens the castle of our spirit
so that we might find the love which is
a mystery hidden there.
Love is one of many great fires.
Passion is a fire made of many woods,
each of which gives off its special odor
so we can know the many kinds
that are not love. Passion is the paper
and twigs that kindle the flames
but cannot sustain them. Desire perishes
because it tries to be love.
Love is eaten away by appetite.
Love does not last, but it is different
from the passions that do not last.
Love lasts by not lasting.
Isaiah said each man walks in his own fire
for his sins. Love allows us to walk
in the sweet music of our particular heart.
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
De quantos 11 de Setembro precisamos?
(o artigo abaixo foi publicado no jornal O Povo, alguns dias após 11 de Setembro de 2001. Resolvi postá-lo agora, sete anos depois, porque ainda o considero atual e também como testemunho de que permaneço ancorada no tempo presente)
Foram confusos os meus sentimentos quando o meu filho me chamou para ver na televisão as primeiras notícias sobre o ataque ao WTC. Fazia pouco mais de um ano que havíamos voltado de uma temporada de 5 anos em Los Angeles e estávamos nos sentindo ainda muito ligados à vida e aos amigos americanos. Confesso que senti-me aliviada pelo fato de que o ataque era contra New York, não contra Los Angeles. As chances de que alguém conhecido estivesse àquela hora no WTC eram desprezíveis. Pelo menos eu não teria que chorar por ninguém em particular e anuviar, com isto, a minha primeira reação que foi, para susto e protesto dos meus filhos, a de satisfação.
Não satisfação com a dor e a miséria de tantas pessoas. Satisfação porque alguém tivera a coragem de protestar, no próprio território americano, contra as políticas abusivas dos Estados Unidos no mundo. Achei que com a evidência da sua vulnerabilidade, os americanos pudessem se tornar menos arrogantes e mais humildes. Quem sabe, vulneráveis, os americanos não prestariam alguma atenção à vulnerabilidade alheia? É claro que nos meus cinco anos de Los Angeles percebi que nem todos os americanos são arrogantes como é arrogante a política externa do seu país. E também percebi que a democracia americana, como a república ateniense, não cabe todos os que vivem em território americano.
Não custou para eu perceber que era vã a esperança que alimentara de que aquela tragédia servisse para os Estados Unidos repensarem a sua política externa. Percebi, logo nas primeiras reações dos políticos americanos, que o culto da humildade - parte do legado cristão - há muito deixou de fazer parte do protestantismo americano e, se eu cheguei a pensar que aquela lição poderia ter a força e o significado que os protestos pacíficos anti-globalização não estavam tendo, cuidei logo de tirar o meu cavalo da chuva.
Movidos pela dor, mas principalmente pela arrogância e vaidade, os políticos americanos queriam vingar os seus mortos. Diferentemente do que o meu espírito cristão sonhou, eles não conseguiam ver aqueles mortos como consequência das tantas tragédias que os Estados Unidos vêm produzindo mundo afora no esforço de manter a hegemonia conquistada desde a II Guerra Mundial. Ao invés de aproveitarem a oportunidade para rever a insustentabilidade da sua política global, encontraram o motivo de que precisavam para recrudescer tal política.
Não sei se pelo meu ofício de antropóloga ou pela minha alma cristã, não consigo achar que os civilizados valem mais dos que os não-civilizados; não consigo achar menos terrorista o terrorismo americano porque é pretensamente civilizado. Assim como não consigo achar que os paulistas são melhores do que os fortalezenses ou estes melhores do que os cratenses e assim por diante.
A tragédia de 11 de Setembro não serviu para ensinar este princípio fundamental, nem para os Estados Unidos e nem para os que apóiam as suas políticas insustentáveis. De quantas tragédias os americanos, e aqueles que neles se espelham, precisam para entender que somos todos humanos, não divinos?
Foram confusos os meus sentimentos quando o meu filho me chamou para ver na televisão as primeiras notícias sobre o ataque ao WTC. Fazia pouco mais de um ano que havíamos voltado de uma temporada de 5 anos em Los Angeles e estávamos nos sentindo ainda muito ligados à vida e aos amigos americanos. Confesso que senti-me aliviada pelo fato de que o ataque era contra New York, não contra Los Angeles. As chances de que alguém conhecido estivesse àquela hora no WTC eram desprezíveis. Pelo menos eu não teria que chorar por ninguém em particular e anuviar, com isto, a minha primeira reação que foi, para susto e protesto dos meus filhos, a de satisfação.
Não satisfação com a dor e a miséria de tantas pessoas. Satisfação porque alguém tivera a coragem de protestar, no próprio território americano, contra as políticas abusivas dos Estados Unidos no mundo. Achei que com a evidência da sua vulnerabilidade, os americanos pudessem se tornar menos arrogantes e mais humildes. Quem sabe, vulneráveis, os americanos não prestariam alguma atenção à vulnerabilidade alheia? É claro que nos meus cinco anos de Los Angeles percebi que nem todos os americanos são arrogantes como é arrogante a política externa do seu país. E também percebi que a democracia americana, como a república ateniense, não cabe todos os que vivem em território americano.
Não custou para eu perceber que era vã a esperança que alimentara de que aquela tragédia servisse para os Estados Unidos repensarem a sua política externa. Percebi, logo nas primeiras reações dos políticos americanos, que o culto da humildade - parte do legado cristão - há muito deixou de fazer parte do protestantismo americano e, se eu cheguei a pensar que aquela lição poderia ter a força e o significado que os protestos pacíficos anti-globalização não estavam tendo, cuidei logo de tirar o meu cavalo da chuva.
Movidos pela dor, mas principalmente pela arrogância e vaidade, os políticos americanos queriam vingar os seus mortos. Diferentemente do que o meu espírito cristão sonhou, eles não conseguiam ver aqueles mortos como consequência das tantas tragédias que os Estados Unidos vêm produzindo mundo afora no esforço de manter a hegemonia conquistada desde a II Guerra Mundial. Ao invés de aproveitarem a oportunidade para rever a insustentabilidade da sua política global, encontraram o motivo de que precisavam para recrudescer tal política.
Não sei se pelo meu ofício de antropóloga ou pela minha alma cristã, não consigo achar que os civilizados valem mais dos que os não-civilizados; não consigo achar menos terrorista o terrorismo americano porque é pretensamente civilizado. Assim como não consigo achar que os paulistas são melhores do que os fortalezenses ou estes melhores do que os cratenses e assim por diante.
A tragédia de 11 de Setembro não serviu para ensinar este princípio fundamental, nem para os Estados Unidos e nem para os que apóiam as suas políticas insustentáveis. De quantas tragédias os americanos, e aqueles que neles se espelham, precisam para entender que somos todos humanos, não divinos?
Assinar:
Postagens (Atom)