segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Viagem Chile-Peru: de Santiago a San Pedro de Atacama

(Ainda para Circe, que gosta de viagens, de poesia e sempre me comove como o diabo!)


Santiago, Aeroporto Merino Benitez. 5 de fev 2008. 7:30am

Estou escutando Sampa (C Veloso) e, depois de dois dias intensos, finalmente parando por uns minutos enquanto espero o voo para Calama. De lá, pegaremos um táxi (?) para San Pedro de Atacama. Deborah sabe quase tudo que a espera, mas eu nao sei de nada, nao planejei nadas, mas tenho certeza de que saberei distinguir o que faz do que nao faz sentido fazer. Ontem à tarde, encontramos, nas Bellas Artes, um bairro daqui perto do centro, uns amigos seus que estavam vindo dessa aventura e, pelo que contaram, lembrei de Jericoacoara e todos aqueles passeios para turistas... alguns dos quais muito interessantes. Lembro-me particularmente de uma lagoa azulzissima onde eu e Marcus comemos o "melhor" peixe frito das nossas vidas.

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Quando estávamos vindo pro aeroporto no taxi dirigido por Abner, conhecido da Deb, eu pensava sobre a integraçao sulamericana e me convencia de que, para além dos laços estabelecidos através das metrópoles coloniais, o que mais nos juntou foram mesmo as ditaduras militares. Antes, apenas a burguesia mais curiosa e aventureira de um ou outro pais se arriscava pelo "atraso" ou "subdesenvolvimento" do outro. Ratier e Rodrigo, por exemplo, jamais teriam aterrisado em Campina Grande se nao fossem os golpes na Argentina e Chile. Foi pelas maos (e ironia!) de Ratier que fui levada pelos caminhos da antropologia e achei que era um mundo que valia a pena explorar por um tempo... "Apenas por um tempo", repito agora, ja me sentindo meio acomodada com tal escolha e achando que tá na hora de inventar outras coisa para fazer. Claro, quem me inspira aqui é WW, meu guru: "nao aceite nenhuma hospitalidade mais do que apenas por um curto tempo". A ideia é que, lá fora, o mundo (The Open Road) nos espera. Tenho me lembrado muito de Lucas todos esses dias, do quixote sem rumo, vendo os mochileiros aqui e acolá. Ontem, inclusive, na volta do passeio à casa de Neruda, paramos numa ferinha de artesanato no Pio Nono e lhe comprei uma escultura de D. Quixote. A imagem de D. Quixote é outra que inspira tanto todo mundo, ou pelo menos, todos os sonhadores e aventureiros. Mas eu nao quero me meter agora pelos caminhos da sua simbologia, principalmente porque agora talvez me enveredasse mais pelos arcanos do tarot (o eremita) do que propriamente pela literatura... abrigo onde quero ficar por esses dias.

Do dia de ontem, segunda-feira de carnaval.
Aqui, como em LA e Chicago, a última coisa de que se lembrará é que é carnaval. Hoje, por exemplo, é terça-feira de carnaval e nada, absolutamente nada, sugere isto.

Esses dois dias fiquei hospedada na casa de Soledade e Marcelo, amigos de Deborah. Ele é vitralista e ela engenheira quimica. Antes de falar desses dias, preciso apresentar a Deborah Krainin. Nos conhecemos em LA, em março de 2005, quando eu estava de passagem para San Francisco, para umas palestras e leituras de poesia. Eu estava hospedada na casa de Ivenia - brasileira que conheci desde os tempos da minha pesquisa com os brasileiros em LA - em Hollywood Hills, e ela era uma das inquilinas de um dos dois studios que George (marido de Ivenia) aluga. Eu e Ivenia estavamos voltando de um passeio à Bodhi Tree (livraria esotérica em Beverly Hills). Deb estava no portao, inicio de vários longos lances de escada ate chegar à porta. Ivenia nos apresentou e começamos uma conversa que dura até hoje, com intervalos curtos ou longos. Ela é formada em Literatura Espanhola e é tb poeta. No dia em que nos conhecemos ela havia sido demitida de um emprego numa ong e estava querendo se convencer de que aquilo era mais uma dadiva do que uma puniçao. Fizemos um monte de coisas juntas em Beverly Hills: livrarias, cafés, recitais de poesia. Conversávamos sobretudo sobre poesia e sobre as nossas historias de amor.
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Vejo, no relogio do meu vizinho, que sao 9.15am. Desde que saimos de Santiago que temos ao nosso lado esquerdo a visao da cordilheira dos Andes. Quer dizer, agora já nao mais porque esta entrando muito sol e o vizinho fechou a janela. Escolhi assentos separados nesta viagem pq queria ficar um pouco sozinha. Ja fiz varias coisas desde que sentei aqui. Dei uma lida rapida nas info do Lonely Planet sobre San Pedro de Atacama e acho que até ja escolhi alguns passeios e também ja sei o nome da lan house onde checarei meu email: Café Etnico. Nao é uma escolha antropologica, mas economica. É o mais barato da lista.

Acho bom estar viajando acompanhada, mas sei que isto se faz às custas do meu aprendizado do espanhol, de um lado e, de outro, da disposiçao de negociar o meu cotidiano com alguem que nao conheço bem. Um grande desafio, depois de todos os que me apresentou o ano da graça de 2007! Tantos que eu acho que precisava mesmo era de umas ferias da minha identidade e nao apenas de Fortaleza.

Mas como dizia antes, a proposito, das ditaduras sulamericanas, nao há mal que nao traga um bem. De fato, na minha experiencia o que observo é que quanto maior o mal, maior o bem. O outro desafio é continuar crista nessas horas e fazer o que propunha Cristo. perdoar e rezar pelos que nos fazem o mal. Desafio extraordinário. E certa superioridade, sem dúvida... Nas palavras de Mateus (5.43-48):" Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem (...) Porque, se amardes os que vos amam, que recompensas tendes? Ñ fazem os pecadores também o mesmo?"
Eu juro que ñ acredito que trouxe a minha bíblia, que pesa quase um quilo, pra essa viagem! Achei que teria de disposiçao de le-la inteira... Seria duas viagens: a do Chile e a da bíblia... Mas estou achando que ñ é ainda desta vez...

Aí Lucinha, a minha rezadeira, veio me perguntar exatamente isto: " Voce acha que ja tem condiçoes de pedir a Deus pelos que lhe provocaram essa dor?" " Ñ, Lucinha, ainda nao... quem sabe daqui a um tempinho mais? A verdade é que tudo parece tao remoto agora... E o que está proximo é a cordilheira dos Andes: silenciosa e infinita.
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Perguntei ao meu vizinho que água é esta que estamos enxergando daqui: "El oceano, el Pacifico!" Conversamos um pouco e ele insistiu para que eu fosse ver os geysers. É um passeio especial pq a saída é às 4 da manha. El Valle da la Luna é o outro passeio que me interessou. Voltando aos meus anfitriaos em Santiago. Soledade lembra-me Cenira, uma quase indiazinha, que trabalhou lá em casa quando Caio nasceu: baixinha, morena clara, olhos e cabelos muito pretos. Eu já chegava com um problema: ñ tinha conseguido sacar pesos com o meu cartao e ñ tinha dinheiro para pagar o taxi. Mas o taxista estava tranquilo: disse-me que se minha amiga ñ tivesse os 15 mil pesos devidos, ele voltaria outra dia, para pegar o dinheiro. Deborah estava fora, fazendo compras para o almoço, mas Soledade estava lá, me esperando. Ela me recebeu como se fosse uma amiga de infância, inclusive com mais entusiasmo do que a propria Deborah. Foi mostrando a casa e o lugar onde eu ficaria. Depois chegaram Deb e Marcelo, seu marido, e fomos todos cozinhar. Quando terminamos o almoço jantar era 6 horas e o sol continuava brilhando como se fosse 3 ou 4 da tarde.

Miguel Angel, o taxista que foi me pegar no aeroporto, foi me contando sobre Santiago. Aquele túnel sob o rio Mapocho, ligando o aeroporto a Las Condes, era recente. Antes sse levava quase duas horas do aeropoto àquela regiao. Ele me disse o valor da obra, um preço absurdo, mas justificavel em funçao do poder aquisitvo da populacao beneficiada. Passamos por baixo do centro da cidade e de toda a regiao mais pobre. Mas ele insistia que nao há pobreza no Chile. Nada parecido com o que havia há quinze/vinte anos quando a cidade era cheia de pobres e eels acampavam ao longo das rodovias...

A minha memória do Chile era limitada à cortesia de Rodrigo... Um ou outro verso do Neruda... Violeta Parra e Victor Jara... Allende... Pinochet. Alicia del Campo, amiga da Latin American Perspectives... Ontem, enquanto caminhava pelas ruas com Deb, pensava em como é confortável a ignorância. Eu sentia uma coisa meio esquisita em se tratando de mim que estou sempre interessada no conhecimento: eu ñ queria saber de mais nada que eu já ñ soubesse... tudo que queria era olhar as pessoas nos ônibus, nas ruas, nos bares e restaurantes. Tinhamos a missao de resolver o meu problema de dinheiro e passar na LAN, essa cia aerea na qual estamos viajando. Isto é interessante e diferente do que estou acostumada: os assentos das passagens promocionais ñ sao marcados automaticamente na hora da compra. Os passageiros é que providenciam isto - via internet - dois dias antes do voo. Deb queria pegar um taxi até o BB. Eu insisti para que fossemos de onibus.

Deb está em crise com o Chile: reclama de tudo; tudo é sujo, todo mundo é mal-educado; os homens sao estupidos... Todas as cadeiras do onibus estavam tomadas e ficamos em pé. Ela queria continuar falando em ingles e eu doida para por o meu espanhol à prova. Havia um show no onibus: um homem alto, barbudo, 50 anos, tocava guitarra e gaita à Bob Dylan. Sempre se demorava explicando alguma coisa sobre a música que cantaria a seguir. Cantou Gracias a la vida e outras que ñ reconheci. Depois recolheu uns trocados entre os passageiros mais generosos e saiu. O funcionario do BB era uma homem de uns 40 anos, bonito, simpatico e paciente. Fiz umas dez perguntas antes de finalmente me decidir sobre o que fazer e ele se manteve até o fim bonito, simpatico e paciente.

Andando de um banco pra outro, Deb descobriu que eu ando de lado, ao invés de pra frente. Acho que Laís e Emma já haviam me dito isto antes. Pouco depois descobrimos que o meu "andar de lado" tendia para a esquerda. Assim, se ela se mantivesse sempre à direita ñ correria o risco de ser atropelada. Que praticidade...

Adoro férias porque posso andar nas ruas meio de bobeira... A Deb tinha objetivos mais claro... Eu acompanhava apenas. Ela tinha obrigaçoes, mas eu me sentia uma criatura livre, na verdade, "sem compromisso nem com a saudade", como dizia o filósofo Lavô. Mas uma coisa me incomodava: a minha saia estava meio caindo e eu usava uma camiseta que deixava aparecer um pouco da barriga. Deb observou meu "sex appeal": eu acho que todos os homens estao te olhando... (Tá vendo, Brian, que ñ sao apenas os americanos?). Pois é, mas eu nao tava nem notando, estava olhando pras pessoas sem segundas intencoes; apenas olhando zen-budisticamente... E deixando-as ir... Como é bom saber que as chances de encontrar algum conhecido sao remotas...

Depois que resolvemos o que era necessario, Deb me perguntou o que eu queria fazer: "qualquer coisa, a única restriçao que tenho é a museus...". Estávamos com fome e resolvemos pegar um taxi para o Patio Bella Vista, uma especie de shopping de artesanato e alimentaçao aberto, proximo da casa de Neruda. Almoçamos no Galindo, um restaurante na rua de trás, Dardignac 98. Eu queria vino. O vinho daqui é o Carmenere. Escolhi fácil o da casa. Lembrei de Lisboa: ñ havia chances de erro escolhendo o vinho da casa. Mas foi ainda mais fácil: um dos vinhos da casa se chamava Sta Ema... Pedi para Deb pedir algum prato do lugar: pediu Pastel de Choclo e uma salada mixta e tudo estava muito gostoso... Acho que aquela foi a melhor parte do passeio. Estavamos tranquilas, sem planos e nos entregamos às nossas conversas de sempre e Deborah recitou, muito lindo, o poema abaixo:

The Great Fires

by Jack Gilbert

Love is apart from all things.
Desire and excitement are nothing beside it.
It is not the body that finds love.
What leads us there is the body.
What is not love provokes it.
What is not love quenches it.
Love lays hold of everything we know.
The passions which are called love
also change everything to a newness
at first. Passion is clearly the path
but does not bring us to love.
It opens the castle of our spirit
so that we might find the love which is
a mystery hidden there.
Love is one of many great fires.
Passion is a fire made of many woods,
each of which gives off its special odor
so we can know the many kinds
that are not love. Passion is the paper
and twigs that kindle the flames
but cannot sustain them. Desire perishes
because it tries to be love.
Love is eaten away by appetite.
Love does not last, but it is different
from the passions that do not last.
Love lasts by not lasting.
Isaiah said each man walks in his own fire
for his sins. Love allows us to walk
in the sweet music of our particular heart.

3 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Berna querida, aqui eu de novo. Chove e faz frio no Rio. Soa tão diferente, né? O dentista desmarcou e aproveitei pra dar uma olhada aqui. Meu nervo ciático começou a doer e acho que a culpa é tua, com essa história de viagens, que tanto amo, mas que não posso mais fazer como gostava, como fazes agora. Já te falei da Rosalinda? E do seu livro sobre as orígens das dores. Pois é, taí a prova concreta. Foi ler tuas aventuras passarinheiras, lembrar vagamente das minhas ( foram taaaantas que não lembro ) morrer de inveja e o ciático começar a doer. O livro de Rosalinda está certíssimo. Mas voltando ao Chile e porque nunca desejei ir até lá. Acho que o primeiro sentimento foi patriótico, ao saber sobre o país mais adiantado da América do Sul - por que não era o Brasil? Novamente a inveja, revestida de um sentimento contra aquela elite privilegiada e culta e de seus pobres, politizados, que lutavam e não se deixavam oprimir facilmente. Quando Allende foi eleito, meu coração exultou: agora sim valia a pena conhecer o Chile, mas a alegria durou pouco e depois, todo aquele horror. E depois, a dificuldade em se punir Pinochet, dava-me vontade que alguma desgraça acontecesse àquele país - mas que se salvassem os pobres e todos os que foram por Allende. Já nasci assim, Berna, com a alma respirando política, interessada no destino dos homens. Meu pai dizia sempre: pareces um espanhol que já nasce com a bomba na mão - Hay gobierno, soy contra! Uma anarquista nata, que só se identificou mais tarde e que - com a graça de Deus - vai morrer assim, com o sentimento à flor da pele. Familiar e de interesse para mim só a palavra do título: Atacama. Não tem aí um deserto com uns desenhos supostamente de extra-terrestres? flávio andou por aí, filmando sei lá o quê, mas sempre depois, surfando em algum point de ondas boas ou cobrindo algum evento sempre aquático. Conhece todo este litoral do Pacífico de cabo a rabo, já foi na Ilha de Páscoa várias vezes, atravessou a Cordilheira numa aventura louca, fez tudo o que eu não consegui e desejei fazer mas sinto quase como se fosse eu, sabe? Coisa de mãe e acho que isso vc entende muito bem. Quanto à poesia, devo te confessar que não sou aficionada, istó é, não entro numa livraria para comprar poesia, mas quando é boa e me cai nas mãos, gosto muito. Esta, que a sua amiga aí recita, é muito linda porque fala de amor com muita propriedade. Correlaciona e encadeia a paixão, o amor e o desejo. Eu tinha uns escritos sobre três amores especiais ( o jovem marido não está aí incluído, pois ninguém concorre com ele) e tenho certeza que irias amar lê-los, mas, infelizmente, esses perdi num HD que "se fué" , sem retorno ( os relatos, pois os amores ficaram guardados no cantinho do saldo "felicidade") A despeito da minha implicãncia com o Chile, agora com esta Presidenta furta-cor, espero que continues a mandar relatos de viagens. Não sei se te contei, mas aos 62 anos viajei por 11 países da Europa, sozinha, com uma mochila de 30kg. Estou lá no Slide Show que Renata fez para mim e que te mandei , mas não sei se recebeste. Vou tentar ler tudo sem ciática, como se fosse uma continuação de minhas andanças ( e vc fosse eu, continuando ) assim o prazer será indolor.
Um grande beijo da circe

(Eu assino aqui pois nunca sei se vou acertar colocar meu nome nesse negócio complicado de Blog)

PS: Sábado pretendo conhecer Dalinha Catunda ( Aragão)na ABLC em Santa Teresa, em sua posse como Acadêmica

Anônimo disse...

EM TEMPO

Só agora estou vendo que vais para o Peru. Empaquei na minha implicância com o Chile e nem percebi. Amo o Peru de paixão ! Não apenas pela maravilha que é Machu Pichu, mas por outros relatos e um ou dois romances que li ( não me perguntes o nome que esqueci)Aliás, com excessão da Colômbia( governo servil aos EUA) e do Chile, meu coração bate por toda a America do Sul, atualmente, em especial, pela Bolívia e pelo Paraguai, pelas dificuldades pelas quais passam. Com excessão do Flamengo, vou morrer do lado dos oprimidos rsrsrs
Circe

Anônimo disse...

Apenas uma dica sobre o deserto do Atacama...lá é bem alto, viu? Meus pais foram recentemente e minha mãe passou mal. (são quase 4.000 mts de altitude)...mas o lugar (pelas fotos) é maravilhoso..vale a pena!