sábado, 6 de setembro de 2008

Reencontro

(Tantos encontros e reencontros que estas Sumehrianas estão rendendo... Amanhã falo mais sobre isto. Mas ofereço agora ao leitor este poema lindo que recebi de Lúcia Couto, uma mulher linda que tive o privilégio de encontrar no primeiro dia de aula do mestrado em sociologia rural, em Campina Grande, há quase mil anos... ou quando mesmo, meu Deus?)

Para Berna


Agora que as crianças dormiram
Aquele sono de infância que
nossas memórias guardam
podemos, desde nosso silêncio
ocidentalmente ocupadas
recuperar liames
enquanto pessoas amadas.
Amor jamais corrompido
Pelo tempo passado
Entre um encontro e outro...
Jamais consumido
No cotidiano desencontrado
De pessoas alheias
Ou definhantes sentimentos
Na hipocrisia pautados...

Não...não fomos nós!

Agora que as crianças dormiram
Permitindo aos adultos a deixa
De buscar seus próprios cerrados,
Vamos nós por em dia
Da nossa vida o regaço.
Vamos nós de alegrias
Preencher o terraço
Da casa que não conhecemos
Que não construímos
E que talvez... tanto quisemos.
Projeto presente em cada sono
Cada sonho comunitário
Que para além
De qualquer chavão revolucionário
Era parte de quem re-parte
Por um devir visionário.

Sim...fomos nós!

Agora que as crianças dormiram
Que se nos cheguem
Todos os tempos e palavras não ditas
Que se preencham todos os espaços
Dos quais a vida
Com seu bom(?) senso nos privou.
Que se nos cheguem
Todos os viajantes que nem cumprimentamos
E que menos ainda amamos.
Que se nos cheguem
os tempos de hoje... surrealista pintura
como os ventos que levam os invernos
como os amores que aliviam os infernos
como as dores que obrigam à cura!

Sim...somos nós!

Agora que as crianças dormiram
Que os homens se foram
Em sua busca insana
À procura do nada
É nossa vez de,
Assim como é sangrar
Uma vez por mês,
Permitir à palavra a fluidez
E ordenar a emoção do pensamento
De maneira que de agora em diante
E até o fim dos nossos tempos
Nenhuma lacuna
Ou estanque momento
Venha nos fazer lamentar
Quando uma ou outra
Parar de respirar
Em rendição à vitória do tempo.

Lúcia Couto

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

“Solidão Equilibrista” no mundo, finalmente!


Comecei a sonhar e viver o mundo dos livros antes de desenvolver qualquer consciência sobre o mundo mais concreto ao meu redor. Lembro-me, a partir dos dez anos, a felicidade que sentia quando ia aos Correios receber os livros que havia pedido às Edições de Ouro. Meu coração batia forte enquanto eu subia a ladeira da Sizenando Rafael correndo para chegar em casa e abrir logo o pacote. Até hoje guardo comigo o cheiro daqueles livros recém-chegados da longa viagem do Rio de Janeiro a Sumé... Entrei nesse mundo pelas mãos e histórias de Kátia, minha irmã mais velha, outra devoradora de livros. Na loja de papai, onde trabalhávamos todos, eu a ouvia, nos dias mais vagos da semana, conversando com seu Inojosa ou Seu Miguel Guilherme sobre os livros que estava lendo. Sempre achava fascinante aqueles mundos dos quais falava e o que mais queria era poder habitá-los.

Não sei exatamente quando comecei a querer escrever livros... acho que foi desde que comecei a lê-los. Queria recontar as estórias lidas porque nunca me conformava com os seus finais... ou alguns dos seus desenvolvimentos. Por que elas tinham que ser contadas sempre do mesmo jeito?

Já a poesia, do jeito que compreendo hoje, me foi apresentada mais tarde, por Álvaro Luís Guedes Pinheiro quando nos encontramos no segundo ano científico, no Pio XI, em Campina Grande, 1977. Por isto e pelo amor que sentimos um pelo outro, dediquei Solidão Equilibrista a ele. É quase um filho nosso... Na verdade é um filho de muitos pais e mães... Mas a presença de Álvaro na minha vida foi crucial para que esse livro de poemas viesse um dia a existir. Meus filhos, Lucas, Raquel e Caio também. Por isso que dedico também a eles; "aos bem-te-vis do meu quintal... e a todos os seres e dúvidas que não me deixam dormir mais do que o necessário..."

Escrever poemas eu escrevo de vez em quando... Aqui e ali. Esporadicamente. Não sou uma poeta como é a Olga, o Zé Netto, ou era o Álvaro... É quase um milagre que tenha conseguido reunir o suficiente para um livro. Mas eu sempre quis contar e publicar estórias... Não que as escrevesse; de fato, escrevia apenas cartas e diários. As histórias eu apenas imaginava... Tinha medo da escrita, achava quase um sacrilégio escrever... Fui, através da antropologia, perdendo esse medo e, de vez em quando, escrevendo um conto ou rascunhando o início de um romance. Tenho arquivos e arquivos com contos e romances inacabados... Esperando às vezes, para serem concluídos, apenas algumas horas da minha dedicação...

Solidão Equilibrista é também filho de uma parte minha que não quer mais negociar com aquela que está sempre em fuga da literatura e se abriga, medrosa, nos relatos antropológicos e noutras formas de escrita que não têm tanto compromisso com a revelação da alma. Decidi publicá-lo desde que o meu livro, Brasileiros nos Estados Unidos, saiu, New York. O meu lado mais literário sentia-se meio traído... Como assim, primeiro a antropóloga e depois a escritora?

Juntei uns 30 ou 40 poemas e pedi ao Seu Carvalho para dar uma olhada e ver se se inspirava por aqueles versos o bastante para escrever um prefácio. Depois de poucos dias, recebi seu telefonema dizendo que já escrevera o prefácio; que gostara muito dos versos que eu lhe apresentara.

Poucos vezes na minha vida senti-me tão feliz quanto naquela tarde em que li, pela primeira vez, os seus comentários sobre o meu livro. Li e reli o seu “prefácio” centenas de vezes... Era uma carícia na minha alma... e que eu não queria que terminasse nunca... Isto foi há quase quatro anos, em fins de outubro de 2004. Depois que meu livro, Brazilian Immigrants in the United States: Cultural Imperialism and Social Class, saiu eu não tive mais sossego: fiquei viajando muito para dar palestras nos Estados Unidos e não tinha tempo de me dedicar a publicar o livro de poemas... Mas fui fazendo uma coisa e outra e outra parte importante do livro que foi feita já nesse período foi a capa: Kinha e Ado, amigos de Campina Grande, produziram uma capa que é a minha cara... É a cara do conteúdo do livro... Com todo o respeito pelas capas lindas que há por aí, a de Solidão Equilibrista é a mais linda do mundo...

Desde o ano passado, quando voltei de Chicago, iniciei o trabalho de produção do livro, dessa vez era sério, eu queria ver o livro publicado, mas não tinha pressa, queria que fosse bem produzido, afinal já esperara tanto tempo! Meu querido amigo, e ex-aluno, Gilberto Machado, me apresentou a dois artistas, seus ex-alunos do CEFET: Lyse Horn e Leo Brum. Eles ilustraram o livro. Então, é um livro superlindo, que até as crianças gostarão de pegar, de olhar, porque tem figuras! Aproveito para agradecer aqui aos dois pela disposição de se debruçarem sobre os meus poemas e se deixarem inspirar por eles para me ajudarem a produzir um livro mais bonito, mais delicado...

Mas foi o trabalho paciente de Yone Almeida que deu ao livro uma diagramação quase perfeita... Ela “vestiu” os poemas... brincando com elementos da capa nas páginas internas onde há espaço para tais brincadeiras... Uma graça... Thanks Yone, pela sua paciência e pelo seu entusiasmo. Completam o livro o posfácio de Ireleno Benevides, poeta e colega de UFC, e a orelha de Nilze Costa e Silva, conhecida poeta e fundadora e colega nos Poemas Violados. Não posso deixar de agradecer também à gentileza e paciência do editor, Cláudio Guimarães, e de todo o pessoal da imprensa universitária da UFC, sempre tão pacientes com as minhas demandas: Charles, Heron, Luiz Carlos, Leonora...

Então é isto: estou muito, muito feliz de dar a luz a esse livrinho tão querido e tão esperado... Vou já-já providenciar o seu lançamento em Fortaleza e nas cidades onde tenho amigos poetas... E aí convido todo mundo!

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Antes que Floripa e Jericoacoara se percam pra sempre...

Lar doce lar. Alívio e sofrimento... Alívio porque é bom mesmo chegar e espalhar tudo e não ter que negociar com ninguém o próximo passo, a próxima hora... Sofrimento porque, após esses primeiros instantes de usufruto da libertação do “outro”, tenho que me decidir sobre o que fazer com o meu excesso de liberdade... E agora, o quê?

Quase igual à história do “pedi e obtereis” da prece, pedi ao meu chefe, Nicolino Trompieri, uma trégua naqueles cursos introdutórios de mil alunos e ele me concedeu... Agora estou ensinando apenas duas disciplinas: Antropologia da Educação, no curso de Pedagogia, e Pesquisa Etnográfica, na pós-graduação em Educação. Fizemos esse arranjo porque eu o convenci de que se não escrevesse o “livro” da pesquisa de Chicago agora, jamais escreveria. As aulas às turmas introdutórias de 50-60 alunos são uma espécie de alucinação da qual só me dou conta quando tudo passa, mas, enquanto dura, não dá para se envolver com mais nada, apenas seguir o conselho da Marta Suplicy: relaxar...

Agora, pois, tenho tanto tempo livre que parece até que estou diante da vida eterna... Para não me atrapalhar, o que é difícil, porque sempre me atrapalho com tudo, preciso escrever tudo que tenho que fazer e dividir o tempo entre elas... Uma agenda rigorosa.

Este blog será uma das coisas que tenho que fazer: a que mais me convida agora. Acho que vou trazer o “livro” pra cá: é um jeito de não escrever sózinha. Depois penso nessa história complicada de autoria e co-autoria, mas neste exato instante, me dou conta disto: que posso escrever o “livro” aqui e aí me sentirei menos só...

Eu, que vivo dizendo por aí, que não tenho medo da solidão, nem da morte e nem de Deus, agora com essa história de dependência com este blog... Pronto, é isto: a escrita no blog é uma prova da minha carência do outro: o leitor, o comentador... E os meus diários de verdade, que andam meio abandonados, são mais um encontro comigo, com Deus: não preciso de feedbacks quando os escrevo... A própria escrevinhação já é o feedback... a cura.

Enfim, cheguei, acho, embora às vezes ache que não chegarei nunca mais porque estarei sempre em trânsito... É uma sensação esquisita, mas também confortável... Não quero falar sobre isto agora... Agora preciso organizar umas anotações para a aula de Pesquisa Etnográfica...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A bela e provinciana Floripa

(Florianópolis (Córrego Grande), 26 de agosto de 2008)

Quero começar explicando que não há nenhuma conotação pejorativa no adjetivo “provinciana” do título da crônica, ao contrário. Poderia ter usado outro adjetivo: aconchegante, por exemplo. Mas provinciana rende mais palavras, mais explicações. Então, eis porque.

Ontem, enquanto caminhava com o Lucas para a casa de Felipe, seu amigo, me lembrava dos tempos de antigamente quando ia passar férias na casa de “vózinha” e caminhávamos do seu sítio/fazenda até o de Tio Ananiano. Claro que o Córrego Grande, bairro onde estou, não é tão rural assim, inclusive os latidos fortes dos pitbulls aqui e ali, que me assustavam e irritavam, também lembravam que estávamos numa cidade grande. Talvez tenha sido a familiaridade do Lucas com lugar o que me fez lembrar mesmo de “antigamente”: a casa do Felipe parecia ser uma extensão da sua. Caminhávamos pelas ruas como se elas já lhe pertencessem: tal como um anfitrião nos mostrando os vários cômodos da casa. Íamos à casa de Felipe com dois propósitos: levar o lixo orgânico daqui e checar a internet. Checar a internet nada tinha a ver com as necessidades do Lucas, mas com as minhas: um dos meus vícios. O Lucas aproveitava a minha necessidade para alimentar a sua horta. E isto é extraordinário: não tendo mais o seu próprio sítio para cultivar, como em Fortaleza, ele transformou o quintal do Felipe nesse lugar onde pode continuar capinando, jardinando...

Conto do começo: quando depois de dois vôos da Gol finalmente cheguei em Floripa, lá estava Marcionília me esperando com o seu sorriso enorme. O Lucas tinha aula logo em seguida e, depois de uns quinze minutos de viagem de visões panorâmicas, nos deixou nas imediações do campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Era hora de almoço e Marcionília me levava para o self service do restaurante dos servidores. Que alegria ver servidas como comuns todas as verduras e legumes que em Fortaleza são excepcionais: brócolis, brotos, beringela, vários tipos de alface, couve-flor, rúcula... que felicidade. O caminho do aeroporto para o Córrego Grande já oferecia uma idéia razoável da cidade: morros e praias... ou lagoas? Mas, diferentemente do Rio de Janeiro e Salvador cujos morros são povoados pelos pobres, aqueles pareciam mais “arrumados”, mais ricos. Mas Lucas e Marcionília me explicam que não, que aquelas são as favelas daqui. Chique, hein? E aí vão contando outras coisas da sociabilidade florianopolitana: não há praticamente aquela violência tão comum em Fortaleza e na maioria das cidades com população superior a meio milhão de habitantes (aqui tem 800 mil). E até praia para surfar, como em Fortaleza, Lucas também tem. Quase em casa: uma temperatura mais fria apenas, parece ser a única grande diferença. Eu não perguntei nada ainda sobre os preconceitos dos catarinenses contra os nordestinos... Será que nem isto?

Estou aqui, na aconchegante quitinete de Lucas e Marcionilia, esperando que ela chegue da aula de dança para inventarmos algo pra comer ou sair à cata de um restaurante. Lucas ficará dando aulas de inglês até as 22 horas. Quando cheguei da conferência, Lucas ainda estava aqui e me contou, sem muito sofrimento, que a sua carteira e celular haviam sido roubados... Havia ido surfar, com o Felipe, e deixaram carteiras e roupas no “esconderijo” que sempre deixam e quando voltaram do surf só encontraram as roupas. Menos mal. Mas, enfim, além do transporte público que todo mundo reclama, Florianópolis também tem o “descuidismo”... Mas eu não experimentei nenhum dos dois ainda e, por enquanto, Floripa é para mim sinônimo de aconchego, comida saudável, farta e barata e montanhas lindíssimas que circundam todos os lugares por onde vou...

"Finas fatias de viagem cortadas no ar..."

Aeroporto Pinto Martins, 25 de agosto de 2008
5:39am
São coisas diferentes que fazemos em aeroportos e rodoviárias. A memória é vívida porque há apenas 4 dias fiquei esperando na rodoviária de Fortaleza para ir para Jericoacoara. Lá não enxergo nenhuma possibilidade de, como aqui, sentar no chão, perto de uma tomada, e ligar meu computador. Os passageiros já se espremem perto do portão de embarque. Nunca faço isso. Nunca fico na fila. Permaneço no saguão até o último instante; em geral sou das últimas a embarcar. Observei hoje, enquanto na fila do check-in, que aprendi a gostar de aeroportos. Inclusive, gostar dessa distância “ótima” que os passageiros estabelecem entre si: ninguém incomoda ninguém; ninguém pergunta nada a ninguém. E eu posso me perder em paz nos meus delírios, nas minhas escrevinhações...

Há uns instantes senti como se tivessem acendido uma enorme lâmpada amarela atrás de mim. Meio incomodada me virei para ver o que era: o sol. Enorme, iluminadíssimo, amarelo-dourado. É sempre bom o sol nascendo... Agora está incomodando um pouco... mas ainda assim é bom. Me lembrei agora de uma entrevista com um desses físicos famosos nacionais, uma vergonha que não me lembre do nome dele porque é um dos mais famosos. Ele falava sobre o resfriamento do sol e evocou uma imagem que nunca mais me saiu da cabeça porque extremamente poética e irônica: o sol com uma vela na mão. Dizia que podia sim, que o sol podia, literalmente, ficar em tal situação. E eu fiquei morrendo de pena do sol: quem te viu, quem te vê...

Aeroporto Antônio Carlos Jobim (Galeão), 25 de agosto de 2008
10:19am
Desembarcamos há pouco e estou aqui, diante do portão pelo qual terei que passar para embarcar para Florianópolis. Saudades do Lucas e da Marcionília e vontade de conhecer essa cidade de que todos falam tão bem, quer dizer, como nada é perfeito, dizem, tem o pior transporte público do país.

Não posso perder a oportunidade de falar mal da Gol. Nem me lembrava mais que era assim, que o serviço de bordo era o pior do mundo. Imagine que nem café servem! Aí servem umas barrinhas de cereais, refrigerantes, suco de laranja e água. A aeromoça, chatíssima, estridente, me perguntou: quer cereal de banana ou maçã? E, para beber, água, suco ou refrigerante? Resolvi me comportar como uma surda e respondi: quero café. Ela, bem alto, e olhando pra mim como se eu fosse total idiota: “não temos café, senhora, apenas água, refrigerante e suco.” Aí eu quis suco de laranja, estava morrendo de fome, tinha que escolher mesmo, mas o fiz sob protesto. E continuei protestando com o outro comissário de bordo: um rapaz gentil, de voz sossegada e baixa. E ele explicou que a Gol nunca serviu café. Eu argumentei que inicialmente, quando as suas passagens eram 40% mais baratas que as das outras companhias, tudo bem. Mas agora?! Ele concordou. Depois eu disse: “devia ser mais “brasileira” e servir café.” Ele concordou também e me disse que todo mundo reclama. E me ensinou: vá ao site e também reclame. Mas também contou que isto vai mudar: a empresa está ouvindo as queixas dos consumidores. Eu não quero saber: a partir de agora só viajo pela Gol se for naquelas promoções de 100 contos ida e volta. Pronto. E aí trago minha lancheira. Mas aí, vejam, não foi uma reclamação vã: eu já estava completamente perdida nas aventuras antropológicas de Hortense Powdermaker, de quem voltarei a falar proximamente, quando o gentil comissário de bordo aproximou-se de mim e perguntou se eu queria um pouco do café que ele havia preparado para ele. Fiquei comovida e meio encabulada, sei lá, sentindo-me meio discriminada, positivamente, mas discriminada. Disse que sim. E ele trouxe o café. Como todos os copos que usam são aqueles transparentes para refrigerantes, ele usou o seguinte disfarce para não criar uma situação de protesto generalizado: usou dois copos; sendo que o que estava com café foi envolvido em guardanapos e posto no segundo, de modo que o conteúdo tornou-se invisível. Agradeci com a mão no coração, interrompi a minha leitura e comecei a degustar aquele café horroroso, preparado com nescafé, como se fosse um Kauai (Hawaí). Dali a instantes ele me surpreendeu de novo: trouxe biscoitos cream crackers e maizena...

Aproveito o ensejo para fazer um elogio à gentileza. Há algo mais comovente e benvindo do que a gentileza? Digam o que quiserem dizer do mundo moderno, burguês, capitalista, mas a invenção da gentileza só merece elogios... Não estou falando da cordialidade servil, colonizada, medrosa... Estou falando da gentileza de escutar o outro; colocar-se no seu lugar e dialogar com ele dessa perspectiva.

sábado, 23 de agosto de 2008

De ficção e ficções...

No dia 13 de agosto, um dia antes de voltar ao Brasil, inspirada pelos comentários de Muad´Dib a postagens anteriores, escrevi a crônica “Um outro eu... mas qual?” Recebi vários comentários, mas um deles, o de Emma, provavelmente não foi compreendido por muita gente. Copio o que ela escreveu: “Lembranças... Berna, desde ontem à noite fiquei pensando em uma pegadinha que você me fez há uns 20 anos atrás... sobre uma paixão... e me veio à mente coisas desse tipo. Quem é quem no mundo de hoje? Quem é a criatura e quem é a criadora??? Seria divertido.”

Emma sugeria que Muad´Dib fosse uma criação minha. Recebi o comentário como um elogio. Ela sugeria que eu era uma ficcionista tão imbuída do seu papel que transformava em ficção a própria vida. Conto agora a história da “pegadinha” do jeito que me lembro para depois voltar a falar de Muad´Dib.

Longos idos meados da década de 1980. Estava me recuperando do final do namoro com Valdemar e dividia um apartamento com Emma C Siliprandi, em Campina Grande. As duas fazíamos mestrado em Sociologia na UFPB. Para ajudar a sarar a dor de cotovelo fiquei viajando mais sistematicamente para João Pessoa: pela praia, por Laís, pelos amigos Giovanni, Leo e Ana Tereza e o recém-conhecido, mas já querido, Roderick Fonseca. Emma estava me achando meio silenciosa, meio esquisita. Eu já não sofria mais tanto pelo final com o Valdemar e, portanto, já não queria falar mais disso. Acho que o que vivíamos no mestrado não rendia naquele momento conversas particularmente entusiasmadas.

Emma e outros amigos achavam que o melhor jeito de me libertar do final da história com Valdemar era entrar numa nova história. Havia até certa pressão nesse sentido... Um dia, após voltar de JP, Emma me perguntou: “Ei Berna, tudo bem?” Naquele exato instante comecei a lhe contar a história desse cara esquisito que eu havia encontrado em JP... Naquele mesmo dia, escrevi no meu diário sobre ele. Meu silêncio passou a ser sinônimo de concentração no cara e naquela paixão esquisita. Passaram-se várias semanas, várias idas a JP. Emma sempre me perguntava por "ele" e eu contava como as coisas estavam indo... As férias chegaram e Emma viajou por um mês inteiro . Quando voltou, estava ansiosa para saber sobre o meu “namorado”. E eu, completamente desprevenida, respondi: “que namorado?” Ela: "o teu namorado esquisito, guria!"E aí aquela história: a vida inteira para adquirir confiança e apenas um instante para perder. Eu me traí com a minha resposta. Havia esquecido a própria ficção. Tinha inventado a história do namorado esquisito porque achava mais fácil atribuir o meu ensimesmamento a ela do que às dúvidas e buscas.

Emma não me perdoava por eu ter “inventado” a história. E me olhava ora como a uma louca ora como a um monstro. Pelo jeito, até hoje não me perdoou. Enfim chego ao presente. A Muad´Dib e à hipótese de Emma de que ele também pode ser ficcional. Eu tenho certeza que é. Apenas não é cria minha, isto eu garanto. Não me sinto capaz de criação tão extraordinária, pelo menos não ainda.

Como Emma e outros leitores deste blog, também sinto muito a falta de Muad´Dib... Não sei porque ele sumiu, sei que foi imediatamente após a crônica em que revelo o impacto que têm os seus comentários sobre mim... Pois é, não sei porque sumiu... mas adoraria que voltasse...

Ganhando o mundo, camará!

(Jericoacoara, sábado, 23 de agosto de 2008, 6:56h)

Acabo de voltar da padaria Santo Antônio, um dos pontos turísticos de Jericoacoara. Acordei 5:30, morrendo de fome e Júlio, um dos rapazes que cuida desta pousada, me indicou essa padaria, que abre todos os dias às duas da madrugada e fica aberta até enquanto há pão. É\ uma história simples e meio boba como quase todas as histórias das tradições. O dono, cujo nome esqueci de perguntar, costumava abrir 6 da manhã, com pães quentinhos. Com o aumento do turismo a fila que se formava de manhã foi crescendo e ele foi sentindo a necessidade de acordar mais cedo para ter condições de atendimento da demanda. O seu filho, o senhor que me serviu hoje, me disse que em geral começam a trabalhar umas 9 ou 10 da noite para às duas abrirem com pão fresquinho. Eu tinha algumas memórias da primeira vez que fui lá, em janeiro de 2001, quando estava namorando o Marcus. Lembrava-me de uma mesa longa, onde todos os fregueses sentavam juntos. E lembrava também de um pão grande, especial, tipo panetoni, servido com café. Hoje ele me disse que é um pão de coco. E também servem o pão de queijo deles que nada tem a ver com o tradicional mineiro. Chama-se pão de queijo apenas porque acrescentam queijo à massa pronta antes de levá-la ao forno. Não sei, mas acho às vezes que as pessoas acham meio esquisito que eu fique perguntando tanta besteira... Sempre fui assim e quando estou longe dos meus filhos ou amigos aproveito para ser mais ainda. É divertido. É um jeito de me aproximar mais das pessoas porque, apesar de elas inicialmente acharem esquisito, daqui a pouco estão me confidenciando os seus maiores segredos... aqueles que nem sabiam que guardavam.

Fiz o que pude para não estar aqui, não vir pra cá. Não consegui preparar a palestra para o encontro internacional da Capoeira Brasil, como queria. Me atrapalhei entre o pouco tempo entre a volta da Califórnia e o encontro. Também fiquei meio pirada com essa história de pressão alta. E expliquei pro Armando, o ex-aluno que me convidou, que não viria por isso. Liguei na quarta, dia que começou o encontro. Ele insistiu para eu vir assim mesmo, mas eu o convenci que não, era uma questão de saúde e tal. E ele aceitou. Mas apenas provisoriamente. No dia seguinte me ligou insistindo e eu disse pra ele que, além da pressão alta, tinha o problema de não ter tido tempo de preparar uma apresentação como eu gostaria. E ele disse que poderíamos fazer outro formato: uma mesa redonda onde todos os presentes falariam mais livremente da sua experiência-pesquisa com capoeira. Eu falaria da expansão da capoeira em Chicago, parte da minha pesquisa de pós-doutorado.

Aí vim. Na quinta-feira de manhã a minha pressão já havia chegado aos números normais e, consciente observadora de mim mesma, levantei uma hipótese: a pressão subira em função do stress da viagem à Califórnia , mas talvez, principalmente também porque lá eu não estava me exercitando como costumo fazer em Fortaleza. Foi durante a caminhada da quinta-feira que me dei conta disto. De fato, ao longo de quase três semanas em Riverside, caminhei apenas umas quatro ou cinco vezes, o resto era fazendo compras, conversando com Kel ou amigos, cozinhando, ou escrevendo, em casa ou nos cafés. É por isto também que quero voltar à minha rotina em Fortaleza o mais rápido possível.

Muitas coisas para contar sobre a capoeira em Chicago. Muitas coisas para contar sobre a capoeira no mundo e o mundo vastíssimo da capoeira. O Gerardo Vasconcelos, colega querido da Faced, contou a história de Besouro Mangangá, um capoeirista baiano, de Santo Amaro da Purificação, meio mitológico, que viveu uma saga semelhante à de Lampião e Robin Hood. É uma pesquisa extraordinária, a do Gerardo, e ele se envolve com ela da mesma forma apaixonada com que me envolvo com as minhas. Eu era a única pessoa na mesa quase completamente inocente sobre a capoeira, inclusive porque a minha pesquisa jamais foi sobre a capoeira em si, mas a capoeira como um produto que difunde a “marca” Brazil pelo mundo.

Duas coisas importantes a se dizer sobre tal produto antes de quaisquer outras: a capoeira não é de jeito nenhum brasileira nos mesmos termos do samba. Como este, ela tem um pé na África: é um dos tantos produtos culturais afro-brasileiros. Mas diferentemente do samba e da forma como ele se difunde, celebrando a nossa mestiçagem, a capoeira não propagandeia o “milagre” da nossa democracia racial. Ao contrário, é um exemplo da resistência e expressa mais que tudo o conflito, o ressentimento, a raiva e estratégias para sobreviver a tudo isto tanto físico quanto emocional e filosoficamente. O que é a capoeira? Os seus mestres respondem a essa questão tão enigmaticamente quanto os mestres zen-budistas e todos insinuam que a resposta vem da prática, do contato, da convivência com essas artes/estilos de vida.

A outra questão importante é sobre a forma como a capoeira se transforma num produto
“brasileiro”. Criminalizada durante a primeira república foi reabilitada no Governo Vargas, período de construção da nossa identidade nacional. Mas a sua mais completa reabilitação, incluindo a sua transformação em objeto de desejo das classes médias, se dá depois que ela “ganha” o mundo. Então, é a migração para o “mundo” que transforma a capoeira num produto brasileiro. O meu amigo Alejandro Madrid (University of Illinois at Chicago) tem um jeito irônico de dizer isto: a capoeira é brasileira somente porque ela ganhou o mundo, se tivesse ficado em casa até hoje seria marginalizada... Ou seja, seria o produto de um gueto, com todas as restrições devidas, e não um produto/patrimônio nacional, com as suas “honras e glórias”.

Por que a capoeira se transforma num produto brasileiro depois que ganha o mundo é uma explicação mais longa que não posso e não quero dar agora... Mas o jeito como a capoeira se difunde, o seu corpo-a-corpo em Chicago será tema de diversas crônicas até eu finalmente juntar tudo e transformar no livro que preciso escrever sobre a pesquisa que desenvolvi lá entre 2006 e 2007...

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

El precio de la ignorancia (Final)

Quando escolhi este título para o conjunto de crônicas que termina com esta, a ignorância que estava em foco era a minha própria. Eu pensava particularmente na minha ignorância sobre a dinâmica da vida em geral e não especificamente a vida ou a justiça americana. Pensava em, ao final, oferecer um conselho: quando precisar saber sobre alguma coisa, particularmente sobre leis e justiça em terras estrangeiras, não procure os amigos, procure os especialistas. Se algum amigo for especialista no assunto, tudo bem, converse com ele, mas não deixe de procurar outros. Fui instigada a escrever sobre o tema, pelo enorme alívio que eu, Raquel e Nick sentimos após as duas entrevistas com advogados em Los Angeles. O último com quem conversamos, George S Castro, é brasileiro. Embora seja o dono de um escritório de advocacia e formado em Direito no Brasil, não é advogado na Califórnia. Tanto ele, quanto o anterior, Hector Ortega, pareceram ter bastante intimidade com a lei da imigração, embora nenhum dos dois tenha lidado com um caso como o nosso. A firma de George cobra 2.000 dólares para resolver o problema. Os dois insistem que é preciso ter paciência: dificilmente tudo se resolverá apenas com a audiência do dia 22 de janeiro de 2009. Do ponto de vista do meu senso de justiça, tudo isto é um pesadelo desnecessário. Somente a humildade que as religiões pregam oferecem abrigo nessas circunstâncias.

Resolvemos parcialmente o problema: começamos a nos informar. Hoje sabemos bastante mais sobre leis e advogados nos Estados Unidos. Já nos tranquilizamos em relação a um fato: contrataremos um advogado. A questão agora é: qual? Nos demos de 20 a 30 dias para respondermos tal questão. Contratar um advogado não é mais fácil do que comprar um carro usado. Também não está completamente fora de cogitação mais entrevistas com outros advogados. Nesse caso, iriam somente Raquel e Nick.

Estarei de férias do caso pelos próximos 15 dias para me concentrar no início do semestre letivo e preparação da palestra para o encontro internacional de capoeira em Jericoacoara. Em seguida vou para Florianópolis, participar do “Fazendo Gênero”. Os dois encontros foram decididos com o coração. Para o de Jeri fui convidada por Armando, ex-aluno de fundamentos antropológicos da educação física. Ele é super-querido e meio que ajudou a salvar a disciplina no semestre passado... E para o de Florianópolis apresentei trabalho principalmente para ter a oportunidade de visitar o Lucas e a Marcionília.

Agora estou aqui, meio crucificada entre um encontro e outro e a passagem brevíssima por Fortaleza. Aulas para preparar e vontade de me envolver com elas, mas mal iniciarão e já terei que, outra vez, pegar a estrada. A palestra que darei em Jericoacoara também não está preparada ainda. Sei mais ou menos o que vou dizer, os vídeos que vou mostrar, mas estou ainda escolhendo as palavras...os vídeos... Mas começo a me tranquilizar com o limite de tudo: é o que pode ser. Digo isto, mas há partes de mim que não se convencem e o meu corpo reage: desde Riverside a minha pressão arterial, que antes estava absolutamente sob controle apenas com dieta, exercícios e bons pensamentos, voltou a subir.

Volto à conversa sobre a ignorância. Acho que é um pouco isso que nos damos conta na maturidade: seremos sempre ignorantes em relação a tantas coisas da vida... Mas também aprendemos que não há maior liberdade do que a de conhecer as alternativas e poder escolher.

Sérgio continua inconformado em relação à situação da Raquel e meio frustrado com os resultados que apresento depois de quase três semanas lidando com isto in loco. Também eu. Mas não dá para ser diferente: não dá para agir antes de compreender. Não faz sentido escolher nenhum advogado antes de estarmos minimamente convencidos. Poderíamos já escolher o Hector Ortega para defendê-la, mas a minha melhor sugestão é que pesquisemos um pouco mais. Ainda temos tempo: a audiência só será no dia 22 de janeiro de 2009. Contratar um advogado em meados de setembro é ainda bastante razoável. Tempo de sobra para ele entender o caso e defendê-la apropriadamente.

Já conhecemos a melhor advogada da Califórnia: nossa amiga Adriana S. Mas ela não tem diploma. Pensamos em contratar a sua assessoria para ajudar a Raquel a assinar o contrato com o melhor desses quatro ou cinco advogados com quem afinal terá conversado. Acho que esta é a melhor escolha. Por enquanto...

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Um outro eu... Mas qual?


Eu o reconheci desde a primeira sentença como se fosse aquela parte de mim que me aceita... O outro que me observa com a compaixão com que somente eu sou capaz de me observar... Um milagre quase. Percebe certa sofisticação na minha simplicidade... Será que ele também desconfia dela? Quero dizer, da simplicidade? Se é espontânea... ou fabricada? Afinal, não é meio paradoxal uma simplicidade sofisticada? Não creio que ele sugira que haja muito mais do que o que aparece, embora ele, como eu, sabe bem que o que aparece é apenas a ponta do iceberg. Há mais: tanto, tanto, tanto...

Mas sendo o que aparece a ponta do iceberg, pelo amor de deus: é real! É confiável! É seguro... Ou não? De um jeito ou do outro: quem tem coragem de mergulhar? De desafiar a fantasia do que se enxerga na superfície?

Adriana, minha querida amiga argentina, que me ensina sempre tanto sobre tudo no mundo, e que eu amo demais e de quem me custa muito me despedir, comentou um pouco sobre isto hoje... Meio por acaso... A propósito de que, meu Deus? Não importa. Estávamos no Jammin Bread, uma lanchonete meio chique, meio vegetariana, lá, no Towne Center, onde também fica o Coffee Roasters, na área “universitária” de Riverside, morrendo de fome e comendo um sanduíche vegetariano acompanhado de chá do paraíso, um chá meio genérico com um leve toque de jasmin que servem com um monte de gelo: paradise iced tea. Ela dizia exatamente isto: a sua simplicidade é tomada por um incauto apenas como simplicidade...

E é o que você enxerga sem ser eu, sem ser Adriana, sem me conhecer... Ou me conhece? Além daqui, das Sumehrianas? O fato é que raríssimas pessoas percebem isto. Raríssimas pessoas percebem de mim o que quero que percebam. E, pra falar a verdade, prefiro assim. Embora aqui e ali sim: o Brito, o meu ex-cunhado, me sacaneava um pouco com essa história da minha simplicidade: “Berna, tu é muito simples... tu já pensou uma mulher como tu, com tanta coisa importante pra fazer, aqui, tão simples, conversando com a gente?” Uma tonelada de ironia no discurso do Brito, mas bastante sensibilidade também.

Mas páro por aqui, não preciso me revelar mais. Aliás, acho que nestas crônicas me revelo pouquíssimo. Apesar disso, não há como fugir de mim: vou sempre aparecer um pouco ou muito em tudo que faço. E, sem dúvida, como você percebeu, o meu texto também revela a minha espontaneidade... Mas quanto revela da minha alma? Dos medos que demoro a revelar para mim mesma? Um truísmo, eu sei, mas aqui apenas me permito revelar o que se pode revelar num texto público, numa crônica. Com tom e estilo de diário, é verdade, mas mais uma armadilha para atrair o leitor do que um diário propriamente... Inclusive, como diz Canetti, diário é outra coisa, percorre outros caminhos.

Não sei, mas a sua aparição por aqui, justamente quando eu filosofava sobre a literatura e a solidão foi meio mágica, meio milagrosa... Muitíssimo benvinda. Infelizmente a maioria dos comentários recebo mesmo é pelo email: por uma razão ou outra, as pessoas não querem se expor. Os comentários, espaço do encontro do autor com o leitor, é o espaço mesmo do encontro das solidões, da realização da literatura. Sem comentário não tem blog... como não tem literatura sem leitor.

Me lembro agora do que me dizia Seu (Francisco) Carvalho sobre esse encontro... e somente agora tudo isso faz tanto sentido. Conheci-o através de Anchieta Barreto, colega meu, que o conhecia bem desdes os tempos em que fora reitor e Seu Carvalho secretário dos conselhos superiores da universidade. Anchieta me presenteou com A Barca dos Sentidos com que imediatamente me encantei. Vi que tinha um lugar pra mim naqueles versos... Uma solidãozinha que eu queria habitar... Pouco depois, como representante da faced no cepe, tive a satisfação de
conhecê-lo pessoalmente. E era um aprendizado e um encantamento que não tinha fim. Meio desumano porque não teve um dia que eu não gostasse de encontrá-lo; que eu não passasse a enxergar o mundo diferente depois de uma conversa com ele, que as coisas que ele me dizia não ficassem germinando dentro de mim. Foram poucos encontros: uns quatro ou cinco. Ele sempre me presenteava com algum dos seus livros. Um dia, não me lembro mais porque, ele disse que o mínimo que se espera do leitor é um comentário, um bilhete... O escritor precisa de feedback... Precisa saber o que provoca nos outros os seus escritos.

Fiquei me sentindo meio em dívida porque ele já havia lido pelo menos três livros seus e nunca tinha lhe enviado bilhete nenhum... E também me sentia meio tímida para comentar quando nos encontrávamos... Dizia coisas superficiais... Mas não lhe dava idéia da extensão do impacto dos seus versos no meu cotidiano...

Um dia, finalmente, no meio das milhares de coisas do doutorado, daqui, de Riverside, lhe enviei longa carta e, no final, o seguinte poema, inclusive inspirado pela sua Canção ao Pote:

A luz da poesia

ao poeta Francisco Carvalho
A luz da poesia atravessa escuridão, abismos, inocência.
Talvez não sacie a sede de justiça, de beleza, de paixão.
Mas deixa marcas do seu encantamento
nas retinas que lhe acariciam.
Ao invés de um banho de palavras,
a poesia é sopro de beleza e bússola de tragédia
transcende as barreiras da intenção e nos
premia com filhos da lua
e pulsações de desejo em almas de bronze
Apocalíptica constrói o túmulo
dos que não querem (ou não merecem) descansar em paz.
Camarada, traiçoeira, aproxima-me de mim
e ao mesmo tempo me reúne ao pó.
Tecedora de impossibilidades nos dá o que a história nos tira:
a possibilidade de ser todos os homens em todos os tempos, como cobiçava Whitman.
Ainda que transmutável em castelos, pântanos e fortalezas,
a poesia não quer ser porto de ninguém
mas ilumina como o farol de todos.

A você, Muad’Dib, não tenho um poema para oferecer ainda... mas ofereço essas divagações inacabadas de hoje, com gratidão. Good night.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

El Precio de la Ignorancia (Parte II)






(Foto 1. Venice Beach. Show do haitiano que anda sobre cacos de vidro. 11/08/2008. Foto 2. Raquel e Nichole em frente ao banheiro público da Venice Beach. Ver detalhe do "mosaico" na parede)
Coffee Roasters, Riverside, 9 de agosto de 2008
Escrevo a data e me lembro de Fábio: hoje completaria 45 anos. Tão esquisito essa idéia de não poder encontra-lo nunca mais... Ouvi-lo atender o telefone com o seu: “pronto?” Não sei o que está acontecendo comigo ultimamente, mas a verdade é que a morte já não me assusta tanto... Talvez o que eu queira mesmo dizer com isto é: a dor já não me assusta tanto. Ao mesmo tempo, sinto-me mais sensível do que nunca. Capaz de perceber mil vezes mais do que percebia quando adolescente. Sinto mais, percebo mais, porém, paradoxalmente, assusta-me menos a dor e a vida. Sinatra homenageia Fábio cantando Unforgettable.

Centenas de coisas aconteceram entre o início desta crônica e hoje, inclusive o adiamento da minha volta ao Brasil. Estou outra vez aqui, no Coffee Roasters, o meu porto seguro nesta passagem por Riverside.

Quero prosseguir contando sobre as entrevistas com os advogados em Los Angeles. Pegamos a 60W, que nos leva direto, em cerca de 60-80 minutos, ao centro de Los Angeles. A paisagem não é tão onírica quanto a da 57: o tráfego é mais pesado, tudo que se enxerga ao redor está mais ou menos envolvido por uma espessa nuvem de poluição... Não sei como se chama em português, aqui dizem smog. É isto: uma neblina meio marron-amarelada... Cor do deserto que é o sul da Califórnia. As montanhas aos poucos sendo ocupadas por casas com o crescimento sem controle da indústria imobiliária nas últimas décadas... A natureza certamente agradece a trégua produzida pela crise atual. Nick dirigiu. O tráfego fluiu bem até chegarmos próximo ao centro de Los Angeles e trocarmos a 60W pela 101N (a Hollywood freeway)... É sempre assim: muitas vezes gastamos mais tempo para dirigir 5 milhas na 101 do que 50 na 60. O encontro com Hector Ortega estava marcado para as 11. Chegamos ao seu endereço, 700 Wilshire Blvd, meia hora antes. É provavelmente uma das áreas mais caras do centro, o estacionamento é cobrado por minutos: cada 15 minutos custa em média 3 dólares. Mas há um limite máximo que se permite cobrar por dia: em torno de 20 dólares.

(...)
Riverside, 10 de agosto de 2008
11:20am
(Interrompi a narrativa acima porque me senti mal. Vim pra casa de Jeannie encontrar a Raquel e a Nichole que vieram pra ficar um pouco na piscina. Estou aqui desde ontem. Desde a sexta-feira sentia-me inexplicavelmente cansada, meio febril. Ontem, ainda no café, comecei a sentir a minha garganta doendo e com grande dificuldade de engolir. Vim pra cá e, desde às 3 da tarde de ontem, quando Raquel e Nichole foram embora, estou intermitentemente dormindo. Estou tomando vitamina C e equinácia para a inflamação da garganta. À noite Larissa, filha de Jeannie, voltou de San Diego e cuidou um pouco de mim: fez chá de hortelã e me deu uns remédios fortes para gripe. Nunca tomo nada disso, mas resolvi tomar porque queria mesmo dormir a noite inteira. Desde a hora que acordei estou lendo The Last Lecture (A última aula), de Randy Pausch, professor de Carnegie Mellon, que recentemente morreu de câncer e escreveu o livro quando soube que teria apenas três meses de vida. Tá a maior moda aqui e, embora eu não goste de moda, achei a história dele interessante. Continuo me sentindo cansada e sonolenta. Durmo um pouco, me acordo, leio um pouco, durmo outra vez. Acordo sentindo-me bem, mas minutos depois estou outra vez exausta. A febre e a dor de garganta felizmente já passaram).

Volto à terça-feira, Los Angeles. Meio surpresa, perguntei àquele rapaz que se apresentava se ele era o advogado. Respondeu sim e eu comentei que ele era muito jovem. Surpreendi-me com a sua segurança e tranquilidade. Conhecia bem o problema e conhecia também o juiz e os advogados do Serviço de Imigração. Fizemos-lhe todas as perguntas que já havíamos feito ao Steve. A grande diferença entre eles é que ele nos provava que era importante contratar um advogado sem nos assustar tanto, como fez Steve. Da perspectiva dele, tudo é resolvível. O que me incomodou na conversa com o Steve foi o fato de ele sempre considerar complicada a solução de tudo.

Preciso aqui mais uma vez repetir a história: Raquel, imediatamente após casar com Nick, cidadão americano, entrou com os papéis para mudar de visto. Preciso esclarecer que esta exigência não é um capricho dos Estados Unidos; é, digamos assim, uma exigência do mundo nacional/internacional. É também disso que as nações sobrevivem. De acordo com meus amigos “gringos” que moram no Brasil, aí chega a ser até pior. Enfim, Raquel tinha visto J-2, dependente de J-1 (um visto específico para intercâmbios acadêmicos e que obriga os seus portadores a voltar aos seus países de origem) e pedia o green card, que é uma identidade de residente. Embora não faça muito sentido, as restrições do meu visto também se aplicam aos meus dependentes. Assim como eu, se quissesse ficar, ela teria que pedir ao Serviço de Imigração a dispensa da obrigatoriedade de voltar. Ela não pediu e encaminhou os papéis para mudar de visto sem esse documento. Erro cometido pelo desconhecimento que ela e o escritório que a ajudou tinham da especificidade do seu caso. Nada absurdo porque todo dia todos nós esquecemos alguma coisa: de assinar o cheque, de travar a porta do carro, do prazo do imposto de renda, do aniversário do filho...

Claro que, como disse no início da parte 1 desta crônica, tanto a ignorância como a desatenção têm um preço. É este preço que agora estamos pagando. Caro ou barato, acho que não importa muito agora. E, como sugere o Sublime, melhor não ficar com raiva das contas que temos que pagar (I don’t get mad at the bills I have to pay).

Então, vambora: o Serviço de Imigração costuma devolver os processos incompletos. Inclusive, exatamente por isto e porque a taxa de ajuste de status subiria de trezentos e tantos dólares para mil e poucos, achamos conveniente pedir ajudar especializada. Nem o Serviço de Imigração devolveu o processo incompleto da Raquel, o que teria evitado toda essa confusão e nem o escritório que ela contratou era tão especializado assim...

Ignorância, desatenção de todas as partes e um pouco de má sorte também.
(...)

Venice Beach, 11 de agosto de 2008
13:30h.
Venice Beach é uma festa... Talvez a última evidência da Califórnia dos 1970, que inspirou Going to California e outros sonhos e viagens... Todas as minhas amigas daqui, em geral 10-12 anos mais velhas do que eu, viveram um pouco a Los Angeles dos 70: com LSD, maconha, sexo livre, revolução, tudo... Os velhos hippies perseveram e, como os que encontramos na Praia de Iracema, na Beira-Mar ou em Copacabana, estão lá, criando suas pulseiras e colares. Se não fosse pela temperatura da água do mar; a predominância do inglês; sóbrios, sólidos e grandes lixeiros de dez em dez metros; enorme banheiro público bem em frente a este café e a rua da frente da praia só para pedestres, eu me sentiria como se estivesse em Fortaleza. Ah, tem outras diferençazinhas: o que eles chamam Palm Trees (palmeiras) aqui parecem os nossos açaizeiros... O haitiano que faz o show do homem que anda sobre cacos de vidro exige pagamento adiantado diferente dos nossos palhaços, comediantes e curandeiros da Beira-Mar e Praia de Iracema.... Ah, e os mendigos são muito criativos: há um black-American sentado numa cadeira esperando clientes para aconselhar sobre sexo: Sex Counseling. Um outro dizendo que não quer cappucino, quer vino... E vai por aí... É engraçado que com todos os controles desta sociedade, haja espaço para essas doideiras... Quase todos os hippies têm os seus cartazinhos defendendo a legalização da maconha... Últimos remanescentes de uma cultura mais livre, mais lúdica, mais esperançosa... objetos de museu...

Raquel e Nichole foram até a praia. Quis ficar aqui pra ver se termino esta crônica interminável... Mil e uma noites... Que príncipe quero manter acordado? Que príncipe quero evitar que me degole antes do amanhecer? Agora sério: há história mais fascinante do que a de Sherezade? Não tanto a que ela conta, a dela própria, a da sua estratégia de sobrevivência ao sultão com complexo de corno.

Somente observar as pessoas entrando e saindo deste café/lanchonete já é uma grande diversão... Descrever é mais divertido ainda... Agora, por exemplo, as mesas do lado e da frente estão ocupadas por adolescentes com cara de midwesterners (povo do meio-oeste): Iowa, Ilinois, Wisconsin... Mais ou menos o fenótipo das ginastas que estão representando os Estados Unidos nas Olimpiadas. E aqui atrás tem outra família e um bebêzinho que o pai meio gordo tá enfiando batata frita e hamburguer na boca... Deve ter menos de dois anos, coitado...

Caminhamos uns cinco ou seis quarteirões do estacionamento público (7 dólares até as 18h) na direção de Sta Mônica e, só há uma mercadoria que compete com as tendas/lojinhas de artesanato: as casas de tatuagem. Raquel sugere que eu faça algumas tatuagens e piercings antes de voltar...

Estou sentada de frente pro mar, no interior do Café Venícia... As paredes são de vidro... e enxergo lá longe, depois dos coqueiros, gramados e areia, uma nesguinha de mar... A coleção de fotos na parede do fundo dizem que o proprietário deve ser democrata: o sorriso largo do gostoso do Clinton estampado nas cinco fotos ladeadas por outras de cappuccinos e sanduíches.

A cada instante entra mais gente aqui.. E ei! O carro de bombeiros acabou de entrar na rua que era antes apenas de pedestres... Algum incêndio, provalmente... Eita! Mais outro! Parece que é sério. Mas ninguém presta atenção ou vai atrás pra ver o que tá acontecendo... Eita diferença de Sumé...

Quero voltar para o centro de Los Angeles, quase uma semana atrás: 700 Wilshire Blvd. Escritório do Hector Ortega. Nunca vi advogado tão tranquilo. Como na entrevista com Steve, Raquel conta a sua história. Já havíamos perguntado ao Steve o que aconteceria se ela e Nick decidissem deixar tudo e imediatamente voltar pro Brasil. Mesmo que seja isto o que eles queiram, é preciso esperar até a próxima audiência: 22 de janeiro. Lá, de acordo com a lei da imigração, ela já estará vivendo ilegalmente aqui por mais de um ano. Se sair, ou se for deportada, terá que passar dez anos até novamente poder pedir um visto nos consulados americanos. Mas Hector nos tranquiliza: podemos revogar isto (we can waive that). Absolutamente nada parece irremediável para ele. Diferentemente de Steve, nos disse que, caso o Nick não arrange emprego até o período de Raquel novamente poder pedir o ajuste de status, os pais deles podem entrar como patrocinadores (sponsors). Com a crise atual já não se consegue empregos com a rapidez de antes... É preciso as vezes mudar de profissão, adequar-se às novas demandas do mercado... quais? Tudo difícil: Maria e Jeannie insistem que nunca viveram crise tão profunda... O preço da gasolina está caindo um pouco... Ao invés de 4,70 dólares por galão, agora está em torno de 4 dólares, em alguns postos até um pouquinho menos.

Sim, Hector, quanto custa para defender a Raquel? “Aqui cobramos um preço fixo por cada tipo de serviço. No caso de Raquel seria 3.500 até a decisão final do juiz. Incluindo o preenchimentos de todos os formulários e a elaboração de petições e tudo o mais que seja necessário à sua defesa e obtenção de documentos necessários para a obtenção do green card.” E a forma de pagamento? “700 na assinatura do contrato e o resto dividido em prestações de 200 mensais.”

Ficamos bastante mais animadas:com a conversa, com o preço, com a forma de pagamento... Com um contrato que inclui tudo que precisa ser feito e que não cobra cada coisa separado, como no caso de Steve... A entrevista com o outro advogado estava marcada para as duas da tarde...

(a bateria do computador tá morrendo e a não há tomadas próximas desta mesa...)