sábado, 23 de agosto de 2008

De ficção e ficções...

No dia 13 de agosto, um dia antes de voltar ao Brasil, inspirada pelos comentários de Muad´Dib a postagens anteriores, escrevi a crônica “Um outro eu... mas qual?” Recebi vários comentários, mas um deles, o de Emma, provavelmente não foi compreendido por muita gente. Copio o que ela escreveu: “Lembranças... Berna, desde ontem à noite fiquei pensando em uma pegadinha que você me fez há uns 20 anos atrás... sobre uma paixão... e me veio à mente coisas desse tipo. Quem é quem no mundo de hoje? Quem é a criatura e quem é a criadora??? Seria divertido.”

Emma sugeria que Muad´Dib fosse uma criação minha. Recebi o comentário como um elogio. Ela sugeria que eu era uma ficcionista tão imbuída do seu papel que transformava em ficção a própria vida. Conto agora a história da “pegadinha” do jeito que me lembro para depois voltar a falar de Muad´Dib.

Longos idos meados da década de 1980. Estava me recuperando do final do namoro com Valdemar e dividia um apartamento com Emma C Siliprandi, em Campina Grande. As duas fazíamos mestrado em Sociologia na UFPB. Para ajudar a sarar a dor de cotovelo fiquei viajando mais sistematicamente para João Pessoa: pela praia, por Laís, pelos amigos Giovanni, Leo e Ana Tereza e o recém-conhecido, mas já querido, Roderick Fonseca. Emma estava me achando meio silenciosa, meio esquisita. Eu já não sofria mais tanto pelo final com o Valdemar e, portanto, já não queria falar mais disso. Acho que o que vivíamos no mestrado não rendia naquele momento conversas particularmente entusiasmadas.

Emma e outros amigos achavam que o melhor jeito de me libertar do final da história com Valdemar era entrar numa nova história. Havia até certa pressão nesse sentido... Um dia, após voltar de JP, Emma me perguntou: “Ei Berna, tudo bem?” Naquele exato instante comecei a lhe contar a história desse cara esquisito que eu havia encontrado em JP... Naquele mesmo dia, escrevi no meu diário sobre ele. Meu silêncio passou a ser sinônimo de concentração no cara e naquela paixão esquisita. Passaram-se várias semanas, várias idas a JP. Emma sempre me perguntava por "ele" e eu contava como as coisas estavam indo... As férias chegaram e Emma viajou por um mês inteiro . Quando voltou, estava ansiosa para saber sobre o meu “namorado”. E eu, completamente desprevenida, respondi: “que namorado?” Ela: "o teu namorado esquisito, guria!"E aí aquela história: a vida inteira para adquirir confiança e apenas um instante para perder. Eu me traí com a minha resposta. Havia esquecido a própria ficção. Tinha inventado a história do namorado esquisito porque achava mais fácil atribuir o meu ensimesmamento a ela do que às dúvidas e buscas.

Emma não me perdoava por eu ter “inventado” a história. E me olhava ora como a uma louca ora como a um monstro. Pelo jeito, até hoje não me perdoou. Enfim chego ao presente. A Muad´Dib e à hipótese de Emma de que ele também pode ser ficcional. Eu tenho certeza que é. Apenas não é cria minha, isto eu garanto. Não me sinto capaz de criação tão extraordinária, pelo menos não ainda.

Como Emma e outros leitores deste blog, também sinto muito a falta de Muad´Dib... Não sei porque ele sumiu, sei que foi imediatamente após a crônica em que revelo o impacto que têm os seus comentários sobre mim... Pois é, não sei porque sumiu... mas adoraria que voltasse...

4 comentários:

Muad'Dib disse...

Bernadete,
Sumi, sim e não. Melhor escrever que me afastei um pouco, pois numa outra vida, paralela à do Muad’Dib, tenho monte de coisas a fazer. Muitas vezes passei por aqui, pelas sumehrianas, me dizendo : gostaria de comentar isso ou isto ; dar um sinalzinho de vida ; Mas a vida é tão cronofàgica ! Também fiquei tocado, honrado,mas extremamente intimidado por aquela crônica em que você elogiou meus comentàrios ; assim como fico comovido por este ùltimo texto. Os gerbos são bichinhos do deserto que dificilmente se deixam aproximar de maneira frontal.
Muito obrigado.
Muad’Dib.

Emma disse...

Berna, posso garantir que depois de tanto tempo, não existe mais perdoar ou não perdoar... lembro que na época fiquei puta com você, mas hoje eu valorizo tanto o fato de que você tenha conseguido me envolver com a sua ficção! E por isso também escrevi, porque pensei, seria genial se ela mesma tivesse inventado esse "heterônimo" à la Fernando Pessoa, envolvendo os leitores em um ficção maluca, mas plausível. Bem, parece que o Muad'Dib existe, enfim, é bom também, mas eu achei interessantíssima a idéia de que ele fosse uma invenção. Gosto especialmente porque hoje em dia tenho mais clareza sobre isso de que todos somos um pouco ficção, para nós mesmos, para os nossos diários, para os espelhos que gostaríamos que nos refletissem tal como o a gente gostaria de ser vistos, e não como o da Rainha da Branca de Neve (que só diz a verdade, êta espelho chato esse).
Fico por aqui...

Muad'Dib disse...

A Emma

Cara Emma,
Sou Muad’Dib, sim. Sou uma criação dum outro eu-mesmo, bastante semelhante, aliàs, mas também com este afastamento infinitesimal que introduz diferença, rupturas de sentido, de sensibilidade, de percepções. Seria incapaz, até, de dizer quem é verdadeiramente o mais verdadeiro, o mais pròximo de mim / de nòs: eu-mesmo, ou Muad’Dib ? Talvez o segundo dê uma dimensão, uma espessura que o primeiro não tem, não quer/não pode assumir nesta sociedade altamente preocupada pelo rendimento pessoal, não sei. Talvez o segundo, que até agora estava cochilando, assim como uma forma de vestìgio assìrio, até sumeriano, como uma memòria antiga deixada a desejar, na areia dum deserto batido por ventos quentìssimos, precise do segundo para fazer Um, ou dum terço, ou dum quarto, ou até de um oitavo para fazer Um... não sei exatamente quantos somos là dentro, na caixa de ossos e de carne... quantas memòrias são necessàrias para fazer um homem, um ser humano...
Existo sim, em três dimensões, pelo menos ; de carne e de sangue... Nunca a Bernadete me encontrou enquanto Muad’Dib. Aliàs, não sei se valeria a pena... para ela, claro ! Mas enquanto eu, criador de/criado pelo Muad’Dib, posso afirmar que não sou, de jeito nenhum, uma criação daquela Bernadete que nos entusiama com as suas crônicas. A não ser que... Quem é quem no mundo de hoje ? Como saber verdadeiramente da parte das nossas heranças tanto genéticas quanto intelectuais, perceptivas, sensitivas, emocionais... ? como fazer aquela parte da nossa interioridade e da nossa margem de exterioridade... ? Acho mesmo que não podemos ficar em exterioridade com as coisas que nos tocam/tocaram, de perto ou de longe.
Aliàs, Emma, sei porque estou gostando tão das crônicas da Bernadete, pois elas demonstram, altamente, o quanto nunca podemos ficar em exterioridade com as coisas que nòs atravessaram, até sem mesmo que nòs as percebamos... Sejam elas lembranças relacionadas a uma pegadinha do passado, a uma història de pães bem quentinhos de Jericoacoara, a expansão da capoeira em Chicago, aos problemas de tensão e de estresse na California ou a capoeira como produto cultural nacional... um fio tênue circula entre elas. Não ficar em exterioridade com certas coisas, até bem finas, significa estar habitado por elas... gosto muito das pessoas habitadas... essas crônicas são ricas pois pertencem, emergem duma pessoa extremamente habitada... não acha, Emma ? Sei, sinto também o quanto você é uma pessoa habitada.
Abraços.
Muad’Dib.

Emma disse...

Para Muab'Dib e para Berna
Vocês são sem dúvida pessoas extraordinárias, para nos deixarem assim tão envolvidos. Muab, o fato de você existir - para nós, leitores do blog - é bom em si, e talvez não importe muito "de onde você vem" ou "quem você é". Seus comentários funcionam como um contraponto interessantíssimo aos escritos de Bernadete, é como uma crônica dentro da própria crônica, algo que encaixa, que complementa e que enriquece. Concordo com você que os textos da Berna são inspiradores; são bons de ler porque como toda boa literatura nos transportam para o mundo da autora, nos fazem viver e sentir aqueles momentos como se fôssemos ela. Eu adoro isso, adoro sair de dentro de mim e brincar de ser outra, isso deixa a minha vida um pouco mais emocionante...
Que bom, fico feliz que tudo isso esteja acontecendo, que esse blog exista e que com ele tantas pessoas inquietas possam de alguma forma se conectar.