domingo, 7 de setembro de 2008

Viagem Chile-Peru: rumo à Santiago

a Circe Vidigal e Mari Chiba, que gostam de diários e viagens,

(estou postando esses relatos porque alguns amigos pediram... Eles se referem à viagem que fiz ao Chile/Peru em fevereiro deste ano da graça de 2008... Os computadores que "frequentei" tinham teclados diferentes dos nossos e nem sempre pude ser fiel ao meu amado idioma)

Santiago, 4 de fevereiro de 2008 Sao quase 8 horas e parece ainda de madrugada. Ficamos de sair de casa para um tour por Santiago la pelas 11... Tempo de sobra para digitar as anotacoes feitas ate agora.

Aeroporto Guarulhos, 3 de fevereiro, 9:30am
Quero voltar agora aa tempestade mental que me envolvia enquanto eu esperava na fila do check-in da Varig. Pensava no quanto as viagens me excitam; me carregam pra outros mundos e me poem em contato com os meus sentimentos mais profundos. Me poem em contato com o ser livre que ainda sou e que em tantas circunstancias imagino morto. Percebi, desde que cheguei ao hotel, que trouxe mais roupas do que o necessario. Na verdade, bastava 5 camisetas... e eu trouxe o dobro... Poderia ter-me consultado com o Lucas. Como me dizia o Paul, quanto menos, mais! Ele se referia aas palavras. Menos palavras, mais sentido, mais poesia, mais desafio. E, do ponto de vista da logica do vestibular da UFC, acrescentara Caio: menos erros. A bagagem alem do necessario eh uma metafora apenas. Preciso lidar com as consequencias das minhas escolhas... E fazer novas escolhas quando as anteriores nao me levam pra onde quero... Pelo sim, pelo nao, poderia encher a minha casa e a minha alma de avisos; viaje leve! quanto menos, mais!

O vocabulo " alma" me remete aa minha excitacao quando vinha do hotel. Palavras, ideias, sentencas rodopiavam aa minha volta como flocos de neve numa tempestade. Veio aa minha memoria o maior legado de O Denario do Sonho (Marguerite Yourcenar): " quando a alma eh surda, de nada servem as palavras."

Voo SP-Santiago
Estou escutando Kid Rock e me lembrando do Caio, que me ajudou a gravar as musicas que estou agora ouvindo... Estou me lembrando dele e de tantos outros anjos da guarda na minha vida... Quem me apresentou ao Kid Rock foi o Bill Schulte, um amigo querido de Riverside, que tinha/tem "pedigree" para ser qualquer coisa na vida e acabou se tornando jardineiro e produzindo as rosas mais cheirosas do mundo... E com isto criando problemas para si proprio e para varios maridos cujas esposas presenteou com essas rosas. Eu fui uma delas, embora nao me lembre de isto ter causado nenhum ruido particular na minha relacao com Sergio por isto. De fato, apesar de usar as suas rosas como instrumento de seducao, Bill nem estava tao disponivel assim. Era tao casado quanto eu e foi atraves do futebol da Raquel e da Bettina, sua filha, duas grandes jogadoras, que nos conhecemos e nos tornamos amigos. Depois que Sergio voltou com o Lucas para o Brasil, em meados de 1999, o Bill me confessou que se apaixonara por mim desde o primeiro dia que me vira. Era interessante conviver com a sua paixao que se transformava em rosas, poemas, longos papos regados a cafe, caminhadas pela Box Springs Mountains e viagens (com a familia!) aas praias proximas! Raquel e Caio achavam o Bill super "cool" e quando eu me apaixonei platonicamente pelo Armando eles acharam um tremendo mau-gosto. E estavam certos, como sempre. Porque platonica, a minha enfatuacao pelo Armando nao atrapalhava em nada a minha amizade com o Bill, ao contrario.

Diferentemente de todos os meus amigos, Bill era um nativo de Riverside e foi ele quem me ensinou sobre a cidade e a sua historia tudo que sei. Sobre a cultura das classes altas; a transformacao da paisagem com o crescimento de Los Angeles; como Riverside, com a producao de laranja, conseguiu, na primeira decada do seculo XX, ter a maior renda per capita do pais e se tornar famosa muito antes de LA. Tudo invertido agora. Um seculo depois do breve apogeu e do posterior e estonteante sucesso de LA, eh possivel que apenas um ou outro sobrevivente das classes dominantes de Riverside conte essa historia. Mas Bill tambem me apresentou a outros mundos: o do surf, por exemplo. E outros. Observo, atraves dele, a dinamica das amizades. Todas pressupoem tempo para gastar com o outro. (Depois de uns dez anos na pele de mulher, Deirdre me falava sobre esse tempo e esse investimento que desconhecia quando era homem, mas eu, ao contrário dela, conheci muitos homens que investiram na amizade). O Bill me comovia muitas vezes. Ele gostava das minhas mini-saias e um dia, saindo do Trader Joe's, me disse, apontando um casal de velhinhos "saudaveis": "ei Berna, eu te imagino daqui a algumas decadas como essa senhora aí e ainda usando essas mini-saias... e eu ainda te achando a mulher mais linda e mais sexy do mundo." Todo mundo que ama enxerga isto e enxerga seculos e seculos na frente, mesmo que a vida inteira nao dure mais meia hora. Um dia Bill me ligou aflito. Precisava conversar comigo urgentemente. Fomos para o parquinho do Family Housing. E ele me contou de Ted, grande amigo da adolescencia e dos primeiros anos de adulto. Ted era o cara mais bonito e mais cobicado do grupo. Nao havia mulher bonita que nao estivesse interessada nele. Depois se mudou pro Novo Mexico e foi um alivio para o Bill e seus amigos. Quem sabe as mulheres agora nao comecariam a prestar atencao neles? Bill me contou que no dia anterior recebera um telefonema dele. Estava passando por Riverside e queria encontra-lo. Bill foi ao seu encontro e quase morreu: Ted nao era mais aquele seu amigo, havia mudado de sexo; continuava muito bonito, mas agora sob o sexo feminino. Estava com a sua namorada/mulher... Ou seja, nao havia mudado de sexo porque nutria pelos homens qualquer desejo... Ao contrario. Bill ficou muito assustado com o encontro e queria conversar. Estava em crise. Nao de genero ou de sexo, estava em crise de tudo... Volto ao presente: O aviao acabou de decolar. Enquanto subia se descortinava aa minha esquerda a imensidao em que se trasnformou Sao Paulo...

(...)
A vantagem de voar Varig eh que ha vinho e nao custa 5 dolares como nos voos das companhias americanas. Enquanto almocava, conversava com Rosalba, uma venezuelana, mais ou menos 22 anos, companhia ate Santiago. Ela eh estudante de Relacoes Internacionais na Universidad Central de Caracas. Conversamos sobre varios temas: governo Chavez, linguas, hegemonia politico-economica. Ela tem uma visao mais imparcial do Gov Chavez, menos preconceituosa: acha que esta fazendo muitas coisas boas, mas lhe faltam delicadeza e diplomacia. Falamos em espanhol e ingles. Ela se entusiasma quando sabe que sou antropologa. E conversamos um pouco tambem sobre mim e o meu trabalho. As minhas descobertas sobre mim mesma e o mundo estudando brasileiros nos Estados Unidos. Pronto. Como vejo tudo em permanente transformacao, busco, agora, a Bernadete de Sumeh e dela so encontro a capacidade de sonhar... Tudo o mais se transformou, inclusive a forma como a enxergo e como enxergo Sumeh, seu eterno laboratorio existencial/poetico. Sumeh, como o sertao, tambem eh maior do que o mundo inteiro. Nao ha medo, surpresa ou traicao de que Sumeh nao tenha sido palco. Ainda ha pouco, quando caminhava do Terminal 1 para o 2 (aeroporto Guarulhos), eu me indagava sobre mim mesma. Meus sentimentos e desejos. E me sentia como imagino que se sente um monge budista: satisfeito. E essa satisfacao tinha a ver com a minha mais absoluta gratidao aa minha historia. Concentrava-me particularmente na gratidao aos meus pais. E por favor nao se suponha que ha aqui qualquer elogio ao que eles eram. Meio argentinianamente, eu diria que, se ha elogios a fazer nao tenho a menor duvida de que devem ser feitos a mim mesma... Pela capacidade de desde cedo transformar miseria em poesia... Falo do meu pai primeiro: eh possivel que ninguem no mundo tenha me ensinado mais sobre a solidao do que ele. Ao contrario de outros solitarios que conheci depois, ele nao temia a solidao. Entregava-se a ela de corpo e alma. Foi atraves da observacao da forma como ele lidava com a solidao que descobri o prazer do cigarro e da, entao, musica popular brasileira. Nelson Goncalves, Angela Maria, Cauby Peixoto... uns xotes de Luiz Gonzaga. E Amalia Rodriguez e Carlos Gardel. Eu queria fazer parte daquela solidao e ai inventei Heloisa, uma personagem de um dos meus romances que, ao contrario de mim, tem lugar na solidao do seu pai. Aprendi com Sebastiao Beserra de Souza que a solidao eh um excelente lugar e talvez por isto nunca me impressionei com a solidao dos Buendia. E sempre conversei sobre isto com os meus irmaos mais proximos e mais dados aas filosofacoes: Fabio, Lais, Katia, Klenia e Wallas. Mas eu sei que eh dificil ficar sozinha... Uma missao quase impossivel. Quando escolhi ir para um hotel ao inves de ficar na casa de alguem conhecido em SP, o que eu queria era ficar sozinha. Mas sao muitos os apelos de companhia: televisao, livros, telefone, internet. Entreguei-me aa companhia de Robert Pirsig (O Zen e a Arte de Manutencao das Motocicletas). Li-o pela primeira vez ha exatos 21 anos, em 1987, quando Kel nasceu. Li e me impressionei. Convenci varios dos meus amigos a tambem empreender a aventura de viajar com ele. Tornou-se uma das minhas mais importantes referencias... Eu nao aprendi nada sobre o zen, mas entendi um monte sobre a minha propria loucura e passei a relativiza-la e respeita-la ainda mais. Como eu, tanto o Robert Pirsig, quanto a sua personagem, Phaedro, haviam se aventurado pelas freeways e atalhos da loucura. Mas a sua loucura, diferentemente da minha, tinha origem noutros desafios. Sem me aprofundar numa busca de causas e efeitos, comparo os caminhos e descaminhos da loucura apenas aaqueles que me oferece o amor. A poeisa tambem, claro, oferece muitos insights. Mas de tudo que ja li somente dois poemas me levam dos pincaros do ceu aas profundezas do inferno: Song of the Open Road, de Whitmann, e Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke. Tabacaria, de Pessoa, também... As vezes leio apenas alguns versos desses poemas para me lancar numa busca de fazer inveja a Zenon (A Obra em Negro).

Uma conclusao provisoria, para quem precisa de conclusoes: a vida me assusta menos agora porque tambem me assusto menos comigo. Claro que ainda temo muitas experiencias, entre elas, a das drogas, da religiao e da criacao literaria. O amor que, de acordo com a Maria Rita Kehl, eh a droga mais pesada, ja nao me assusta mais. (Acho que "drogas" eh a categoria mais generica das citadas acima porque nela cabem o amor, a criacao literaria e a propria religiao...)

Sao quase duas da tarde e fomos avisados de que estamos nos aproximando de Santiago. O espetaculo da cordilheira dos Andres com os seus picos nevados confundindo-se com as nuvens eh mais apocaliptico do que o do Bryce Canyon. Tao extraordinario que me contenho para nao aplaudir. Rosalba ainda faz o gesto de aplauso e rimos cumplices. Estamos quase chegando. (....) Enquanto esperava na fila do banheiro, observava o tapete denso de nuvens e me imaginava caindo sobre elas como se sobre um colchao de penas... macio como meus seios... e seguro como o colo da mae...

2 comentários:

Anônimo disse...

Minha querida. Li tudinho, de frente pra trás. Obrigada pela lembrança. Li o comentário do maravilhoso desconhecido ( vc não está apaixonada de novo? Deveria, eu não resistiria) Mas sabe, fiquei, ao mesmo tempo encantada e triste. Encantada pelo que voce sente com tanta intensidade e triste porque eu não sou voce - pura inveja ! Hoje, Rosalinda, ao fazer-me um maravilhoso shiatsu, mostrou-me um livro que vou comprar ( mas esqueci do nome agora) e que fala do significado emocional das dores e dos males que sentimos. Fomos lá procurar "ciático" e o livro nos falava da dor que sentimos ao não esquecermos os padrões antigos, os modelos vividos. E eu me lembrei do meu amigo analista me dizendo, que era preciso aceitar os novos limites que a vida nos impõe. Aceito inteligentemente, pois não há outro jeito, né? A cabeça aceita, o racional aceita, mas, e o coração? É duro, amiga, saber que não tem volta. Pra ser bem sincera, é muito duro! E ver, a cada dia que passa faltarem menos dias. E sentir, ainda hoje, dentro de você, a capacidade da alegria, da aventura, da paixão, como sempre foi quando se era jovem. E saber que o limite estava era ali, nada mais daquilo ser possível. Isso é um desabafo honesto, sem a hipocrisia da auto-ajuda que fala do lastro de felicidade que ficou em mim, com garantia até os "finalmente". Gostei muito de tudo - conteúdo e forma. O poema de Lúcia é maravilhoso, teus versos do cotidiano sujo e mal cheiroso idem. Será que um dia vou te conhecer? E será preciso? É como se te conhecesse desde sempre, minha querida. Suas paixões me emocionam, me encantam. Você é puro amor, sentimento, rebeldia, ousadia, simplicidade. Linda mistura, amar os homens, os amigos e os filhos. Muito familiares todos estes sentimentos... Há muito não sentia saudades de alguma coisa. Sempre disse que não sentia saudades de nada, pois havia vivido tudo plenamente. Mentirosa sem querer. E invejosa por alguns segundos, pelo menos. Fico aguardando mais.
Grande beijo. Circe

Anônimo disse...

BERNA, FRAN &CIRCE
Você Circe deve ser uma filósofa ou mais que isso, uma visionária do tempo que no entanto, mergulhou em mares de conhecimento. Compreende tantas coisas de si e da vida. O que mais quer você? por favor me diga. Se já analisa e mostra a face desnudada da vida, em corpo e alma. Como querer ser alguém, se você tem tanta essência...fico imaginando horas de conversa com você e Bernadete, sob a árvore da vida...
De que falaríamos uma tarde inteira?
Qual a sabedoria mais verdadeira?
Que mais vale a pena comentar depois de tanta vida que vivemos?
O que é mesmo esta vida que buscamos sentir por entre as frases que escrevemos, como água que escorre entre os nossos dedos?
Fazer perguntas para quem responder?
E Deus, será que tem piedade de nossa busca tão incessante e ao mesmo tempo tão pequena?
Quando virá dizer o que é mesmo importante?
O que de nós espera, ou não espera nada, enquanto esperamos por Ele?
Perguntas que perguntam às perguntas que perguntam por perguntas que nos tragam a RESPOSTA.
Circe, você viu o que disse a Berna sobre os pais?
"Concentrava-me particularmente na gratidão aos meus pais. E por favor não se suponha que há aqui qualquer elogio ao que eles eram. Meio argentinianamente, eu diria que, se há elogios a fazer não tenho a menor dúvida de que devem ser feitos a mim mesma... Pela capacidade de desde cedo transformar miséria em poesia..."
Então lembremos que Deus nos deu a arte, uma porta aberta à dimensão do nunca descrito, ou até nunca vivido. Como o romance que de fato não aconteceu e pode ser dito.
Recriar a vida no significado traduzido. Busca de tocar as fímbrias do manto de Deus, com nossos dedos e nossas mentes. Com o nosso coração talvez podemos!(digo assim pra se tornar viável).
REconhecer o nosso lado humano cheio( uns mais outros menos) de vaidades, invejas, ciúmes e toda a gama de coisas mundanas que vêem do ego, pobre construto que só serve por algum tempo e depois só atrapalha o viver do espírito.
Você tocou no centro do problema: Os limites que a vida(condição terrena) nos impõe.E o principal limite a meu ver é o tempo. Ele demarca o quanto temos,o "quando" vamos. É ele que nos faz pensar no que é importante. A tal da essência.
E quem nem pensa nisso, não viverá feliz na ingenuidade de se saber eterno?
Ser eterno como o espírito, meu Deus o que é isso?
Espiritualidade, dimensão salvadora que se nos apresenta à mente fatigada, ao corpo que nos dita a hora de dormir...
sim, viver em espírito. Pode ser possível agora?
Será este o contato com o Sutil Divino Criador e Amigo, Deus, uma energia,sem nome previsto. Simplesmente crer que Ele existe e tudo faz sentido...
Francinete